A filosofia no filme de Diego Felipe e Vladimir Santafé

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O que é filosofia e qual a sua importância? Professores, pesquisadores e estudantes de filosofia podem ser considerados filósofos? Existe filosofia brasileira ou por aqui nós só repetimos antigos conhecimentos europeus? Como ensinar filosofia no Brasil? Essas questões são recorrentes para todos que lidam com esse campo de estudo e as possíveis respostas a elas são tão diversas quanto são plurais os que se dedicam ao filosofar. O recém-lançado filme Ensino de Filosofia: em defesa do pensamento crítico traz à tona esses e outros temas urgentes.

Lançado em 15 de outubro de 2020, na plataforma de acesso público Bombozila, o documentário principia com referências a pensadores combativos como Sócrates, Spinoza, Marx, Hannah Arendt e Angela Davis que foram perseguidos, duramente atacados e, em alguns casos, presos, torturados e até mesmo mortos por questionarem o poder estabelecido ao defenderem sua autonomia de pensamento e a liberdade de expressão. Os cineastas Diego e Vladimir sabem que, dos pequenos gestos às grandes ações, tudo é um ato político, até mesmo quando seus próprios agentes, por dissimulação ou convicção, se anunciam como isentos ou imparciais. A suposta neutralidade não existe, tudo é política e, partindo desse pressuposto, o média-metragem apresenta claras tomadas de posição. A filosofia é identificada ao pensamento crítico que luta contra as diversas faces do autoritarismo e suas recorrentes tentativas de cerceamento das liberdades individuais e coletivas.

Presente nos currículos brasileiros desde o período colonial através das primeiras instituições católicas de ensino e permanecendo ao longo de todos os governos republicanos modernos, o filme desmistifica a tão repetida versão de que a ditadura militar teria proibido ou retirado a filosofia das grades curriculares. Como recorda a professora Dirce Solis em entrevista para o documentário, a partir de 64 não houve proibição explícita à presença da filosofia no Ensino Básico. O que ocorreu é que sua permanência acabou se tornando impraticável, sobretudo, diante da obrigatoriedade de incluir as recém-criadas Educação Moral e Cívica e OSPB (Organização Social e Política do Brasil) em 1969. Disciplinas que traziam elementos filosóficos e sociológicos, porém sem o necessário incentivo e liberdade para o questionamento e a problematização, já que eram difusoras da ideologia vigente e desempenhavam mais a função de propagandistas do governo militar da época do que de espaço autônomo para debater os comportamentos e valores da sociedade. Apesar desse cenário hostil para estudos e práticas que fomentassem o livre exercício do pensamento crítico, instituições de ensino como o Colégio Pedro II, os colégios de aplicação e alguns colégios confessionais mantiveram a filosofia em seus currículos. E muito embora fossem escassas as faculdades laicas que oferecessem formação específica em filosofia, ela continuou presente enquanto disciplina complementar de praticamente todos os cursos de graduação e de pós do país.

No fim dos anos 70 começaram a se intensificar mobilizações que reivindicavam maior presença da filosofia na Educação Básica. Merece destaque a criação da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF) em 1976, como associação de resistência na produção e difusão de conteúdos filosóficos, de luta por melhores condições de trabalho e por maior participação da filosofia na formação dos estudantes. No entanto, somente em 2008, no governo do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), foi sancionada a lei 11.684 que estabeleceu a obrigatoriedade da filosofia enquanto disciplina independente no Ensino Médio. As instituições de ensino tiveram até 2012 para implementá-la. Foi um período de muita fertilidade e visibilidade para a filosofia. Surgiram diversos novos cursos universitários para formação filosófica específica e ocorreu uma revitalização e expansão dos já existentes. Proliferaram atividades filosóficas públicas e particulares, stricto e lato senso, de longa e curta duração. Cursos, palestras, seminários, debates, grupos de estudo, reedições e novas publicações em livros e periódicos acadêmicos e vendidos em bancas de jornal e até mesmo programas TV dedicados especificamente à filosofia, inclusive em canais abertos de grande audiência. Foram anos de bastante popularidade e (re)descoberta da filosofia para muitas pessoas.

