Atualismo 1.0

0

———- Forwarded message ———
From: Daniel Faria <krmazov@hotmail.com>
Date: dom, 25 de nov de 2018 às 17:10
Subject: RE: atualismo 1.0
To: Mateus Pereira <matteuspereira@gmail.com>, Valdei Araujo <valdei354@gmail.com>

Acabei decidindo mudar só detalhes, uma frase ou outra e basicamente colocar maiúsculas e uma ou outra pontuação. se for fazer uma revisão mesmo, talvez acabe perdendo o lance de ser um email e deriva pra resenha. fica a critério de vcs se vale a pena publicar assim mesmo, acho que é mesmo o espírito da HH magazine né? por mim, pode publicar assim mesmo:

Amigos,
acabei de ler aqui o Atualismo. Resolvi dividir com vcs minhas impressões de leitura.

Em primeiro lugar, e o mais importante, é que é mto inspirador o gesto de vcs. O gesto de teorizar mesmo. Parece que depois de Darcy Ribeiro, Ruy Mauro Marini, pela divisão internacional do trabalho, e talvez isso seja ainda mais raro em teoria da história, nossos teóricos meio que se limitam a comentar teorias alheias. Vcs produziram uma interlocução com teorias e filosofias de outras partes do mundo, mas nesse sentido de interlocução e não de comentário. Esse gesto por si só é mto inspirador e mesmo libertador. Na real, não tenho críticas a fazer, apenas apontamentos sugeridos pela própria leitura. Ou seja, questões que surgiram do próprio livro, e não comentários externos ou discordâncias. Fiquei pensando mto sobre as constelações em que situamos o “atual”. Digo isso pq me pareceu que o atualismo tem mais a ver com a complementaridade com o virtual do que o potencial. Vcs citam O que é O Contemporâneo do Agamben, e acho que nele tem uma possível crítica/reflexão sobre o que vcs comentam como atualismo, e justamente a partir do conceito de potência.

Não que eu pense que vcs deveriam escolher um novo dualismo e transformar em resposta pra tudo, mas talvez que essa questão do atual possa ser pensada em diferentes termos, não necessariamente excludentes, mas diferentes. Nas relações entre atual/virtual, ato/potência. Não sei também se tem uma mistura etimológica entre o atual e o ato, no sentido de ação mesmo. O atualismo como ação permanente e que fascina/ilude por parecer apenas imanente, sem nada de fora. Bem, esse é o diagnóstico do Peter Pal Pelbart num livro chamado A Clausura do Fora, acho que o título é esse, é mais uma discussão com a história da loucura, a loucura como o imaginário do Fora no Ocidente, e que para Pelbart, a partir da psiquiatria e dos discursos contemporâneos e da própria formação sócio-política atual, a loucura foi aplacada, domesticada, em pequenas “anormalidades”. Não há mais Fora. Por sinal, sobre essa questão de ação, imanência, comecei a ler um livro que pode ser bem interessante pra essa discussão, o autor é Claudio Fogu, The Historic Imaginary. Politics of History in Fascist Italy”, uma das questões que ele comenta é que a estética fascista passava por uma auto-monumentalização, algo do tipo: o líder está “fazendo história” diante de vcs. Agir era fazer história, mas sempre nesse tempo da atualização. Enfim, isso pode levar a conclusões políticas mais desastrosas, mas se vcs se interessarem, eu to achando esse livro excelente.

Fiquei com uma pulga atrás da orelha sobre o que vcs tão chamando de futurismo. É o futurismo estético? A vanguarda? Pq se for, o futurismo, se vcs lerem o manifesto do Marinetti inteiro, é apresentado como uma dupla ruptura: com o decadentismo e a ideia de progresso. O futurismo é um salto para fora da história, por meio da violência e da velocidade – com aquelas implicações fascistas. Nesse sentido, o progresso não é futurista, pq é processual, contínuo. Mas aqui to me apegando ao conceito literário mesmo, não sei se existem
outros conceitos de futurismo.

Eu fiquei pensando mto sobre esses termos atualização, atualizar. são meio que neologismos pra traduzir update? Digo, não por vcs, mas pela expansão do uso desses neologismos a partir dos anos 1970. Se forem neologismos,
tem uma questão ainda. Vcs devem ter lido o Língua e Realidade do Vilem Flusser, apesar de eu não concordar com o absolutismo da língua que ele propõe, tem umas questões mto interessantes sobre o tempo verbal no alemão, no inglês e no português. Especificamente sobre o futuro. Ele fala sobre a partícula will no inglês em comparação,
por exemplo, como o “hei de” fazer alguma coisa no português: o futuro como vontade, querer e o futuro como fatalidade. Mas o próprio Flusser nota que, no Brasil pelo menos, esse futuro mais tradicional vem sendo substituído por outras fórmulas, como “eu vou fazer tal coisa” – o que dá uma outra dinâmica, não-fatalista, mas ainda assim sem o sentido de projeto do futuro verbal em inglês. Enfim tudo isso pra dizer que talvez updatismo seja um daqueles conceitos “intraduzíveis”, o que não quer dizer, evidentemente, que não sintamos/vivamos seus efeitos.

Outra pergunta: atualização é repetição (não no sentido do Heidegger e sim do Freud)? Ou seja: pulsão de morte?Fiquei com a impressão de que vcs deram mta importância ao Hartog.

Mas depois fiquei com uma segunda impressão: justamente a crítica de vcs me passou essa primeira impressão. Quero dizer que depois da leitura que vcs fizeram, fiquei com a sensação de que não há quase nada de produtivo a esperar desse conceito de presentismo. O paradoxo é que sem essa crítica de vcs, talvez eu não tivesse sentido que o Hartog, nesse conceito específico, não vale tanto esforço.

Fiquei, no final, com a seguinte impressão (mas levem em consideração que sou um melancólico (p os poetas) e depressivo (p os psiquiatras)).

Vcs pontuaram o texto com momentos de esperança, de aposta, de que há caminhos. Mas fiquei com a impressão de que esses momentos são mais frases vagas, abstratas. Pelo contrário, o desespero me parece bem fundamentado e descrito com mta lucidez. Não digo isso com resignação, ou pior, cinismo. Não digo pra vcs tirarem esses momentos de esperança. Talvez sejam vazios mesmo pq precisam ser inventados.

 

Abraços e obrigado por tirarem a teoria da história no BR do marasmo.

__________________________________________________

“Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Álvaro de Campos

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Faria

graduação em História pela Universidade de Brasília (1998), mestrado em História pela Universidade de Brasília (2000) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Concluiu o pós-doutorado pela mesma universidade em 2008. Atualmente é professor Adjunto I do Departamento de História da Universidade de Brasília.

No comments

Veja: