No último quartel do século XIX, quando recém-constituída a História como disciplina escolar no Brasil, Friedrich Nietzsche realizava uma dura crítica à essa disciplina e escrevia, em seu célebre texto, “Segunda consideração intempestiva” (2005), sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Naquele momento, o filósofo voltava suas energias contra o historicismo alemão e o passado morto, a partir do qual a história tradicional criava uma relação de saber com o Tempo. No presente, as críticas realizadas por Nietzsche se mostram extremamente pertinentes e atuais, tanto no que se refere à problematização que tem sido feita pelos estudos históricos acerca da própria disciplina, quanto ao papel do ensino de História para a vida das pessoas. Se, por um lado, a disciplina História tem olhado (ÁVILA, 2018; CRUZ, 2014) para si mesma e pensado suas “políticas do tempo”, questionando-se sobre a temporalidade eurocêntrica da qual é tributária, por outro, o ensino de História tem sido alvo preferido de um discurso que resgata, desde o século XIX, o sonho de um relato histórico neutro e uma aula de História que descreve imparcialmente um passado morto e disciplinado, sem qualquer relação com a espiritualidade, as sensibilidades, o presente e a política.
A perspectiva desse ensaio aponta para uma argumentação aparentemente paradoxal, pois versa, ao mesmo tempo, sobre o enfado e a necessidade de História, como elementos de uma resistência.
Primeiro, apresento o enfado.
Vivemos em tempo no qual uma História disciplina que apresenta um passado morto e, notadamente europeu, tem seu limite. E é a partir desse limite que a aula de História pôde se abrir para o ilimitado – que, neste ensaio, recebe o nome de resistência. É porque essa História disciplina, plena de poderes sobre o passado, é levada pela onda incessante das existências (povos, vidas, pessoas, grupos, memórias), que uma aula, talvez pela primeira vez, tenha se tornado uma espécie de abrigo, onde a generosidade da escuta paciente e apaixonada se permite aberta aos outros. Eis o fim de uma espécie de “fardo da história”, de um domínio dos seus cálculos, de suas métricas, de suas narrativas que, por anos, fizeram reduzir os outros (em um sentido moralizante, inferiores) às fronteiras de um discurso centrado em um homem/transcendência, heterossexual, branco, adulto e, sobretudo, moderno.
Redução do passado, da vida e dos outros ao interstício de uma narrativa histórica, disciplinada e eurocêntrica. Eis a vitalidade e, ao mesmo tempo, o malogro, dessa história ensinada. Seu modo de narrar e de representar é seu sucesso e, paradoxalmente, seu fracasso. Pois é no auge de sua forma/medida que notamos, no espaço largo e inocente da sala de aula de História, que ela já não faz outra coisa senão reduzir. Talvez sua modernidade seja medida exatamente pelo seu poder de reduzir e de julgar, razão pela qual sua temporalidade é evolucionista, linear e sucessiva.
Eis o enfado e a tragédia do discurso histórico em sala de aula. E, nesse exato momento, quando estamos dispostos a pensar sua notável decadência, fazendo brilhar em sala de aula outros saberes, outras vidas, outros povos, outros modos de pensar, medir e representar o tempo, é que um movimento de retorno (que não sabe bem qual seu rumo ou sua própria origem) aos áureos tempos da história-pátria, da história-exemplo, da história neutra e imparcial, evidentemente europeia, branca, heterossexual e até mesmo revisionista, parece querer forçosamente retomar os limites e estabelecer fronteiras para a sala de aula de História.
Dessa maneira um pouco estranha é que o próprio enfado da História Moderna se tornou resistência. Falo de resistência porque gostaria de reservar, no interior dessa terrificante nuvem que sufoca o pensamento e a existência, resistir e acontecer. E penso que a aula de História – agora amplamente vigiada e controlada – é um abrigo, não necessariamente seguro, para a criação. Penso, portanto, em acontecimentos que têm atestado o enfado de História e, ao mesmo tempo, uma resistência a esse movimento conservador (chamado de Escola Sem Partido): imagino salas de aula de História povoadas pela oralidade Griô; por relatos pacientes e iluminados da Dona Elaine (Mestra Griô Maria Elaine Rodrigues Espíndola)[1]; imagino uma aula de História com uma narrativa do Mestre Borel[2], contando calmamente sobre a vida na Ilhota; imagino as histórias do Carimbó (estudados por Sil-Lena Ribeiro Calderaro Oliveira[3]) se tornando conteúdo de uma aula de História; imagino as pessoas incríveis da Vila Dique[4] (escutadas pela amiga Carmem Zeli de Vargas Gil) e seus depoimentos orais, permitindo a aprendizagem sobre as histórias de Porto Alegre; imagino as ilimitadas narrativas possibilitadas pelo jogo As viagens do Tambor[5], que nos faz viajar fundo para encontrar a energia vital que é origem de toda criação. Enfim, tudo isso tem aliviado o fardo pesado que a linha de sucessão de um passado atrasado até um presente ápice da evolução colocou sobre os ombros dos professores de História. Fardo da linha, fardo da modernidade, fardo do racismo.
