Ontem, na praça Benedito Calixto, lembrei-me de uma história de um relógio de bolso que fora de meu avô. Minha mãe o guardara. Corpo de prata desenhado, tampo de vidro e corrente. Tempo parado numa gaveta de um armário da casa de minha mãe:

– Quando você for adulto, responsável, filho, o relógio será seu.

Ela temia que imaturo eu o perdesse, o quebrasse ou o vendesse. Guardou por anos o relógio. Eu às vezes eu perguntava:

– Então, mãe? E aquele relógio do vô? Aquele que você me dará um dia?

Ela sempre arrumava uma desculpa:

– Preciso achar.

Quando não era achar, era:

– Preciso limpar.

Quando não era limpar, era

– Preciso mandar arrumar.

Nunca que nunca, que nunquinha que nada de me dar a herança marcadora de horas e de levar no bolso. Nunca que nada de me dar o relógio do vô.

O vô adoeceu. O vô ficou gagá. O vô morreu. E o relógio lá, guardado onde minha mãe achava o ter colocado, mas precisava achar, limpar ou arrumar.

Eu precisava crescer, ficar adulto, responsável. Eu precisava mostrar para ela que saberia ter o relógio de prata de bolso que meu avô usara. Talvez fosse de meu bisavô tamanha demora, tamanha importância e velhice do relógio. Tamanhas coisas tinha que mostrar para mãe para ter o relógio de prata de bolso.

Cresci. Fiquei adulto. Responsável? Não sei. Sei que nada do relógio do vô vir para minhas mãos.

Perguntei, depois de anos:

– Então, mãe, e o relógio? Não vai me dar? Eu daqui a pouco estou velho e nada de ganhar o relógio.

Na Benedito Calixto, o tempo antigo é negócio. É um passeio também, mas é fetiche.

Ontem, não tive saudade de nada, nem de ninguém. Melancolia nenhuma. Vontade de voltar no tempo? Nenhuma.

Tomei um café de coador. Amargo e na companhia de uma amiga. Comemos doces mineiros, depois de termos almoçado num antigo restaurante mineiro que fica na praça. Passeamos, rimos muito, maldamos.

E o relógio do vô?

Bem, ele não é armário, nem guarda-roupa, como o de uma outra história que qualquer dia conto aqui. Acabei que não herdei o relógio, como aconteceu com o guarda-roupa do vô.

Fiquei velho. Envelheci. O tempo passou. Não foram as traças que comeram a prata. Traças não roem relógios de prata de bolso guardados em gavetas.

Minha mãe demorou a ver que cresci, que fiquei adulto, responsável. Fiquei capaz de ter inúmeras coisas sob minha guarda e responsabilidade. Minha mãe demorou para admitir que podia não só ter o tal relógio como domínio sobre mim, meu tempo, minha vida.

E o relógio?

Vi um idêntico em exposição e à venda na Praça Benedito Calixto. Seria o relógio que minha mãe guardava? Ele nunca herdei de fato, apenas de direito.

Um dia, depois de pressionar muito minha mãe, pedi o relógio num ultimato. Vou ver, ela disse.

Quando voltou, eu achando que traria o acessório, veio com uma caixinha de papelão vazia. O relógio de prata de bolso, a mim prometido, guardado, havia sido furtado. Relógios de herança não evaporam. Heranças evaporam, não são confiáveis. Heranças são ganâncias, mas também fatalidades.

Não há relógio que nos fixe, mas outras características, outras engenhosidades.

Ontem, na praça Benedito Calixto, o dia estava cinza. Como disse minha amiga:

– Daquele jeito que parece as horas não passam.

Qualquer hora é qualquer hora. Dia cinza, chapado. Dia cinza empastelado.

Eu diria que ontem o dia estava parado, nós não. Eu fui a inúmeros lugares, inclusive estive em mim, nos outros, e na lama de Mariana.

Fossem todos responsáveis talvez barragens não se rompessem.

Mães costumam achar que seus filhos nunca crescem. Mães, às vezes, são espécies de barragens irresponsáveis.

Há mães em variedade, como o tempo variado de lugares como os lugares de bricabraque. Não herdar um objeto herdado é um disparate.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Vintage Gentlemen

 

 

 

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