Recepções

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I – Aforismos sobre Barato ou uma afronta à crítica

 

Barato (2011), de Ricardo Pedrosa Alves, orelha de Paulo Sandrini e posfácio de André Dick, é pedra, é pau, é um longo caminho.

O livro divide-se em seções (“música mutilada”, “bordejo”, “remerzbau” etc.), cujos textos são híbridos, mistos. Não vou traçar mapa, roteiro.

Digo do lido, como lido, como lidado e trato de dar tratos à bola e ver qual é que é desse Barato.

Faço colocar meus olhos numa roda de fumo. Vou na paulista, como paulista-paulista, como baiano, como carioca, como gaúcho, como leitor antropófago de Ricardo, poeta mineiro, paranaense? No lo creo.

Comecei a ler usando coturnos. No fim, com pés nus, li de agulhas, agulhadas, movido pelas costuras sintáticas de Ricardo no livro. Li na paulista, na carioca na roda de dar uma bola, como Pelé passar a bola.

Essa sintaxe me fez produzir suspiros dessa poesia. Não porque não flua, mas de difícil respiração para mim, que sofro da respiração; para mim que estreito sempre a respiração.

Faço aforismos sobre Barato. Afronto a crítica. Leio a poesia de Ricardo Pedrosa Alves como um objeto-livro lindo, belo. Corpo bem cortado. Como uma afronta à crítica, não por ser acrítico, sobretudo por ser crítico, escrito em tensão de crise.

Tudo que aqui falo é alegoria de poesia lida, porque metáfora continuada da lida. Não faço uma carta, não escrevo a Ricardo um e-mail, nem envio bilhete, nem telegrama. Um grama do Barato de Ricardo já seria overdose bem bacana. Parece que li poesia anos 90/2000 com cores anos 70. Sim, há surrealismos. Barroco, neobarroco, barroquismos? No lo creo.

Ricardo puxa o tapete da língua quando escreve em seu Barato. Não estende tapete vermelho para língua / linguagem, nem para língua / fala. Desarranja linguagem, linguagens. Desconstruções de Ricardo? No lo creo.

Punk, talvez. Violenta, agressiva, e fofa-phoda e melancólica e patética a poesia de Ricardo que na roda corre, que na roda carbura, evapora. Passo a bola.

“A gênese do fabulista” me parece poema central num livro em que nada é ou tem centro. Não que periférico, menor, como pode sugerir parte da suposta ambiguidade em que Barato se assenta. Vou além do sentido de barato que Ricardo engendra. Pouco caro, viajante, delirante, de preço módico, etc., seriam outros nomes da coisa. Prefiro pensar que Barato é ninharia, tutaméia, nonada, mas é efeito entorpecente de linguagem.

Barato sugere, por meio de seus efeitos (afetos) poesia dedicada, dispêndio. Não à toa tantos poemas dedicados à personae variadas. Barato é legal, maior barato, bacana, divertido, gostoso, mas critica mercadoria, é (e) critica fetiche. É uma “escrita em disparada” (esse conceito da professora da UERJ Ana Chiara), mais do que cheia de fluxos de consciência.

Barato é escrita que deseja, procura liberdade. Parece que no livro a linguagem é pouca, pequena, ninharia, tutaméia para ela mesma. Ela não dá conta. O barato é que permite sua realização, sua performance.

Barato alterna brevidades. Poemas mais ou menos curtos, mais ou menos longos, sendo que o poema longo “remerzbau” [sic] (pp. 49-71) se destaca ótimo, como um dos maiores baratos do livro. Lo creo.

Barato não faz concessões ao suposto leitor de poesia, a quem ler sua poesia. A linguagem, em sua maioria das vezes, obsessiva, suas formas híbridas surreais, não cativam leitor acomodado ou afeito às classificações prontas, soluções prontas, clichês. Justamente, Barato dissolve clichês, justamente.

Comecei a ler Ricardo Pedrosa Alves, de seu Barato, como disse de coturno, pois sua poesia assim me sugeria. Coturno é calçado trágico, da tragédia. Sandália é calçado da comédia. Pergunto-me, no fim das contas, no fim do barato, fumado tudo até a última ponta: não era descalço que por ai andávamos? No lo creo.

