Sem conversa fiada afinadas num progresso sob cabresto à brasileira

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Pude perceber, há algum tempo na história, que a maioria dos dilemas existenciais desdobrados em debates não são meus e nem de parte da diáspora africana. Isso implica que grande quantia das temáticas discutidas e teorizadas neste campo não estão no cerne daquilo que vivo. Podem circundar, mas sustentar aquilo que respiro, definitivamente não é. Não me diz a respeito. Manter a forja dessa perspectiva da história é chover no molhado. Apostar no ser moderno, aquele ser da razão e da subjetividade (SARR, 2019), é algo que já sabemos não ser interessante. Simplesmente pelo motivo dessa noção de história implicar a não compreensão da complexidade das vidas alheia. Aquela complexidade não vinda do povo da zoropa. Esse modo de lidar é puro empobrecimento existencial. Construíram passados outros que nos são pouco palpáveis e, como dito, os fixaram no passado.

O problema existencial branco da salvação, que eles mesmos não conseguiram resolver, precisa ser entendido que é problema deste próprio povo. Da província que vivem. A arapuca que se meteram à espera da redenção com horizontes abertos (KOSELLECK, 1979; PEREIRA, 2011) às custas de outras pessoas vistas como não tão humanas assim é problema de branco. Estes recalcaram seus problemas existenciais e exportaram para povos outros (MBEMBE, 2018). No que compete às africanidades, os fundamentos e os processos conduzem mais que o resultado. Até porque, para nossa visão de mundo, nada tem fim. Mesmo diante o terror racial secular.  Para isso é preciso entender que a modernidade não vingou, apesar do alastramento e terra arrasada que consolidou.

Quero dizer com isso que nas terras aqui não temos brasil, mas sim diversos povos com visões de mundo distintas. São várias subcamadas no caleidoscópio social que demonstram isso. Elas não foram palco da escrita da história oficial e por isso entendemos que a miopia seja de alto grau. Os códigos não batem, empatia não existe por parte desse ritual onde uma raça suprime as outras. Se algo mudou  foi pela agência da negrada. Este movimento somado às atrocidades mundiais causadas por aquelas pessoas vistas como a ponta de lança do mundo implicaram muitas desconfianças que as instituições do próprio ocidente não conseguiram escamotear. Guerras mundiais e holocausto são exemplos que abalaram a farsa da civilidade euroasiática. Historicizar é preciso. Bom, mas nada disso é algo novo ou ainda não lido. Genocídios, semiocídios, epistemicídios e racismo cosmogônico, historicídio são bem fundamentados pelas veredas das e dos não pertencentes ao mundo (SODRÉ, 2017; MBEMBE, 2018; ANI, 1994; FANON, 2018). Há, de certo, uma vasta produção que desconserta certezas seculares da dita ciência moderna. Até porque escrever embasado a partir de uma lógica não é algo restrito há nenhum povo.

Precisamente a questão que se coloca hoje, no meu ponto de vista é: as pessoas criadas nestas tradições modernas da escrita da história podem acrescentar algo? Ou seria o momento delas mesmas pararem de produzir sobre terceirxs? Ao meu ver esse movimento é fundamental quando se tem décadas de textos escritos por pessoas que não vivem aquilo que pesquisam e intitulam as vidas alheias de objetos de pesquisa. Somente ler textos não é suficiente, querida intelectualidade. Pode parecer engraçado, mas quando a negrada começou a produzir sobre si, aqueles que produziam sobre nós começaram a escrever sobre indígena. Curiosa a forma utilitarista de lidar com a vivência de mundo alheia. Eis o progresso sob cabresto à brasileira, minha gente.

Sabemos: a leitura é algo muito pouco sensível para produzir qualquer relação entre pessoas e as colocarem para trocas sinceras de viver onde os limites sejam contemplados por qualidades outras e não excluídos numa economia narcísica. Por exemplo, podermos observar como a história travou o debate sobre ditadura civil militar neste país. Um assunto que a disciplina se desdobrou com força nas últimas décadas, mas não reverberou na vasta sociedade brasileira. De 2016 pra cá pudemos observar com mais nitidez esse aspecto. A padronização de como a história deveria ser para funcionar não funciona. E com sair dessa armadilha? As pessoas incorporadas nas dinâmicas de engessamentos ritualísticos localizados nas zoropas não precisam tentar se hospedar em outras formas de produção de conhecimento. Não precisam vir pagando de desconstrução, ou seja, ser decolonial, pós-colonial, descolonial e mais palavras que quiser utilizar. Ou até mesmo apreender outras temáticas para manter o lócus de poder que está inserida. Vocês precisam se movimentar a fim de escrever mais de vocês e seus problemas subjetivos e objetivos. O que essa pira implicou e implica na fazenda brasil. Para compreender o que não se sabe podemos deixar para as pessoas que vivem dada experiência, uma vez que o olhar de vocês está há décadas entranhado na história oficial como um todo. Esse é o passo fundamental de curto, médio e longo prazo do diálogo justo ou qualquer coisa que o valha.

