É perceptível, nos últimos dois anos, que o interesse pela Semana de Arte Moderna e pelo movimento Modernista vem ganhando espaço nas discussões não apenas da História, como também de outras áreas do conhecimento, tais como as Artes Plásticas e a Museologia. À frente deste interesse geral, a noção de coexistência entre aspectos antes considerados distantes do movimento acadêmico ou que não tenham obtido igual atenção a este movimento vem gerando importantes discussões para a compreensão de perspectivas diversas. Campo aberto para pesquisas, a multiplicidade modernista representa para artistas, historiadores e demais trabalhadores da educação e cultura uma grande oportunidade de lançar luz a questões ainda pouco colocadas em pauta. Uma delas diz respeito à presença e ao lugar do feminino; além do ciclo de seminários Modernismos em Debate, promovido pela Pinacoteca de São Paulo em 2021, em março, o Museu de Artes Visuais da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP) iniciou, por meio virtual, a transmissão do webnário O Lugar do Feminino no Modernismo Brasileiro, que traz palestras de pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam a estes estudos. Ambos os eventos lidam diretamente com esta noção de coexistências: entre vertentes, técnicas, artistas, discursos e narrativas imagéticas distintas que a princípio não haviam sido consideradas como parte de um conjunto amplo de movimentações no campo artístico em meados de 1922. O estudo da trajetória de Anita Malfatti é um bom exemplo da necessidade de compreender as coexistências discursivas enquanto parte da multiplicidade modernista.
Nascida em São Paulo em 1889, a artista apresentou, ainda no início de sua formação, importantes diferenciais que a destacariam na cena artística acadêmica brasileira: sua formação fora complementada na Alemanha e nos Estados Unidos, por influência de sua ascendência familiar. Este momento inicial é relevante pois permitiu a Anita que se desviasse da conhecida rota francesa, realizada pela grande maioria dos artistas acadêmicos que dispunham de condições para estudar no exterior e lhe conferiu a oportunidade de estudar e se dedicar a outros estilos, principalmente ao expressionismo. De volta ao Brasil, Anita promove exposições individuais que ficariam conhecidas pelas críticas que motivaram. Uma crítica, em especial, continua dividindo opiniões e resultados de pesquisa: a de Monteiro Lobato (1882-1948). Para esta coluna, iremos analisar uma das obras de Anita que melhor representa a questão da diversidade de perspectivas acerca do gênero: Torso/ Ritmo, de 1915, pertencente atualmente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) e fora apresentada pela primeira vez em uma das exposições individuais da artista.
Feita em carvão e giz pastel sobre papel cartão, Torso/Ritmo traz a contraposição dos tons quentes da figura humana e os tons frios do fundo abstrato, além do contraste entre os materiais utilizados. O contorno, feito em carvão, reforça o contorno e as características da figura masculina, aqui apresentada com gestos femininos. Lida de baixo para cima e da direita para a esquerda, a obra tem como narrativa central uma intervenção de Anita quanto às questões de gênero na arte. A própria junção entre as duas técnicas, carvão e pastel, passa a sensação de transitoriedades e nos convida a observar este movimento. A construção imagética da obra de Malfatti é feita de modo a subverter, ao mesmo tempo, concepções diversas como as de estética, narrativa e validação nas artes plásticas. Na historiografia, no entanto, observamos a tendência de se sobrepor a crítica de Lobato à proposta de Anita; o discurso do escritor ganha, muitas vezes, mais hipóteses do que as obras da pintora. Discutem-se as preferências de Lobato pela brasilidade, pela arte acadêmica vigente ou por trabalhos realizados por artistas homens. É preciso que a figura de Anita não seja reduzida ao discurso da crítica, pois isto implicaria em não considerarmos o papel de agente aglutinador desempenhado pela artista na organização da Semana de Arte Moderna. Colocar a atuação feminina e a ideia da Semana de Arte Moderna como dependentes desta validação constante nos limita no sentido de compreendermos estas discussões como parte de um cenário sociopolíticos de intensas e complexas movimentações sociopolíticas. A imagem de Anita enquanto mártir da arte modernista expõe ainda as contradições do lugar do feminino no modernismo: a crítica recebida e a aparência física da artista representam pesos maiores que o realmente seriam para um artista. Frente à figura de sua amiga Tarsila do Amaral (1886-1973), Anita parece ser colocada em segundo plano, mesmo sendo considerada a grande pioneira do movimento da arte moderna no Brasil. Esta não é, entretanto, a noção que vigorava em todo o campo artístico.
Neste mesmo ano de 1922, tomavam lugar as celebrações do Centenário da Independência. Na ocasião, foi produzido o Livro de Ouro do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, catálogo da Exposição que tinha como objetivo apresentar o que havia de mais moderno em todas as áreas de produção no Brasil. A seção dedicada às Artes Plásticas trouxe um pequeno texto sobre a História da Arte no Brasil, que analisaremos em outra oportunidade para esta coluna. Aqui, o que interessa é apontar o fato de que, neste catálogo, há uma breve relação dos artistas que melhor representam a sociedade brasileira em cada momento da História do País segundo os autores. Ao final, são citados os artistas modernos, e dentre as mulheres constam apenas Anita Malfatti e Zina Aita (1900-1967). Por estarmos tratando de um documento cujo discurso é institucionalizado e tinha como objetivo apresentar uma concepção “oficial” da História da Arte no Brasil, a inclusão dos artistas modernos ainda em 1922 demonstra que a recepção ao novo grupo não fora completamente negativa por parte das altas camadas da sociedade. Isto porque estamos tratando, justamente, de uma intenção de abraçar e mostrar a modernidade brasileira, ainda que com tantas resistências e contrariedades.
A presença das duas artistas, Anita e Zina, atesta ainda o início de um reconhecimento mais amplo acerca da atuação feminina. Esteticamente, a obra de Anita Malfatti chama o espectador a participar da narrativa e a se sentir parte dela. Conceitualmente, traz novas perspectivas sobretudo para a cidade de São Paulo, que já vinha buscando se constituir enquanto um centro artístico mais independente do Rio de Janeiro. Embora sob outras perspectivas suas obras dêem continuidade a certos estereótipos e contrariedades da cultura brasileira – como em Tropical (1917), onde a figura feminina aparece quase como outro “produto” das terras brasileiras, a obra aqui analisada é também uma chave de leitura possível aos estudos do gênero nas representações propostas pelo modernismo brasileiro. Esta contradição entre Tropical e Torso/ Ritmo, por exemplo, é em si uma boa questão a ser trabalhada em novas pesquisas. A rigor, é possível identificar na obra aqui analisada elementos que se assemelham às produções contemporâneas no que tange às questões de gênero. Outras obras da artista também trazem uma grande variedade discursiva acerca de questões sociais, como as representações de imigrantes. Por todas estas voltas, percebe-se que o estudo da trajetória de Anita Malfatti pede que tenhamos atenção ao seu redor. Ao seu protagonismo somam-se os esboços de todo um novo cenário para as artes; ritmo talvez seja a melhor palavra para tratar da obra e atuação da artista paulistana; presente na maioria de seus trabalhos mais conhecidos, o ritmo proposto por Malfatti movimenta o que havia de estagnado nas artes em vários sentidos.
REFERÊNCIAS
Livro de ouro commemorativo do Centenario da Independencia do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1923. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital0447/bndigital0447.pdf
Créditos na imagem: Reprodução. Obra “Tropical” (1917), de Anita Malfatti. Foto: Enciclopédia Itaú Cultural.
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