Essas histórias que imaginei criam uma zona virtual entre a sala de aula e o que dela imagino, fazendo balançar os modos de relação com o passado que nos acostumamos a constituir desde essa História Moderna – tributária de uma Colonialidade do Tempo (PEREIRA, 2018) – , embaralhando o que nos acostumamos a chamar de passado, presente e futuro. São histórias que nos retiram da segurança de uma narrativa coerente e nos jogam nos paradoxos, nos imprevistos e num Fora[6] de onde brotam novas e ilimitadas temporalidades. Eis por que chamei esse ilimitado de resistência.
Segundo, apresento a necessidade.
Hoje, no presente-presente do tempo, esse movimento político conservador, de uma só vez, parece querer impor barreiras ao pensamento e à existência, a partir de um discurso que se volta contra ideologias e contra uma dita história ideológica, combate a História e a aula de História. Não se trata da própria disciplina pensando sobre si mesma, mas de um ataque voraz de um lugar que flutua por fora da teoria e, inclusive, contra ela se destina. O exercício público do pensamento e da controvérsia é estranho a esse movimento. E é contra ele que se volta o paradoxo do enfado e da necessidade.
Se acima afirmamos o enfado e os limites da História como disciplina, também afirmamos uma aula de História que se abre a outros saberes, fazeres, narrativas e povos que problematizam a temporalidade eurocêntrica. Mas, neste momento, afirmamos a necessidade da História. Ela, a necessidade, é também uma obra da resistência, do acontecimento e, sobretudo, da Antropofagia (sim, aquela de MOURA, 2018), que permite o roubo do que estarei a chamar de volúpia conceitual da História Moderna.
Essa obsessão pelo conceito levou a História a poder criar uma hipercrítica de si mesma: olhar para si, autocriticar-se, pensar sobre si e problematizar os limites e as fronteiras de uma “epistemologia do norte”. Assim como fez Carla Moura – ao pensar sobre um ensino de História situado, uma aula de História aberta ao plural, em sua inocência e generosidade, antropofagiza a História disciplina. Depois de contemplar seus fragmentos na superfície dos debates teóricos, absorve, numa voracidade antropofágica, um pensamento conceitual, esse mesmo que vem sendo atacado em benefício de uma leitura da realidade sem análise, sem explicação, sem compreensão, sem ciência e sem teoria. Uma leitura do senso comum. Uma leitura que parte de uma terrível e perigosa ingenuidade em relação à realidade. Um perigo que reside em cada palavra que se volta contra o pensamento, a liberdade de pensar, de ensinar e de existir. Um perigo que se expressa quando cada conceito, construído desde longo processo de investigação e estudo – comunismo, fascismo, democracia, ditadura etc. – parece ter uma definição qualquer, resolvida em duas ou três palavras, apresentada através de exemplos estranhos às realidades que tais conceitos procuraram explicar. É por isso que antrofagizar me acalma o espírito. Antrofagizar o conceito, como elemento que permite expressar a complexidade do mundo, razão pela qual ainda existem escolas, universidades, institutos e História disciplina. Em um Brasil e um mundo que têm provocado leituras cada vez mais simplórias de si mesmos, quero promover, a despeito e com respeito aos debates acalorados acerca do “regime moderno de historicidade”, o que chamo de necessidade de História.
Sei que uma aula de História é excesso. Penso que ensinar História é educar para as relações étnico-raciais, de gênero, geracionais, de multiplicidade, pluralidade, entre outras, antes de ser lugar das definições, dos nomes e dos próprios conceitos. Uma aula de História é lugar de relações e de aprendizagem delas. Uma aula de História é uma passarela por onde desfilam as experiências humanas, o que permite experimentar outros problemas, soluções, vidas e modos de vida. Uma aula de História é excesso em relação à própria História. Ela acolhe muito mais do que os conceitos históricos, tais como: povos, temporalidades ainda não catalogadas, modos de ser e de viver não disponíveis nas narrativas clássicas, saberes e outras formas de conhecimento. Mas, o conceito histórico é ainda vital nessa aula. Parece-me importante acreditar que os conceitos ainda são operadores de explicação, compreensão e criação muito importantes para que as novas gerações entendam o seu mundo.