A poesia de Ricardo mete coturno na linguagem. A hipótese do calçado a mim se confirma. O que, para mim, não se confirma é que Barato seja um livro ninharia. Não é nonada, coisa pouca, pequena, baixa. De barato, Barato não tem nada. É ácido, corrosivo. Bateu na veia, deu barato. Lo creo. A isso sim, a esse delírio, dou fé e assino.

 

II – Brevidade de brevidade na boca: a propósito do Cair de Costas (Éblis, 2012) de Ronald Augusto

 

Li com a boca. Com dor de dente, cárie na raiz, gengiva exposta. Inegável manejo com a linguagem, as linguagens verbivocovisuais, verbais, visuais. Traquejo. Ronald sabe do riscado. Construção de linguagem, invenção, arranjo, desarranjo de composição compósita que não é composição. Densidades e respiros, disposições, humores, pathos. Tem Dante, mas não tem Beatriz a nos guiar, embora haja vulto, fantasma dela.

Li com o livro na perna. No colo, como se diz, Oswald lia. Posso te contar de algumas das exclamações que marquei e as páginas em que na numeração fiz círculos: página 41, a epígrafe de Machado; a página 43, número circundado; páginas 48/49, idem; página 51, onde terminaria o poema em “estilhaços”; páginas 53/54…

Como leitor, confesso, somente não li Cair de Costas antes por medo. Poeta feroz. Poesia vociferante, “voz feirante” da ironia. Poeta cão. Poeta cão sem plumas. Homem do Beira-Rio.

Fiz intervenções no livro, no exemplar a mim concedido. Sujei-o com minhas mãos de cigarro e chuva. Antes, impregnado objeto fechado, em meu escritório sendo defumado.

Terminada a leitura, me ocorre, no ponto final sem ponto final da leitura: o livro de Ronald Augusto é o caso de se cantar sem música que peixe bom dá no riacho. A brevidade é brevitas, aspecto lacunar, elíptico, telegráfico da gráfica de Ronald que, no posfácio de Cândido Rolim, é destrinchada. A brevidade é a resposta da poesia em diálogo.

No livro, pululam carpas de avermelhadas peles inscritas. Rosas roxas simbólicas de bordoadas.

Não quis explicar Ronald Augusto, nem a mim, leitor do poeta. O estranho (e bom, acho) é que o “Morro Velho” que me ocorreu no término da leitura foi totalmente inconsciente. E foi porque vi, no livro, muito peixe bom pescado pelo poeta, forjado (no melhor do termo) pelo poeta do Cair de Costas. Mas ouvindo a música, fiquei de cara com o inconsciente. A letra tem e não tem a ver. Tem a ver num não sei quê que me diz: o riacho de Ronald não é riacho fácil. É riacho de peixes raros, daí as carpas como signo, para mim, dessa raridade.

As coisas vão se formando. Assim como a obra é em progresso (em andamento), as recepções também o são. É evidente que causa efeito, impacto. Daí a dor de dente. É com dor que se lê, mas não dor piegas, dramática no sentido comum do termo. Com dor de intrínseco, de intenso, de tensão de riacho rio denso.

 

III – Exclamações e sublinhados: a poesia olhante /pensante de Cândido Rolim

 

Antes de tudo, ou antes, de nada, antes, quero deixar dito que o que escrevo aqui não é crítica literária, não é artigo, não é resenha, não é ensaio. É um cisco, um risco, uma ciscada. Escrevo aqui uma espécie de recepção de poesia que foi lida, que foi lidada a partir de Fragma (Edição do Caos, 2007) e de Pedra Habitada (Age, 2002). E se inverto a ordem cronológica das referências, as datas, justamente é para deixar expressa a arbitrariedade de minha leitura.

Um dia, me perguntaram: qual o motor de sua poesia? Não sabendo responder, disse: o olho, o olhar e tudo que por entre eles, olho e olhar, entra e sai. E tudo que por meio deles sai. Passados muitos anos, muitos olhos, muitos olhares, muitas coisas vistas, guardadas, resguardadas, re-olhadas, leio dois livros de Cândido Rolim, a quem nunca vi pessoalmente, que apenas conheço virtualmente, pelo cyber space e por intermédio de Ronald Augusto, que conhecia apenas virtualmente, mas outro dia o conheci pessoalmente.