Também é importante lembrar que desde 2003 estava em vigor a Lei 10.639 que tornou obrigatória a inclusão dos conteúdos de história e culturas Afro-Brasileira e Africana em todos os níveis de ensino no país. É crescente a preocupação dos pesquisadores brasileiros com o eurocentrismo e o etnocentrismo tão presentes na história canônica da filosofia. Tem sido cada vez mais questionada a suposta certidão de nascimento grega da filosofia, assim como o apagamento de diversas mulheres filósofas de sua história tradicionalmente narrada por homens. São cada vez mais frequentes os questionamentos a respeito das fronteiras e possíveis intercâmbios entre o filosófico e o não filosófico. No filme, a professora Helena Theodoro destaca que o pensamento europeu sempre se pautou por um sentido universalista de verdade de acordo com a qual cultura e civilização seriam exclusividades europeias, cabendo a eles, portanto, a estranha crença numa espécie de dever missionário de civilizar os demais povos. Para superar esse racismo, Helena enfatiza a importância do respeito pela diversidade e a necessária presença do ancestral sentido de solidariedade do Axé na filosofia. Trata-se, em linhas gerais, de perceber que não se vive isoladamente, pois, diferente do individualismo europeu, no Axé há uma noção de família extensiva, não biológica, em que os laços afetivos entre as pessoas são mais fundamentais que o parentesco direto convencional: “família é quem pensa junto, senta junto, está junto na tristeza e alegria”. Não basta que os familiares sanguíneos estejam bem, mas há que se empenhar pelo bem estar social coletivo de todos da atual e das futuras gerações, cuidando com igual atenção de tudo que integra o meio ambiente.

Em 2017 ocorreu uma nova reforma do Ensino Médio brasileiro que extinguiu a obrigatoriedade da filosofia. A lei 13.415 é semelhante a do regime militar dos anos 60 no sentido de não proibir a presença da disciplina, mas dificultar significativamente a sua permanência. Sancionada em um período político conturbado, de sucessivos cortes nas verbas públicas destinadas à educação, delibera que as instituições de ensino passem a oferecer itinerários formativos a serem escolhidos pelos estudantes. A consequência previsível dessa lei será privilegiar as disciplinas obrigatórias e os itinerários mais cômodos para os gestores, o que novamente acaba por excluir a filosofia da maioria dos estabelecimentos de ensino.

“A filosofia é portadora de más notícias […] tematiza questões sociais desconfortáveis […] somos emissários dos problemas que a escola não quer ouvir”, afirma o professor Wallace Lopes em depoimento presente no filme. Ou seja, a filosofia ajuda a ver como problemático o que até então soava com habitual, familiar, já conhecido. Desestabiliza uma aparente e precária segurança das respostas prontas e dos hábitos automáticos ao colocar questões nem sempre agradáveis ou fáceis de lidar. Valoriza e incentiva que os estudantes pensem autonomamente a sua própria realidade. Nas palavras da professora Carina Blacutt, entrevistada para o documentário, os alunos começaram a se perguntar “por que na minha escola tem uma quadra que tá fechada? Uma piscina interditada? Por que não posso repetir almoço se tô com fome? Questionamentos que não ficaram só no pensamento, mas partiram pra ação.” Neste sentido, o filme também mostra imagens de manifestações protagonizadas por estudantes e profissionais da educação ocorridas nas ruas e nas instituições de ensino de diversas cidades do país, particularmente nos anos de 2016 e 2017. Foram mobilizações pela permanência da filosofia, da sociologia, do ensino de artes e da educação física nos currículos escolares. Também contra o corte de verbas governamentais destinadas à educação, contra o fechamento de escolas públicas e contra qualquer tipo de decisão autocrática em assuntos educacionais que não respeite o devido protagonismo da comunidade escolar diretamente envolvida nas deliberações.