Uma epistemologia rasa tem se mantido para produzir a história oficial. E uma mais rasa ainda para dizer que há um movimento de desconstrução da história e que agora o brasil vai pra frente. A macumba é brasileira, como um dia foi o samba, foi a capoeira, foi o carnaval e por aí vai. Por isso ela também é teoria de conhecimento articulada em palavras para dizer o que não se via. Todo mundo compreendeu o que pode ou não escrever e como produzir a tal da escrita democrática. De resto é ser feliz pós-pandemia com lula presidente, uma breja do lado, investimentos estatais pautados numa economia desenvolvimentista ou neo-desenvolvimentista (fica a gosto do freguês) que logicamente resolverão os problemas da dita nação. Assim, resta investimento nas universidades e demais instituições públicas e novamente o brasil será um país de todxs.

Infelizmente não é assim que a banda toca. Esses não ditos por Certeau no que tange produzir conhecimento (PEREIRA, 2018) – e não me reduzo somente ao corporativismo acadêmico – é importante. São eles que ainda alimentam um brasil que não se entende em dinâmicas sofisticadas e profundas da racialidade, mas também com suportes de romper com esse atravessamento. Romper com esse atravessamento é sair da amarra de estado-nação. Cada povo deve viver em sua terra sem regulação centralizada e discursada em prol de unidade. Unidade essa que significa consumismo dada a estabilidade de emprego e dinheiro no bolso das famílias coloniais, contemporaneamente chamadas de burguesia, elite, rico e o que mais quisermos. Esse maniqueísmo nacionalizante é o que sempre aconteceu. Se pra quem inventou não funcionou (GEARY, 2005), imagina aqui nessas bandas onde mais da metade da população não é vista como humana. Tenho de ser sincero: são os devastamentos do grande empreendimento colonial que interdita o povo de viver sua plenitude. Um desses empreendimentos é a história em moldes ocidentais. A história ocidental está fadada ao fracasso. Ela foi criada para dominar. É essa arrogância que viabilizou escritas das mais diversas incoerências absurdas nos últimos séculos.

Por fim, vemos que o problema não é racional ou de convencimento via argumentação. Isso, como sabemos, já foi feito muitas vezes. Manutenção de poder é sobre perpetuar sua existência inexoravelmente e, portanto, o texto assume o sentido de constatação dentro de uma dinâmica em que escritas e mais escritas desconstruídas chovem, embora para inglês ver. É bonito, tá na moda, levanta a estima enquanto a pandemia rola, mas as estatísticas estão aí para demonstrar a quantas andas esse território em meio #covid19 ou se preferir há 521 anos. E por favor, racialize sempre qualquer dado que ler. A verdade estará lá. No fim e ao cabo, desembaralhar o emaranhado de vivências toma proporções sinuosas e sem volta. Sem sorrisos e correlatos. Aos desconstruídxs que sorriem em seu conforto, no tempo presente, não terá quando a desconstrução defendida acontecer. O mundo não será o seu umbigo racial. Pense muito bem no objetivo que suas propagandas contemporâneas defendem, o desfecho não será um mar de rosas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ANI, Marimba. YURUGU – An African-centered critique of european cultural thought and behavior. New Jersey: Africa World Press, 1994.

FANON, F. Pele  negra,  máscaras  brancas. Bahia:  Editora  da  Universidade  Federal  da Bahia, 2008.

GEARY, Patrick. Uma Paisagem Envenenada: etnicidade e nacionalismo no século XIX / Povos Imaginados na Antiguidade. In: O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005, p. 27-79.

KOSELLECK, Reinhart.  “Modernidade – Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade”. In. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.  Rio de Janeiro : Contraponto : Ed. PUC-Rio, 2006. pp. 267-304.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

NORA, Pierre.  “O retorno do fato”. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995.

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 – 114, abr/jun. 2018.

PEREIRA, Mateus H. F. A História do Tempo Presente: do futurismo ao presentismo?. Humanidades (Brasília), v. 58, p. 56-65, 2011

SARR, Felwine. Afrotopia. São Paulo: N1-Edições, 2019.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

 

 

 


Créditos na imagem: Praia de Icaraí, duas realidades. Niterói – Brasil, de Pedro Conforte – @pfconforte

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Thiago Borges

Thiago Borges, mestrando PPGHIS/UFOP.

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