O seguinte texto foi escrito pelo historiador e autor de ficção histórica Dr. Ian Mortimer e foi publicado originalmente no portal do Institute of Historical Research (IHR) em 2011. A tradução, feita por Pedro Toniazzo Terres, busca trazer para o cenário brasileiro a discussão acerca da literatura de ficção histórica e as possíveis contribuições desse gênero para a História, sobretudo sobre o ponto de vista da História Pública.
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“Ler o seu livro é como ler um romance,” é um comentário que historiadores populares muitas vezes escutam. Quando dito por um leitor comum, é um elogio: o reconhecimento da fluidez da escrita e de uma narrativa envolvente. No entanto, se um historiador usar estas mesmas palavras, trata-se de um insulto. Significa que “sua obra não é baseada totalmente em fatos”. Este é o motivo pelo qual o título deste ensaio irá provavelmente enfurecer todos os leitores desta revista, pois implica que os historiadores deveriam contar mentiras. Afinal, é isto que os romancistas fazem, não é? Inventam tudo quando não sabem os fatos sobre algo?
Eu devo explicar já de início que eu sou um romancista (James Forrester) assim como sou um historiador (Ian Mortimer), e eu escrevo história para o público geral assim como escrevo para artigos acadêmicos. Como um romancista, eu conto mentiras. Lorotas. Todos os romancistas históricos fazem isso. No meu caso, eu tenho personagens históricos como Sir William Cecil e Francis Walsingham fazendo e dizendo coisas que eles jamais fizeram ou disseram. Eu faço pessoas morrerem de causas das quais não morreram, eu uso linguagem moderna em suas falas, e eu mudo o nome das pessoas. Como historiador, eu não conto mentiras. Eu escrupulosamente referencio fontes primárias e secundárias. No entanto, eu aprendi muito sobre história escrevendo ficção histórica. E é esta experiência de aprendizado que eu gostaria de recomendar.
Dois fatores em particular são a base dessa experiência positiva. A primeira é simplesmente o desafio inerente em “recriar” um mundo passado. A ficção histórica requere de você respostas para perguntas sobre os aspectos da vida que você jamais pensou antes: Como as pessoas conversam com seus filhos e filhas? Lavam o cabelo? Trancam uma porta? Escovam os dentes? Se despem antes de dormir? Por quê era difícil remar abaixo da London Bridge durante a maré baixa? As tavernas serviam carne durante o Advento em 1567? Os médicos usavam barbas? Ao se confrontar com tais perguntas, você repentinamente percebe que seu conhecimento baseado em evidências acerca de um período simplesmente não é o suficiente; não o prepara para descrever em detalhes como uma mulher ou um homem passam um dia inteiro, muito menos como uma série de mulheres e homens diferentes passam um período de diversas semanas. Todas as evidências sobre o século XIV que você jamais lerá não serão suficientes para descrever a experiência de simplesmente caminhar rua abaixo na Londres de 1359 e pedir uma caneca de cerveja em uma taverna. Quão limpo é o chão? Há espuma sobre a cerveja? O barril fica em um porão? Por estes motivos a ficção histórica é, pelo menos em relação ao conteúdo histórico, insatisfatória. Haveria sempre como fazer melhor.
A construção de personagens é igualmente desafiadora. Uma historiadora ou historiador ao escrever história nunca precisa criar personagens: ele permite que estes emerjam a partir da evidência. Não é preciso ficar atento às inconsistências nas personalidades e características de seus personagens. Também não é preciso inventar formas de como as ações de um personagem pode influenciar o outro. Historiadores revelam as interações humanas através da análise de evidências das ações e palavras de uma pessoa em relação àquela outra pessoa. A criação de personagens fictícios que interagem um com o outro vai além de apenas imaginar o passado: requer que você o imagine e então e o altere, de forma gradual e crível, na imaginação do leitor.
Este é o motivo pelo qual a ficção histórica é tão difícil. Não importa de você se baseia na realidade ou inventa completamente, você ainda tem que criar um outro mundo que seja verossímil – uma fabricação que possa se passar como sendo o passado nas mentes dos leitores. Tendo em mente que muitos de seus leitores provavelmente serão colegas historiadores, esta fabricação tem que ser realmente muito boa.
Este não é o fim das dificuldades: há ainda a questão da escrita. Historiadores acadêmicos normalmente perdem a habilidade de escrever dramaticamente ou com empatia. Foram treinados para perder estas habilidades. A tradicional obrigação de ser “objetivo” impede que escrevam uma emocionante descrição de uma batalha, ou um relato romântico de um caso amoroso. Ainda que batalhas sejam sem dúvida emocionantes na vida real, e que casos amorosos sejam o epitomo da paixão, os historiadores acadêmicos não querem ser vistos se emocionando com o seu objeto de estudo. Intelectuais no geral aprenderam bem demais a arte de destilar a evidência até a sua essência básica, o líquido transparente da verdade sintética, e em uma instituição educacional, isto é tudo que é necessário. É fácil esquecer como não é na essência que a maior parte das pessoas estão interessadas, mas sim no mundo mais amplo que deu vida às evidências em primeiro lugar.