E há mais: há também a obsessão pela erudição histórica. Um acúmulo que permite sistematizar, criar enredos, emitir opiniões, fazer comparações entre modos de vida, aprender com a diversidade das experiências humanas, produzir empatias, simpatizar, aprender sobre problemas diversos e sobre formas diferentes de resolver problemas parecidos.
Conceito, erudição histórica e aula-excesso. Da antropofagia à crítica à temporalidade eurocêntrica. Do enfado à necessidade. Da apatia à resistência. Trata-se, portanto, de afirmar uma necessidade de História: dos conceitos e da erudição. Trata-se, ainda, de promover o diálogo no interior de uma sala de aula entre conceito, erudição e outros saberes, outros fazeres, outras cosmologias. Por fim, significa mostrar que o enfado de História é, em verdade, uma resistência ao movimento, o tal Escola Sem Partido, que tem procurado enquadrar o ambiente livre e aberto da sala de aula. Do mesmo modo, quer dizer que a necessidade de História é também resistência, porque, ao antropofagizar essa Moderna História Europeia – o conceito e a erudição –, mostra que pensar sobre o passado e produzir narrativa é um trabalho sério e dedicado, também político e apaixonado e é, sobretudo, estranho a qualquer forma de doutrinação.
NOTAS
[1] Mestra Elaine é ativista social, atua na MOCAMBO – Associação Comunitária. Amigos e Moradores Cidade Baixa e Arredores.
[2] Walter Calixto Ferreira, o Mestre Borel, “foi babalorixá e importante narrador de histórias e de vivências sobre a cultura e a religiosidade de matriz africana no Rio Grande do Sul. Griô de Porto Alegre, é um dos guardiões da ancestralidade negra na cidade” (VIEIRA e outros, 2018).
[3] Sil Lena Oliveira defendeu dissertação de Mestrado com o seguinte título: “Antes que o tempo passe tudo a raso: tambores matriarcais do grupo de Carimbó Sereia do Mar da Vila Silva em Marapanim, no Pará, em 2018, na UFSC.
[4] Projeto de pesquisa e extensão coordenado por Carmem Zeli de Vargas Gil e outros. A Vila Dique é uma região da cidade de Porto Alegre que sofreu um processo de remoção em função das obras do aeroporto da cidade.
[5] Jogo pedagógico sobre os Territórios Negros de Porto Alegre, criado em uma parceria entre o Lhiste – Laboratório de Ensino de História e Educação, da UFRGS – e os movimentos sociais negros de Porto Alegre.
[6] “O pensamento do Fora, na acepção de Foucault é um pensamento que está por fora de toda a subjetividade. Trata-se de pensar uma tempestade de forças que não exibem forma, nem ordem ou desordem, mas estão como que singularidades selvagens a partir de onde individualidades podem se formar. O Fora é uma pura potência criativa. Em O pensamento do exterior, Foucault pode pensar então em um ser da linguagem, como lugar onde coexiste a criação literária, onde cessam as funções representativas, comunicativas e de significação da linguagem, o que permite um lugar de criação distante de toda a prisão identitária ou subjetiva”. (PEREIRA, 2018, p.03)
REFERÊNCIAS
AVILA, Arthur Lima. O fim da história e o fardo da temporalidade. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 25, p. 243 – 266, jul./set. 2018.
CRUZ, Manuel. Adiós, História, Adiós: el abandono del pasado en el mundo actual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2014.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Contos de Dostoiévski. São Paulo: Cultrix, 1992.
MOURA, Carla de. As Marias da Conceição: por um ensino de história situado, decolonial e interseccional. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. PPG História – Programa de Pós-Graduação em Ensino de História – UFRGS, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. Apresentação, tradução e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
OLIVEIRA, Sil-Lena Ribeiro Calderaro. Antes que o tempo passe tudo a raso: Tambores matriarcais do grupo de Carimbó Sereia do Mar da Vila Silva em Marapanim, no Pará. Dissertação de Mestrado. Florianópolis. PPGEDU – UFSC, 2018.
PEREIRA, N. M. O que se faz em uma aula de História? Pensar sobre a colonialidade do tempo. Revista Pedagógica, Chapecó, v. 20, n. 45, p. 16-35, set./dez. [2018]
PEREIRA, N. M.; CHEPP, B. . Ler e escrever nas aulas de História: da prisão da palavra ao labirinto do exterior. Fênix (UFU. Online), v. 15, p. 1-18, 2018.
VIEIRA, Daniele Machado e outros. Material de apoio aos professores e professoras. Porto Alegre: UFRGS, 2018.
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Nilton Mullet Pereira
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Parabéns, Nilton. Texto formidável!
Ótima reflexão, Nilton.
Texto fundamental.