Muito do que era despretensioso nos cotidianos foi arranhado das mais diferentes maneiras. Por várias razões, embora a tendência, não por menos, seja pôr a pandemia como causa da crise; nas conversas, de modo presente ou a distância, a trabalho ou a lazer, percebo que os papos dificilmente conseguem se manter alheios aos novos arranjos de coisas que vão nos atropelando e, em certa medida, nos atravessando. Para muita gente, há a dor – o que era o cotidiano talvez se tenha ido de vez, ainda que não se trate de entregar-se à dor. Para outro tanto de pessoas, a saudade das antigas distrações é mais forte e não seria extraordinário encontrá-las nos mesmos lugares de sempre. A sensação é aquela de meio sono, em que não discernimos o que ocorre ou o que é sonhado, não há nenhum sinal extraordinário que nos ajude a distinguir; as camadas de duas realidades aparentemente separadas se confundem – mas é simplesmente confusão? É simplesmente um problema de saber o que é e o que não é?
Pensar, assim, no cotidiano parece pôr dois mundos distintos frente a frente, um que está enlaçado pela dor e pelo peso da perda e outro que apenas quer reviver, tão superficial quanto possa ser essa revivência, a banalidade distrativa de algo que se aproximaria do antigo cotidiano. Nesse embaço que é a realidade agora (no sentido de um embaço específico, não experimentado – não que antes não fosse embaçada), em ambas as situações, no aprofundamento da dor e na carência de retomar os fios do que era o comum, conversas e sentimentos muitas vezes convergem para certa sensação de impotência – às vezes dita, às vezes muito bem explicada e teorizada, às vezes muda. Às vezes há uma entrega momentânea – nos sentimos em grupo estando impotentes –, outras vezes há faíscas que se tornam esforço de lutar contra isso que pesa sobre o peito.
Não há essa dicotomia acima, há conflitos inevitáveis e distanciamentos, certamente, em dimensões que não são desprezíveis. Mas o momento expressa outro confronto mais urgente e que nos põe à maioria de nós do mesmo “lado”. Nesta crise, categorias inteiras de trabalhadoras e trabalhadores, por exemplo, explodiram em reivindicações à medida que a crise econômico-sanitária as obrigou a um mais apurado reconhecimento de si, do que é seu trabalho, de quais são suas necessidades, tudo por conexões que antes eram mais facilmente camufladas nos linguajares da ideologia neoliberal (como autoempreendedorismo) – aí, não houve tempo de cultivar o sentimento de impotência, a urgência de comer e de bem viver não o permitiu.
Existe – e foi muito dessa luta de trabalho que tornou isso mais sensível – uma oposição mais cruenta, entre quem sentiu, na qualidade que seja e no tempo que foi, um sentimento de impotência e quem viu, desde o início, esse sentimento de impotência como a possibilidade de novos manejos dos mercados, em que tudo cresceria muito rapidamente (tudo: o lucro de quem fatura com a morte humana e com a destruição do planeta). Embora seja hegemônica a posição de espera – como se só pudéssemos esperar de poucas pessoas e do tempo as condições de sentir algo mais vulgar, de entregar-nos àqueles aperreios mais costumeiros cujas dificuldades já são entrelaçadas ao existir/resistir de cada indivíduo –, tem sido cada vez mais letal a um número maior de pessoas que acreditemos que esses são problemas “particulares”, desentramados de tudo o que nos toca mais diretamente (mais banalmente).
Isso porque se trata de uma crise em que tudo é exacerbado, principalmente a confusão. Se em um momento encontramos naquelas pessoas no bar, na praia, alvos de uma indignação que também quer caminhos para se exacerbar, em outro nos confundimos com elas, sem precisarmos estar no bar, na praia, etc. Se em um momento pensamos ver claramente todos os mecanismos que permitem à crise ceifar tantas vidas e ceder tantos lucros, em outro sentimos que nosso entendimento não alcança nem a relevância da tecnologia em nossos cotidianos. Se em um momento cremos que toda a realidade que conhecíamos foi deixada para trás, em outro nem sabemos nomear o que realmente mudou ou está em processo de mudança.
Mas se o desejo de bem viver (são muitas as matrizes dessa ideia/experiência, mas nenhuma que seja genuinamente capitalista) explode como manifestação coletiva, é também coletivamente que se pode encarnar no cotidiano a recusa a sermos apenas corpos individuais, apenas consumidoras de fantasias individuais, dizer que não somos em nenhuma instância empresas individuais – e como não se sentir impotente se permanecemos na perspectiva de que são indivíduos que limpam a bagunça da humanidade? Ninguém consegue se apegar a nada e a ninguém com base no sentimento de impotência, mesmo que haja reunião, mesmo que cada indivíduo possa compartilhar de sua própria dor. Se paramos aí, simplesmente perdemos.
Créditos na imagem: Rafael Ramos. São Paulo, 2016. Acrílico sobre tela.
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Daniel Santos da Silva
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