Paulo Freire, patrono da educação brasileira, alerta sobre os riscos de uma educação bancária acrítica em que somente o professor é considerado detentor de conhecimentos que ele paulatinamente “deposita” na mente dos alunos ignorantes para que eles os memorizem e reproduzam em avaliações tradicionais com o único objetivo de serem aprovados na disciplina. Em contrapartida, Paulo Freire defende uma educação libertadora com acentuada criticidade em que os diferentes saberes dos professores e alunos são igualmente reconhecidos e respeitados. Nessa concepção educacional, por ele também denominada problematizadora, pretensos conhecimentos superiores não são meramente transferidos do professor para os alunos, mas são criadas estratégias para produção coletiva de novos saberes, levando-se em conta o momento histórico e o contexto social dos envolvidos nesse criativo processo de ensinar e aprender. É óbvio que a filosofia enquanto disciplina não detém o monopólio da crítica no ambiente escolar. Certamente há muitos exemplos de professores de filosofia “bancários” que se limitam a expor uma história fria, distante e abstrata da vida e obra de antigos pensadores europeus etiquetados como filósofos pela tradição eurocêntrica. Contudo, tendo por origem e definição básica o pensamento crítico, quando devidamente conduzida, a aula de filosofia pode se tornar um espaço privilegiado para a prática de uma educação problematizadora que vai muito além de meramente instrumentalizar mão de obra domesticada para o mercado de trabalho.

Considero bastante emblemático que grande parte das entrevistas e cenas do filme tenham sido gravadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Primeira instituição do país a adotar política de cotas para negros, indígenas e estudantes egressos da rede pública de ensino. Após sucessivos cortes de verbas, o ano de 2017 foi particularmente grave para a UERJ, que se viu obrigada a um longo período de paralisação das suas atividades. Alegando crise financeira, o governo do estado ficou meses sem pagar os salários dos servidores e sem repassar a verba total destinada à manutenção da universidade. Felizmente a UERJ resistiu a essa dura crise e conseguiu se recuperar. Realizei minha formação em filosofia nessa instituição alguns anos antes disso. Devo boa parte de minha visão de mundo, leituras e práticas profissionais às aulas, encontros e diversas atividades que a UERJ me proporcionou. Infelizmente não conheci nem o Diego nem o Vladimir na época em que eu frequentava mais assiduamente a faculdade. Mas posso afirmar que no começo dos anos 2000 havia pouco interesse e até mesmo preconceito de muitos professores e estudantes de filosofia com relação à formação em licenciatura e por questões pedagógicas referentes ao ensino da disciplina. Neste sentido, é fundamental destacar a importância do trabalho desenvolvido pela professora Dirce Solis no Departamento de Filosofia da UERJ que foi determinante para mudar essa mentalidade na instituição. Em 2007 ela participou da criação do Laboratório de Licenciatura e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia (LLPEFIL), dedicado a tratar especificamente dessas questões que foram durante muito tempo negligenciadas pela maioria dos demais pesquisadores e docentes da área. No ano de 2006 também foi criado o Grupo de Trabalho Filosofar e Ensinar a Filosofar, pelo professor Walter Kohan da Faculdade de Educação da UERJ, uma das principais referências no tema. Agora nos cabe seguir lutando e trabalhando para manter e expandir essas importantes conquistas.

Como se sabe, desde março de 2020 as aulas presenciais do Ensino Básico estão suspensas no Brasil e em muitos outros países do mundo em decorrência da pandemia de COVID-19. O contato dos professores com os estudantes tem se dado através de atividades pedagógicas remotas emergenciais. Muito provavelmente o que estamos vivento neste momento mudará em definitivo as relações de ensino-aprendizagem e dentro em breve começará a ser escrito um novo e imprevisível capítulo da longa história da filosofia no Brasil, certamente merecedor de muitos outros documentários da relevância e qualidade deste que foi feito por Diego e Vladimir.

 

 

 


Créditos da imagem: Portal Factótum Cultural / Disponível em: https://factotumcultural.com.br/2020/10/17/ensino-de-filosofia-documentario-denuncia-desmonte-do-pensamento-critico-na-educacao/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Tiago Barros

Doutor em Filosofia pela UERJ e professor de Filosofia do IFRJ.

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