Entretanto, não são de virtualidades, de pessoalidades que trato aqui. O que escrevo hoje, aqui, é o fio de olho, o fio de tempo, o aforisma e sobre a poesia enxuta, pensada, pensante que faz o leitor pensar, que faz o leitor olhar, de Cândido pedra e fragma, fragmento.

Fragma é composto, como livro, de ditos agudos, espécies de epifonemas, de aforismas, sentenças, cuja característica é a da poesia em chave breve, da brevitas antiga. Olho que vê, franja que se abre. É retina, olhar. Às vezes raridade, às vezes fechada, pois de olhos fechados, com olhos da alma, olhos incorpóreos. Outras vezes poliótico, poesia multifacetada. Não foi vista, não se viu, se quer vista, pois cheia de pálpebras. Outras vezes ainda é cega, pois fala da cegueira, e de fabricação, de fábrica, de fabrico. Tem ironia fina como finas as pestanas, os cílios a cada virada de página.

Reconhece o leitor, à página 77, o motor de Fragma no fragmento “nem tudo chega inteiro ao visível”. Tentativa explicitada da captação que não capta, pela impossibilidade mesma de seu pressuposto, de seu rosto, de seu olho.

Se eu escolhi as palavras acima para dizer sobre Fragma, escolhi, pois as retirei do livro. Elas estão lá, como olho, olhar, retina, vista. E só dar uma olhada que se verá que estão e se repetem sistêmicas, sistemáticas, mas também misturadas, recompostas, rearranjadas. Nas páginas, enquanto lia, pensava e grafava exclamações quando a luz era intensa e o olhar cegava.

Pedra Habitada é pedra breve, passageira, também de caráter lacunar, elíptico, eclipsado. O livro se faz na chave brevitas da linguagem como Fragma, porém menos pontiaguda, menos aguda, menos alfinetada, pois redonda em forma de poemas curtos, com estrofes ou desprovidos de estrofes. Nessa pedra, Cândido Rolim não abandona o olho, o olhar, nem a pálpebra, nem a luz, nem a imagem, mas do olho às vezes vertem lágrimas, saem águas, gotas, chuvas, trovões. É poesia mais do olho do que da imagem propriamente. Está em paisagem, na janela, no entrar e sair da luz.

Se eu escolhi as palavras acima para dizer sobre Pedra Habitada, escolhi, pois as retirei do livro. Elas estão lá, como olho, olhar, pálpebra, luz, lágrima, água, gota, trovão. É só dar uma olhada que se verá que estão e se repetem sistêmicas, sistemáticas, mas também misturadas, recompostas, rearranjadas. Nas páginas viradas enquanto lia, as via. Sobre elas pensava, exclamava, deixando minhas marcas. Talvez por isso tenha chamado essa breve recepção da poesia de Cândido Rolim de Fragma e de Pedra Habitada de exclamações e sublinhados. Também e, sobretudo, por pensar ser essa poesia uma poesia sublinhada.

Penso que minha resposta sobre o motor de minha poesia, embora dita de modo quase impensado, faz sentido. Se eu trouxe para cá a tal resposta foi porque tenho a convicção de que o que move a poesia de Cândido dos dois livros lidos por mim é algo muito caro a mim, muito semelhante, muito homólogo, de muita afinidade. O motor tanto de Fragma quanto de Pedra Habitada é o olho, o olhar e tudo que por entre eles, olho e olhar, entra e sai. E tudo que por meio deles, olho e olhar, sai para se pensar e fazer o leitor pensar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALVES, Ricardo Pedrosa. Barato. Curitiba: Editora Medusa, 2011.

AUGUSTO, Ronald. Cair de costas. Porto Alegre: Editora Éblis, 2012.

ROLIM, Cândido. Fragma. Fortaleza: Edição do Caos, 2007.

ROLIM, Cândido. Pedra Habitada. Porto Alegre: AGE, 2002.

 

 

 


Créditos na imagem: Beginners I, arte de Marina González Eme. Disponível em: https://www.behance.net/gallery/52427151/Blank?tracking_source=project_owner_other_projects

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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