Nasci em Minas e morei durante toda minha infância em cidadezinhas do interior. Nas férias, ou em fins de semana, eu ia à roça, ter com minha família paterna, onde também viveu minha família materna. Eu me lembro muito bem de como era ser uma criança e estar entre esses dois lugares. Em voltar para casa com o sotaque na cabeça, aquele português distinto, dos cheiros, daquele tempo, do fogão à lenha, do passatempo entre as folhas, barrancos, morros e galhos, o mistério dos rezos e da presença dos outros animais. Lembro das novenas e de como era diferente. Os cantos, as vozes, aquele doce ambiente sempre familiar. Todos são parentes. Ali nasceram meus avós, meus pais e minha grande família paterna. E para esse espaço que minha bisavó, uma senhora indígena, foi. Como chegou, eu não sei. Mas meu avô me disse que ela era Puri, “mestiça de índio”. Veio de outro lugar, aqui perto, chamado Amparo do Serra, próximo a “Serra dos Arrepiados”, como também eram/são conhecidos os Puri daquela região.
Minha relação com minha história familiar, entretanto, nem sempre foi assim. Cresci em uma cidade pequena, onde com a consciência que carrego hoje sinto um grande incômodo com a sensação de que tudo está muito certo, mesmo não estando. Antes, nem isso existia. Sim, é estranho. Com a formação que eu tive na escola, nem mesmo na história eu me via. Sem mencionar todas aquelas conjugações de verbos que minha família nunca falou, todas aquelas coisas sobre os deuses gregos, romanos e do catecismo cristão das aulas de ensino religioso. Mas, no meio disso tudo, eu me lembro do singelo apego que tive por Peri. Não sei se àquela época minha mãe já havia me contado nossa história, ou se isso veio a acontecer depois, mas essa leitura ficou comigo por muito tempo, até sumir nele. Não me lembro muito bem quando foi que minha mãe me contou sobre nossa bisavó, mas sei que ela sempre era mencionada quando dizíamos que éramos “pardos”. Que essa era uma forma de manter nosso pertencimento.
Quando entrei para a universidade, tive uma grande crise, pois nunca havia me visto como uma pessoa negra, mesmo tendo esse pertencimento. Certo, isso diz e não diz muita coisa. Mas eu sabia que algo não estava certo – “Como assim? O que fazer com meu pertencimento indígena?” – Não se falava disso. Os rayon[1] próximos a mim, em sua esmagadora maioria, não compreendiam essa identificação e impunham teorizações que não diziam respeito ao meu mundo. Minha história não importava para essa gente, e eu pensava em minha terra, nos meus parentes e na forma que eles concebem/vivem as alteridades. A essa altura, eu tinha já tinha começado a debulhar junto à minha família algumas memórias e lembrava de ter perguntado uma vez para meu avô sobre sua mãe. E sim, era indígena e nasceu em Amparo – cidadezinha pequena, aquela coisa triste. Lembro também de ouvir histórias de meus tios-avós. Eles mantinham o pertencimento. Todos sabiam de onde tinham vido e, de certo modo, quem eram. Cresci no coração dessa família, que diferente da de meu pai, vive dispersa e é pequena. Quando comecei a estudar História das Américas, eu fui me interessando pelas histórias e culturas indígenas, mas tudo mudou quando li Silvia Rivera Cusicanqui[2], uma parente Aymara. Estava ali! Eu sabia que eu não estava mentindo! Ler sobre questões que atravessam as pessoas indígenas no presente foi o caminho para que eu pudesse encontrar/reconhecer meu verdadeiro lugar no mundo. As coisas foram então se desdobrando em outras, no que tange à compreensão do que foi e o que é a História e que as narrativas, teorizações e memórias, assim como nossos territórios e formas de existência, estão em disputa. Fui me lembrando também que as aulas que deveriam ser sobre as histórias indígenas, eram sempre distantes no tempo, no espaço e nunca pensávamos sobre a inscrição e realidade desses sujeitos no presente – com raras exceções, isso ocorria mesmo na graduação. Então, eu não me via ali. Sem (a)manhãs, não há rumo, nem sonhos. Minha formação escolar foi toda assim – e no ensino superior as coisas por aqui (UFOP) ainda são bem incipientes. Ressalto que já estava vigente a Lei Federal nº 11.645/2008, que foi tema de meu estudo de iniciação científica. Essa lei instituiu a obrigatoriedade do ensino de histórias e culturas indígenas nas escolas brasileiras…
Talvez alguns temas como identidade estejam um pouco gastos hoje, mas para pessoas que tiveram suas histórias, seus corpos e culturas atravessadas por diversas formas de violência, não. A primeira menção a alguma forma de pertencimento ou memória indígena que ouvi em minha graduação em História, veio marcada pela negação: “Isso é mito!”. Mas, meus antepassados, as histórias de meu povo, não são mito para mim. São para quem? Tenho consciência que no Brasil as relações étnico-raciais estão na estrutura da sociedade e que histórias sobre antepassadas mulheres violadas ou perdidas na árvore genealógica da família são comuns. Mas, não dizem tudo. O tom, a ignorância, o romantismo, o nacionalismo “desconstruído”[3], a colonialidade, a antropofagia que não desce no esôfago de quem honestamente se inteira de suas origens, dos traumas que atravessam a família, vidas inteiras, violentando de todos os lados aquela pessoa que possui como seus ancestrais o umbigo plantado nessa terra… Não à toa gosto da palavra sentido, pois é assim que fomos nos reencontrando no horizonte. Por mais que isso incomode tanto a alguns, nós, Puri, somos História. E é de dentro para fora e de fora para dentro que muitos de nós nos refazemos, tomando consciência do veio criador que foi nos forjando de ventre em ventre, de mãos em mãos, de canto em canto, até nos encontrarmos com nós mesmos, pois somos e nos importa a continuidade.
