HH Magazine
As Ciências Humanas e os Desafios do Século XXI

Resenha da novela “O Recobramento de Pelágia”

“Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé, sobretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada e ei-lo em presença da vida futura” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p. 632)

 

Em um mundo medieval, muito distante de carros, Instagram e algoritmos, cercado de instituições poderosas e até inquestionáveis, dois personagens se destacam: um líder religioso, Nuno, e uma prostituta em busca de redenção, Margarida. Ambos fazem parte de uma trama complexa de intrigas, questionamentos e uma boa dose de angústia, algo muito comum em textos existencialistas. O tom existencial da aventura não demora de aparecer e transborda logo nas primeiras páginas, como no capítulo onde o leitor encontra Nuno na cidade bíblica de Antióquia. Sua personalidade, seus objetivos e até suas contradições brotam imediatamente da página, sem qualquer traço de maquiagem. Nos primeiros segundos da trama, o leitor é convidado ao universo ficcional de Américo Venâncio, uma mistura de século XIV, pitadas de Europa e várias doses de ficção. Além disso, as motivações dos personagens, os contornos do cenário, e até as expectativas do próprio leitor, ganham corpo ao longo da leitura, em um ritmo leve e tenso, rápido e lento, suave e áspero. Sem dúvida, oxímoros são estranhos em um tratado filosófico ou em uma palestra pomposa de acadêmicos abstratos, mas são completamente bem-vindos em uma jornada literária, desde que o leitor abandone a lógica entediante da vida cotidiana.

Embora seja um texto ficcional, com personagens forjados na cabeça criativa de Américo Venâncio, detalhes históricos, e a própria estrutura de linguagem, são extraídas de documentos reais, resultado de décadas de pesquisa no campo dos estudos linguísticos. Esse fundo empírico se confunde com o imaginário de especulações literárias, criando uma zona indiferenciada onde o real e o ficcional não apenas se tocam, mas se confundem em um mesmo fluxo de palavras. A sua reinterpretação da história de Santa Pelágia, uma cortesã do século V reverenciada pela igreja ortodoxa por sua trajetória redentora, segue um percurso muito interessante, diria até inesperado. O autor toma como ponto de partida uma narrativa mística, com referências teológicas sofisticadas, embora sempre com uma pretensão secular de fundo, da mesma forma que Nietzsche usou Zaratustra, também uma figura religiosa, como base de um dos seus livros mais ácidos. Essa subversão interna do texto, ao usar um personagem religioso como um ponto de partida laico, define muito bem o estilo literário de Américo Venâncio, da mesma forma que filmes como “Conclave”, candidato ao Oscar de 2025, seguiu a mesma estrutura “nietzschiana” de narrativa. Em outras palavras, “o Recobramento de Pelágia” centraliza o cristianismo como um objeto de análise, um tipo de conteúdo, digamos assim, mas não enquanto uma forma que organiza os rumos da história, essa bastante secular, talvez até exageradamente secular.

O enredo é intenso, com personagens ficcionais que beiram a metáfora, mas não qualquer metáfora. Nos limites metafóricos de Nuno, e talvez nas fronteiras metonímicas de Margarida, uma crítica escapa pelas entranhas do texto. A Igreja, enquanto uma instituição clássica, e até formadora do que muitos chamam de mundo ocidental, é o grande alvo do romance… pois é, eu disse “alvo”. Ao longo das páginas, depois de percorrer alguns metros de narrativa, já é possível sentir o cheiro do que chamo de literatura iconoclasta, uma forma de escrita ousada, ácida e perigosa. Se eu não conhecesse o autor, se Américo fosse apenas um significante vazio estampado na capa de um livro aleatório, eu apostaria que ele é um ateu, ou pior, um indivíduo de humanas. Como sociólogo de formação, e com doutorado em iconoclasmo, eu compartilho também desse gesto pecaminoso, desse vício iconoclasta, ou seja, essa mania obsessiva em mergulhar nas profundezas contraditórias das instituições, das pessoas… de mim mesmo. Eu não apenas entendo essa atitude literária, como a reconheço no meu próprio corpo, da hora que acordo até quando o sono vem. Na verdade, esse é o destino inevitável de indivíduos de humanas, nada mais do que rastrear o tecido de realidade, observando falhas em sua costura, além de hipocrisias, incoerências e crises, seja de uma forma teórica, com conceitos pomposos e raciocínios abstratos ou, como no exemplo de Américo Venâncio, através de arquétipos, metáforas, jogos de linguagem e um toque de exagero retórico, o que chamo de atitude estética. Não seria essa a base da criação das ciências humanas, segundo Foucault com suas palavras cheias de coisas? Existimos em uma jornada infinita, eu diria até cansativa, em busca de inconsciências, sombras ocultas em páginas, gestos, corpos… instituições. Seria o “Recobramento de Pelágia” uma espécie de psicanálise literária, talvez uma busca pelo inconsciente religioso, aquilo que escondem, aquilo que temem, aquilo que negam, aquilo que são, mas não confessam?

