Depois de uma experiência libertadora nos últimos anos, uma mistura de meditação e boas ações, além de uma dieta equilibrada e uma série de estudos bem direcionados, o mundo parece diferente aos olhos de Túlio. A realidade que era tão confiável, cheia de vínculos sólidos entre familiares e amigos, perdeu sua consistência, sendo agora uma grande farsa descortinada. Felizmente, no fundo dessa série de ilusões temos a preciosa verdade, o mundo que tentaram ocultar, mas que aparece com toda força nos bastidores da sua experiência.
Claro que essa breve passagem foi inventada por mim, mas alguma coisa nela tem um cheiro familiar, não é mesmo? A ideia de que o mundo acessado pelos meus olhos, ou por minhas mãos, nada mais é do que um Show de Truman, uma simples farsa bem construída, é um tipo de história muito antiga e previsível. Alguns rastros desse modelo devem ter, no mínimo, uns 2000 anos, como é evidente logo nas primeiras linhas do Livro 7 da República de Platão e seu Mito da caverna, ou no próprio cristianismo e seus textos sagrados, ou até mesmo em histórias mais recentes como a trilogia Matrix, que vai ganhar um quarto filme em dezembro de 2021. Existe uma tendência em acreditar nesse tipo de narrativa, como acontece também, por exemplo, com teorias da conspiração, onde o mundo é dividido em dois grandes polos (a Realidade X a Fantasia). Recentemente, não são apenas grupos de esquerda que acolhem essa metáfora tão popular, como também grupos reacionários começam a ver na Matrix um importante recurso retórico e prático. Existe algo de atraente na crença de que vivemos presos em um universo ficcional (de superfície), enquanto a realidade brilha do outro lado da cerca, escondida dos olhos do sujeito comum e iludido… alienado. O objetivo desse ensaio, contudo, não é descontruir essa imagem de mundo, como muitos já fizeram antes, mas inverter seus termos, colocando todos de cabeça para baixo, ao caminhar rumo a um percurso mais radical, complexo, assim como é esperado da filosofia ou da psicanálise.
É óbvio que você já deve ter assistido o filme Matrix, não é mesmo? Mas se, por acaso, nunca assistiu antes, nem sequer uma das milhares de referências que passeiam pela cultura popular, não se preocupe, porque a narrativa de fundo é mais previsível do que você pensa. A história gira em torno do personagem Thomas Anderson, um programador de computadores que vive uma vida comum, sem muita surpresa, nem nada de original, até que um belo dia descobre que sua realidade é uma grande ilusão comandada por uma série de máquinas que se alimenta da energia de humanos. Essa nevoa de ilusões, essa grande fantasia, é justamente a famosa Matrix. Além dessa descoberta assustadora, Anderson também percebe que ele é o protagonista de uma guerra decisiva entre humanos e máquinas, sendo ele o escolhido (chamado de Neo), o que deve liderar a batalha contra as forças sombrias. Ou seja, por trás da realidade cotidiana chata e sem sentido de Anderson, com um emprego sem graça, sem muita novidade ou tesão, existe um verdadeiro mundo onde os humanos foram colonizados por robôs. Ao menos essa é a leitura mais comum, aquela que brota logo das primeiras cenas do filme. Mas e se for possível arriscar um pouco mais, indo além dessa leitura simplificada e tradicional? Seguindo um percurso psicanalítico, na fronteira da própria filosofia, dialogando com figuras como Slavoj Žižek, não vamos simplesmente criticar o filme Matrix, mas inverter sua ordem, colocando tudo de cabeça para baixo. Em termos de um marxismo clássico, ortodoxo, o mundo de Mr. Anderson é a tão famosa ideologia como má consciência, enquanto o mundo distópico fora da Matrix é a verdadeira realidade. Mas e se for o contrário? E se o mundo épico fora da matrix for um reflexo de uma estrutura ideológica, enquanto a vida cotidiana, aparentemente chata, e sem uma estrutura racional e previsível de fundo, for a dimensão mais próxima da realidade?
