Presenças

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Ana Luisa Santos é artista visual da performance, nascida e residente em Belo Horizonte. Foi indicada ao Prêmio Pipa – premiação de grande relevância no âmbito da arte contemporânea no Brasil, e desenvolve pesquisas e produções acerca do corpo como fronteira variável, superfície de permeabilidade política. Para isto, a linguagem da performance desempenha papel central, à medida em que a presença de Ana se faz indispensável para a concepção de suas obras. A co-presença é um conceito fundamental para a artista, pois é através da participação do público que sua arte atinge o objetivo de movimentar, gerar acontecimentos, trabalhar as noções de poder e disputas na sociedade.

2014. Centro de Belo Horizonte, Minas Gerais. Uma mulher vestida apenas com notas de 10 reais caminha calmamente pela avenida lotada, como se procurasse algo ou alguém. Não demora muito, uma e outra pessoa se vira para tentar entender o que acabou de ver. O estranhamento inicial se torna, em poucos minutos, uma euforia quase desmedida: aqui, se inicia propriamente a performance. Isto porque, a partir do aglomerado formado ao redor de Ana, ouvimos falas variadas, vemos atitudes variadas. Afinal, o que poderia representar um corpo feminino vestido apenas com dinheiro, andando por uma das ruas mais caóticas de um centro urbano? Essa é a grande questão que a artista busca trazer, e as respostas do público vêm de possibilidades diversas. Irei comentar algumas, mas recomendo a quem lê este texto que assista e participe também deixando seu comentário abaixo.

No vídeo de 15 minutos que registra a performance, o público reconhece a figura humana trajada atipicamente de forma humana, ainda que com grande estranhamento. Inicialmente, ouve algumas falas como “se queria chamar atenção, conseguiu” e “se eu adivinhar quanto tem (valor total das notas que formam o vestido) posso levar?”. O público encara a performance como algo tão efêmero quanto caminhar por aquela rua. É possível dividir o público em alguns grandes grupos: os que o dinheiro, mas reconhecem que aquilo é tudo o que a figura feminina veste, e por isto não o pegam; aqueles que vêm a figura feminina (Ana) como alguém que está disponível para os olhares no mínimo desrespeitosos, e os que expressam apenas curiosidade e desejam tirar fotos

Algumas pessoas ensaiam um movimento para pegar as notas, mas procuram saber se esse dinheiro é mesmo a única roupa da mulher, voltando ao lugar de forma confusa. Mais ao final, um homem finalmente pega duas notas, após pedir permissão a Ana. O restante das pessoas reage com certa desaprovação ao homem, mas segue com grande estranhamento e demonstrando o interesse em repetir a atitude. A partir do momento em que Ana permite ao público que pegue as notas, o vídeo registra segundos caóticos: a multidão logo se aproxima de forma agressiva para recolher o dinheiro. A equipe de Ana aparece logo em seguida com um tecido para cobri-la e a levam rapidamente para fora do local, a artista permanece calma e confiante, pois atingiu seu objetivo.

A performance desencadeia uma série de questionamentos. A presença de Ana oscila entre o corpo trajado em dinheiro, e o dinheiro que cobre um corpo, e este é o grande dilema do público. O poder aparece de duas formas, e entra em conflito todo o tempo em que a artista se coloca frente a cada pessoa. Ainda assim, basta que se conceda a permissão, e o dinheiro vence. Caso a equipe da artista não estivesse por perto, o corpo feminino se tornaria um algo descartável, no sentido de que, se ela vestia apenas dinheiro, era apenas matéria. Em raros momentos viam-se pessoas que demonstrassem entender o ato como algo problematizador, ou que indagassem Ana sobre o objetivo de sua presença ali, naquele momento. O final da performance é um misto de euforia e revolta: aqueles que se aventuraram a pegar o dinheiro saem em polvorosa, rindo e pulando; já aqueles que observavam mais ao longe, se indignam com os que deixaram a mulher sem suas vestes e ainda provocaram o tumulto.

O conflito entre humanidade e materialismo é o fio condutor da concepção da obra de Ana Santos. Melindrosa é o titulo da performance. O termo, utilizado com frequência para falar das mulheres que se arrumavam de forma delicada, porém diferente das convenções de moda feminina da década de 1920, é ressignificado de forma potente. Um corpo na cidade, corpo feminino. Como caminha a figura feminina, em sua diversidade, pelas ruas? O melindre representado pela artista diz respeito à consciência do pertencimento de seu corpo a ela mesma, independente do que traja. Se o público percebe ou não este ponto, é a sua grande questão trazida.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Ana Luisa Santos. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 03 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/artistas/ana-luisa-santos/

 

 

 


Créditos na imagem: Ana Luisa Santos. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/artistas/ana-luisa-santos/

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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