Uma questão que sobreveio em meu processo de retomada foi: “onde está o meu Povo?”. Embora eu ainda não tivesse noção da dimensão dessa pergunta, não deixa de ser algo simbólico. Cresci dentro do território e sempre estive tão próximo, mas do mesmo modo, tão distante… A noção temporal e de inscrição, antes entorpecida, já não era tanto, pois eu buscava os meus no presente. E então eu encontrei Raial Orutu[4]. Todas as questões pontuadas por ela me tocaram, assim como o encontro com a escrita da parente Aymara, mas eu ainda não sabia de meu Povo. Foram muitas as conversas que eu tive com minha mãe e com meu avô para coser a história que me conecta com esta terra, com a região de onde meus antepassados mais distantes de que tenho conhecimento vieram, até eu descobrir que eu sou Puri, que a serpente[5] de sangue pulsa em mim. No principio eu não acreditava na possibilidade de sobrevivência de qualquer referência a Povo. Não à toa as palavras de Eliane Potiguara já me fizeram chorar, pois em seu conhecido livro[6] estão ilustrados muitos de nossos traumas: a febre brasílica, que foi adentrando nossas matas, aldeias, morros, mares, serras e o próprio céu, tocando nossas linguagens, marcando nossas vidas para sempre com o peso do etnocentrismo fundante desta nova sociedade que se constituía. Muitas nações altivamente se assentaram em nossos chãos ancestrais, trazendo seus mundos de além-mar e lançando-os sobre as costas das constelações de Povos que habitavam em harmonia com os territórios que constituíram no desenrolar de suas próprias histórias.
Taheantah miti, oera, remete-se à presença de nossos antepassados no presente e no futuro através das pessoas de meu Povo que são coetâneas à existência da sociedade brasileira contemporânea. As retomadas indígenas são movimentos de reelaboração das memórias, identidades e territórios por parte de sujeitos que pertencem a sociedades indígenas, podendo ser por meio da constituição de novos grupos étnicos, ou afirmação ou reivindicação de pertencimento a coletividades que foram sendo, de modo arbitrário, consideradas extintas. Trata-se de um fenômeno existente em diversas regiões, símbolo da resistência dos Povos Originários ante os processos de colonização e políticas de assimilação e extermínio. Em perspectiva temos nossos traumas, mas também sonhos. E sonhamos com nosso território. Quando estive em Viçosa (MG), onde nasci, passei por lugares que sei que minha bisavó e “os antigos” transitavam. No coração de nosso território, em agosto de 2022, encontrei pessoalmente com meu povo. Ali, junto a Ponan, Dauá, Zoronga, Jurandir, Tuka, meus amigos do Krauma, Sue, e tantas outras pessoas, eu vivi uma vida e encontrei forças para levar à minha família a alegria desse reencontro com nossos parentes! Confesso no início desse processo que alguns chamam de caminho de volta, tive muito receio. Minha família sempre manteve isso mais escondido e talvez por isso sobreviveram. Mas, como xamum que veio da terra, do choro sobre a terra, de nosso sangue sobre a terra, carregando nossas memórias, eu sabia que havia adentrado o caminho certo, embora eu tenha nascido em uma família que foi sendo empardecida, em um país que ainda adora o folclore e é hostil aos verdadeiros indígenas, seus conhecimentos, pertencimentos e suas histórias. Makim, taheantah tri dieh-yuñun xambe. Xambe tri pa taheantah krim. Puri, Puri taheantah krim. Ine, mun pañike bay tigagika yuñun boase prika potl’ikama day tatak kaya.
NOTAS
[1] Do kwaytikindo, idioma Puri, “não indígena”.
[2] RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa. Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Tinta limón, 2010.
[3] Aqui me refiro a interpretações ancoradas em estudos de distintos campos que ao mesmo tempo que propõem leituras sobre as sociedades, impõe concepções etnocêntricas sob uma roupagem reformulada.
[4] https://youtu.be/XeLu9lXfC8E
[5] PURI, Txâma Xambé. O sangue Puri da terra: Axe Krim Puri. NJINGA e SEPÉ: Revista Internacional de Culturas, Línguas Africanas e Brasileiras, v. 1, n. 2, p. 436-437, 2021.
[6] POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. 3ª ed. Rio de Janeiro: Grumin Edições, 2018.
Créditos na imagem: Arquivo pessoal do autor.
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