A ilusão de que existe algo fora da esfera contingente da linguagem, alguma coisa bem ajustada que podemos alcançar, ao menos quando um método especial é usado, como o científico, religioso ou artistico, nada mais é do que uma miragem produzida por essa mesma cadeia de significantes que chamamos de linguagem, principalmente quando o cotidiano é rasgado por um abismo insistente, repleto de problemas, frustrações e dúvidas. Thomas Anderson, através de um passe de mágica cheio de conveniência, é transportado direto a um mundo onde sua vida não apenas tem sentido, como também ganha contornos épicos, já que ele agora é o protagonista de uma nobre batalha entre bem e mal. Ou seja, Anderson escapa de uma realidade complexa, contraditória, e sem uma narrativa clara, e mergulha convenientemente direto em um universo onde ele é o escolhido (o Neo), onde uma nobre batalha espera pela sua sabedoria e liderança. Não seria esse o fundamento de toda forma ideológica, ou seja, a crença de que não apenas existe algo fora do pacote frágil de signos e experiências que chamamos de linguagem, mas que esse mesmo ALGO também apresenta contornos claros, além de incluir a mim mesmo como uma espécie de peça chave.
Meu vínculo com o mundo, e com as pessoas ao meu redor, jamais é direto, espontâneo, verdadeiro. Eu não entro em contato imediato com seu corpo, como se fosse um pedaço de matéria concreta e descentrada, mas sempre mediado por um pacote de significantes, por uma linguagem. Se você pensa que a realidade virtual é coisa de computador ou internet, ou mesmo reflexo de um mundo contemporâneo e de sua atmosfera binária, então você precisa repensar tudo de novo. Toda realidade já é virtual. Todos vivem em um espaço de ficção, já que eu não entro em contato com outros de forma direta… na verdade, nem sequer tenho acesso a mim mesmo de forma direta, espontânea. Vamos ao exemplo: Imagine que alguém, talvez um pervertido qualquer, tenha instalado uma câmera no banheiro de sua universidade e acabou de postar um vídeo seu tendo a pior diarreia de toda a sua vida. Imagine que esse alguém registrou todos os detalhes constrangedores desse episódio escatológico. Qual a sua reação? Provavelmente vergonha. Mas pense um pouco… não faz sentido!! Afinal, ela é uma reação fisiológica comum, uma circustância presente na vida de qualquer criatura com um cu bem desenvolvido. Ou seja, qual o motivo da vergonha? Esse sentimento apenas surge porque a imagem que eu tenho de mim mesmo, costurada por uma cadeia de significantes, foi comprometida por um certo excesso, por algo mais REAL, transbordante. Se eu fosse a pessoa que eu mostro ser, se a minha linguagem fosse compatível com o excesso do meu corpo, a vergonha seria uma reação incompreensível.
No cotidiano, o Outro jamais entra em contato comigo diretamente, jamais acessa a verdade de mim mesmo, mas sempre uma simples imagem, uma simplificação, ou seja, ele entra em contato com a parte virtual de quem eu sou, aquela parcela inscrita na linguagem e em suas conveniências simbólicas. A diarreia, nesse caso, compromete esse virtual, manchando seus contornos, ao mesmo tempo que prejudica o OLHAR do Outro sobre mim. Claro que esse exemplo escatológico é apenas um dentre milhões que poderiam reforçar meu argumento chave de que não apenas toda realidade é fundada em uma rede virtual de interações, como precisamos que seja assim, caso contrário nenhum vínculo seria produzido. Não posso criar experiências sendo um corpo descentrado e transbordante. A criação de laços, não importa quais sejam, depende da miragem de um EU estável, consistente e confiável, o que pede por uma atmosfera virtual que garanta toda essa sólida conveniência. Em outras palavras, a possibilidade de um mundo fora da linguagem não apenas é algo impossível, como indesejável, já que tornaria a vida em comum um sonho distante. Fora da Matrix não existe um mundo épico, uma luta entre bem e mal onde você é o protagonista… o mundo fora da Matrix pode se tornar apenas uma outra Matrix mais conveniente e mais confortável. Talvez o mundo do aqui e do agora, cheio de altos e baixos, falhas e incoerências, esse mundo do nosso cotidiano tão pouco sistêmico, seja o mais próximo que temos de um possível mundo REAL.
Créditos na imagem: Divulgação/Bill Pope. Cena do filme Matrix – 1999.
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Thiago de Araujo Pinho
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