Forma e conteúdo são deixados em polos opostos na história acadêmica. Em biografias, em ficção, no cinema, no teatro e na poesia, ambas as coisas se unem de forma natural, e são consideradas complementares. Mas por que não escrever história acadêmica dramaticamente, atraindo dezenas de milhares de leitores? Por que não escrever no presente do indicativo? Por que não escrever um diário de uma outra pessoa? Por que não ser criativo? Por que não escrever ficção? Por que não escrever a biografia de alguém como se você fosse essa pessoa, como Peter Ackroyd fez em sua biografia de Oscar Wilde? Eu não consigo evitar de pensar que se alguns de nossos especialistas em Agincourt fossem escrever uma “autobiografia” de Henrique V, se fariam perguntas muito difíceis sobre porquê ele fez o que fez, e descobririam um temor e uma firmeza muito distantes da visão atual sobre o homem.
A segunda razão para dizer que a ficção histórica é um ótimo exercício educacional é mais filosófica. Todas as dificuldades acima identificam lacunas – uma falta de conhecimento dos aspectos da vida cotidiana, a falta de aspectos literários na escrita histórica acadêmica, e a falha em reconhecer pontos de vista alternativos. Muito mais profunda é a realização de que a história não trata primariamente do passado. Trata da natureza humana. O que faz algo histórico é a análise da natureza humana através do prisma de uma diferente era.
Sendo honesto, não foi durante a escrita de um romance que eu percebi isso. Foi depois de escrever dois romances e enquanto escrevia “The Time Traveller’s Guide to Elizabethan England”. Este último descreve o que uma pessoa encontraria se pudesse de fato voltar para o final do século XVI. Em determinado ponto, eu estava encontrando uma dificuldade imensa – de forma inexplicável, pois eu amo o período, e tinha muitas fontes primárias, e tudo estava planejado. O que eu percebi foi que, ao tentar replicar o formato que eu havia usado para o meu “Medieval Time Traveller’s Guide” (um guia similar para o século XIV), eu estava em um perigo constante em me repetir. Muitas das coisas que eu sentia que precisavam ser ditas sobre educação, velhice e higiene eram repetições de coisas que eu havia dito no livro anterior. O que isso queria dizer é que meus pontos de argumentação não surgiam a partir do período que eu estava estudando, mas sim de reações similares para estes diferentes critérios do passado. O que eu estava escrevendo era sobre meu entendimento das pessoas em todas as eras, não apenas sobre este ou aquele século.
Esta realização levou a outra – a de que isso é o que bons romancistas históricos fazem. Muitas vezes sem perceber, eles escolherão um período histórico para destrinchar algum aspecto da natureza humana. Em meu caso, eu havia escolhido colocar minha ficção no século XVI porque eu queria escrever sobre lealdade e traição. Lealdade a um cônjuge, ao estado, e à fé tinham grande ressonância no contexto do século XVI, muito mais do que no nosso pacato mundo de hoje. Eu usava a ambientação dos anos 1560 para amplificar aquilo que eu gostaria de dizer sobre pessoas.
História permite que vejamos a natureza humana de uma forma mais profunda. É tranquilo descrever o mundo atual, com suas guerras, a cobiça comercial, a filantropia, a coragem, o medo, etc.; mas quando se começa a contrastar o passado com o presente você passa a perceber que a humanidade têm uma profundidade muito maior do que o conhecimento atual permite aparentar. O “nós” deixa de ser sobre apenas você e eu, mas algo de centenas, até mesmo milhares de anos. Em algumas ocasiões nós tratamos nossos vizinhos com grande suspeita, ainda assim nós nos defendemos um ao outro frequentemente contra os inimigos. Nós sobrevivemos inúmeras epidemias que ceifaram grandes porções da nossa população, e queimamos pessoas vivas pelo que elas acreditavam. Traição, lealdade, amor e enganação – toda a vida humana está lá, mas amplificada além daquilo que nós pessoalmente poderemos experienciar no mundo moderno.
Esta é a razão pela qual historiadores deveriam escrever ficção histórica. Ela ensina sobre o quão pouco realmente se sabe sobre as minúcias do passado, e destrói a complacência profissional. Ela faz com que até mesmo o pesquisador mais experiente se torne mais humilde. Ela demanda que você pense de forma profunda sobre o caráter humano, e sobre como ele é criado, e sobre como as pessoas se integram. Mas acima de tudo ela mostra que há uma diferente forma de verdade além da medida de fatos e dados: verdades sobre a natureza humana que são atemporais, ou, pelo menos, mudam muito lentamente. E ela faz com que fique pensando que essas verdades, apesar de serem incomprováveis, são provavelmente as conclusões históricas mais importantes de todas, pois refletem aquilo que somos, e aquilo que podemos ser, tanto como indivíduos quanto como sociedade.
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