O narrador da história é distante, não se confunde com os personagens descritos, mas os desconstrói por dentro, lançando dúvida em cada detalhe. Quando elementos místicos ou religiosos são mencionados na trama, um toque de suspeita toma conta do narrador, além do uso de expressões como “eles acreditam”, “segundo se prega”, “dizia-se”, “os alegados milagres”, deixando claro seu distanciamento físico e ideológico da história. Ao contrário de um narrador que simplesmente expande os contornos da narrativa, essa figura no “Recobramento de Pelágia” parece testar os personagens, como se fossem objetos de uma investigação profunda, iconoclasta.

 

[Jacobo] parou um pouco sob uma oliveira, sentou-se recostado ao pé daquele tronco seco e bruto e buscou refletir sobre o que testemunhara até aquela parte do caminho. Perguntou-se por que aquele que talhava a lenha fazia a carga cada vez mais pesada para si. Será que viveria em muitos pecados mortais e não queria fazer penitencia para os diminuir progressivamente a cada dia e por isso acrescentava mais pecados à carga que já não podia levar? E o que tirava a água da lagoa e a colocava na cisterna rota e voltava à lagoa para pegar mais água? Seria aquele que fazia boas obras, mas que não tinham qualquer efeito e assim perdia toda a fazenda, não podendo, caso morresse agora, salvar-se pelas obras que fez, em razão de as ter feito, em vão? Depois, pensou nos dois homens que levavam a trave atravessada. Será que se tratava de homens que pensavam querer fazer justiça um ao outro, mas que na verdade agiam por soberba e superioridade, que cada um julgava ter em detrimento do outro, não permitindo, assim, que um entrasse primeiro, como se isso fosse diminuir-lhes o valor? (FILHO, 2025, p. 99).

 

O iconoclasmo, nesse sentido, tem três grandes dimensões na obra, exploradas em detalhes ao longo dos seus onze capítulos: 1) pelos personagens e suas desilusões e quebras de expectativa, como no exemplo do monge religioso que descobre em si mesmo uma vaidade nunca antes suspeitada, no capítulo IX; 2) pelo cenário e sua descrição claustrofóbica e quase panóptica; e 3) pelo próprio narrador com seu ceticismo investigativo. Esse triângulo iconoclasta é a base da história, o que sustenta o enredo como um todo, numa mistura saborosa de tensão e angústia. Nuno até tenta preservar o seu senso de realidade mística, em um confronto desesperado com as suas próprias contradições, mas cada centímetro do enredo é “um desvio perigoso em sua vida e para seus planos de devoção à fé” (FILHO, 2025, p. 70). Nada permanece intacto, tudo desaba diante de marteladas iconoclastas…

Quando cheguei na página 20, uma lembrança invadiu minha memória, um livro de um dos meus autores preferidos: Dostoiévski. Sem dúvida, Américo Venâncio é um brasileiro com raízes portuguesas, e Dostoiévski, um russo de tempos e terras geladas, mas eu percebi alguns pontos de contato, se me permitem o exagero na comparação. As duas histórias, “O Recobramento de Pelágia” e “Os Irmãos Karamazov” compartilham de uma mesma dúvida trágica, um mesmo tipo de coceira no topo da cabeça: “A principal questão a ser perseguida em todas as partes desse livro é aquela mesma com que sofri, consciente ou inconscientemente, em toda a minha vida: a existência de Deus” (DOSTOIÉVSKI apud CAMUS, 2017, p. 80). Em outras palavras, “Deus existe?”, pergunta o leitor angustiado em busca de um caminho consistente.  A pergunta é a mesma, mas a resposta oscila conforme o corpo do literato, assim como sua orientação política e toda uma bagagem de experiências de fundo. O progressismo iconoclasta de Américo Venâncio, ao contrário do existencialismo cristão de Dostoiévski, oferece uma resposta mais ácida, talvez até mais fria, embora eu me recuse a chamar de pessimista. Seguindo o jogo de metáforas do “Recobramento de Pelágia”, um raciocínio meio amargo brota da minha cabeça quando alcanço a página 105, o desfecho: “Como Deus pode existir em um espaço tão podre, contraditório, hipócrita, sujo, um universo povoado por instituições em ruínas?” No universo de Américo Venâncio, como é comum em indivíduos de humanas, não existe nada transcendente, universal, sólido, muito menos estável, mas a pura contingência de dedos antropocêntricos… nada mais, nada menos. Ao revelar essas contradições do edifício religioso, com um destaque ao cristianismo, personificadas em seus dois personagens principais, o autor questiona a existência da própria existência, além de lançar suspeita sobre algo tão nobre, perfeito e poderoso como Deus. Dostoiévski, ao contrário, segue por um outro caminho, desafiando a acidez do “Recobramento de Pelágia”. Diante da pergunta “Deus existe?”, a resposta Dostoiévskiana segue o percurso oposto: “são justamente as contradições institucionais, a hipocrisia dos humanos, o seu fedor de contingência, a certeza que justifica a objetividade de Deus”. Quem tem razão nesse espaço agônico de jogo, nesse campo de batalha teológico; quem, de fato, descreve melhor a natureza das coisas? O iconoclasmo ácido de Americo ou o iconoclasmo redentor, talvez até dialético, de Dostoiévski? Não existe resposta certa nesse território, apenas autores diferentes, com corpos diferentes, transformando pedaços de papel em um objeto catártico poderoso, uma parte de quem são e até do que precisam.

Seria o livro uma extensão do corpo do escritor, como uma prótese em um membro amputado? Caso seja, provavelmente é uma parte sensível, íntima, dolorosa, talvez até vulgar. Por trás de dezenas de cadeias metafóricas, vários jogos de linguagem e pitadas de exagero retórico, Américo Venâncio se despiu nessa obra, sem pudor, sem receio, sem barreiras. Eu jamais diria que “O Recobramento de Pelágia” é um livro destinado a qualquer um, afinal, nada no mundo é destinado a qualquer um. Existem coisas que me afetam, outras não, por isso uma obra literária é um cruzamento de corpos, um vínculo entre quem escreve e quem lê, como se fosse um pacto secreto, silencioso. O existencialismo ácido e iconoclasta desse livro pode machucar alguns, pode emocionar outros, pode produzir lágrimas ou risos, mas, com certeza, é uma obra inesquecível, porque carrega um corpo de fundo, uma trajetória pulsante, eu diria até um cheiro agridoce, o meu preferido.

O tema da redenção também é costurado de formas diferentes nas duas obras. Enquanto em Dostoiévski ela é um elemento possível, mesmo apesar de crises e comportamentos hipócritas, a redenção em Américo aparece, no mínimo, como uma fantasia sustentada por instituições corruptas e, no máximo, um delírio de criaturas desesperadas em busca de conforto existencial. Isso reflete também o tom existencialista do livro, muito mais ácido, quase como uma dialética negativa, sem qualquer síntese, a não ser um movimento de pura resistência. O conceito de redenção é descontruído pelo triângulo iconoclasta da novela (personagens, cenário e narrador), já que transcendências não existem na história, a não ser descritas como simples interpretações, sonhos, delírios ou crenças institucionais. Enquanto em Dostoiévski “redentor” é um adjetivo possível, um troféu no final de uma esteira gigantesca de experiências instáveis, em Américo, ao contrário, ele é uma pura ficção. Segundo as palavras do narrador iconoclasta, “e por mais que a natureza humana procure se redimir de seus vícios, mais parece a sua natureza reclama o contrário” (FILHO, 2025, p. 54). Seria possível, portanto, falar de uma redenção laica no enredo, um tipo de carcaça religiosa sem o seu miolo religioso? Talvez, mas não é muito claro o que isso significa, mesmo depois que todos os personagens finalizam seus arcos e convergem em um mesmo ponto de desfecho.

Deus como instância metafísica não aparece aqui, nem mesmo como vulto distante e agnóstico, apenas enquanto objeto sociológico de pura desconstrução, um suposto efeito de jogos de poder e de linguagem. Em terras dostoieviskianas, Américo Venâncio é Kólia, não Aliocha: “[…] nada tenho contra Deus. Decerto, Deus não é senão uma hipótese…mas…reconheço que ele é necessário a ordem… à ordem do mundo e assim por diante… e se ele não existisse, seria preciso inventá-lo” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p. 540). Por isso, não se enganem com as pregações do Bispo Nuno, com os sonhos sacralizantes de Margarida, ou os conselhos místicos e inocentes de Jacobo, “O Recobramento de Pelágia” não é um livro religioso, a não ser enquanto conteúdo, jamais em sua forma. Sua hermenêutica da suspeita, encarnada em seus dois personagens principais e em seu próprio narrador, adiciona gotas perigosas de acidez no caldeirão da narrativa, o que pode deixar um certo gosto amargo na boca do leitor desavisado. Aos que preferem coisas doces, aos que sonham com nuvens de algodão e florestas com animais falantes ao estilo Disney, eu não recomendo a leitura… vá comer outra coisa!!!

Se eu pudesse levantar alguma crítica, com todo o respeito possível a Américo, eu arriscaria um detalhe, apenas uma pequena cutucada inocente. Afinal, vocês sabem que elogios não alimentam a barriga de um sociólogo, apenas oferecem um aperitivo antes da moqueca chegar. De qualquer forma, a minha crítica não destaca um grande problema, nada que tenha prejudicado o ritmo de leitura, muito menos a construção dos personagens e o contorno do enredo. Se o texto foi tecido como um gesto iconoclasta, se essa era a premissa nos bastidores, por que não saborear esse iconoclasmo com calma, guardando o apetite até o momento mais adequado? Logo nos primeiros segundos de leitura Américo lança a carta coringa, jogada com força na mesa, repleta de convicção. Por que revelar a hipocrisia da Igreja nas primeiras páginas, ao invés de ser um lance estratégico no meio ou no fim da trama? Sem dúvida, existem grandes histórias que oferecem o desfecho no inicio da jornada, como o próprio Édipo Rei de Sófocles, embora numa peça trágica a proposta é diferente, apresentando um fundo pedagógico e místico oposto ao que encontramos em um romance com seu ceticismo moderno. Observem, por exemplo, livros como “Irmãos Karamazov”, histórias parecidas com “O Recobramento de Pelágia”. Em Dostoiévski, existe um religioso em crise, além de um enredo encharcado de ceticismo, mas com uma diferença sutil. As contradições da fé do personagem principal, Aliocha, assim como do cristianismo enquanto instituição, aparecem apenas no meio da trama, depois que certas expectativas são colocadas sobre a mesa. Primeiro, conhecemos com calma os personagens, o cenário, ou seja, todo o universo ficcional nos bastidores, e apenas depois, bem depois, gotas contraditórias começam a manchar o tecido da narrativa, como na cena onde Aliocha descobre que seu mentor religioso começou a feder depois da sua morte, lançando o personagem em uma espiral de dúvidas sobre a própria fé.

A obra “O Recobramento de Pelágia” é uma história muito bem costurada, além de um mergulho profundo em terras distantes, em épocas mais sólidas, nada parecido com o século XXI e sua complexidade quase esquizofrênica.  Em uma curta novela de cem páginas, Américo Venâncio oferece um presente aos amantes de literatura ou aqueles que apenas buscam um sobrevoo exótico por épocas antigas. Como a meta de um romance não é uma simples constatação epistêmica (verdadeiro ou falso), mas um compromisso estético de fundo, qualquer um pode aplaudir esse texto, reconhecendo seu mérito literário desde as primeiras páginas. A obra, em si, é costurada com cuidado, com precisão, além de ser um verdadeiro mergulho em águas existenciais. Sem dúvida, em alguns momentos a temperatura do texto é muito gelada até mesmo para mim, o sociólogo iconoclasta, o que me impede de um mergulho mais fundo. Quando a temperatura começa a baixar, eu simplesmente saio um pouco da água, retorno até a terra, me aqueço com cobertores institucionais, depois mergulho mais uma vez com o corpo inteiro, mas sempre com cuidado, com medo da hipotermia. Sem dúvida, esse oceano literário é frio, gelado até, mas com um visual lindo numa noite escura onde a lua é a única convidada. Se ficou curioso, acesse o site da Ipé das Letras e mergulhe também nessa história medieval: https://www.livrariaipedasletras.com/ficcao/geral/o-recobramento-de-pelagia. Aos amantes de uma escrita existencialista, salpicada de traços históricos e refinamentos literários, “O Recobramento de Pelágia” é um ótimo pedido. Sendo uma novela, e por natureza um texto mais curto, em um simples final de semana é possível passear pelo seu enredo, mergulhando fundo em suas águas medievais ou apenas refrescando o corpo na beira da praia. De qualquer forma, venha se molhar um pouco!!!!

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2017.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazov. São Paulo: Editora abril cultural, 1970.

FILHO, Américo Venâncio Lopes Machado. O Recobramento de Pelágia. São Paulo: Ipê das Letras, 2025.

 

 

 


Créditos na imagem de capa: Capa do livro “O Recobramento de Pelágia” de Américo Venâncio Lopes Machado Filho pela editora Ipê das Letras

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