Se eu ganhasse o mundo inteiro, de Amélia a Doralice 

De Emília a Carolina, e os mistérios de Clarice 

Se teu nome principia, Marina no amor Maria 

Só faria melodias com a beleza das meninas 

 

Moraes Moreira  

 

Conta uma amiga que nunca gostou de visitar sua madrinha, mas o fazia por dever de afilhada e porque se sentia familiarmente pressionada. 

Conta essa amiga que sempre que ia à casa de sua madrinha levava consigo um guarda-chuva. 

Mesmo em dias ensolarados, em que hipótese de chuva era impossível, ela levava um guarda-chuva. 

Ela argumentava que não poderia ser pega de surpresa, caso chovesse, e ela estivesse sem guarda-chuva e tivesse que se demorar na visita, esperando a chuva passar. 

Nunca me esqueci dessa história e do sentimento de encarceramento que minha amiga tinha e do sentimento de sequestro dela. Dela refém de uma suposta e ameaçadora chuva durante uma visita cheia de formalidades e, por que não, hipocrisia. 

Guarda-chuvas carregados assim, insistentemente, mesmo em dias de sol me fazem lembrar a história, parte de um anedotário, de que Graciliano Ramos era pessimista. 

Ele sempre saía de casa com um guarda-chuva em mãos. Divirto-me com a lenda. 

Mas, o mais engraçado na história de minha amiga é que ela diz que a madrinha dela servia um café com leite intragável, fraco, morno, adoçado ao extremo e com aquela nata do leite boiando na xícara. 

Não sei se o velho Graça era de fato pessimista. Sei que foi acusado de ser comunista, foi preso por isso, sem nunca isso ter sido. 

A madrinha de minha amiga eu nunca conheci. 

Não chego a ser nem pessimista, nem otimista, mas um bom guarda-chuva não me recuso a carregar. E em dias muito molhados se puder não ponho nem meu nariz na porta de casa. A minha força descai. 

 

A menina de quinze anos, que conversou comigo no metrô, ia ter aula de inglês à tarde. Tinha olhos apertados, óculos grandes e sorriso fácil. 

A primeira coisa que comentei com ela a fez sorrir. 

Ela me lembrou de quando fiz aniversário de quinze anos. 

Disse a ela a história, mas disse que fazia tanto tempo que nem sabia quanto. Mentira. Era só fazer as contas. Não fiz. Pra quê? Para ficar mais velho ainda? E nem seria frente a ela, que certamente eu isso já era. Era frente a mim mesmo. 

Ainda me lembro, vivamente, que no dia quinze de setembro do ano em que fiz quinze anos fui almoçar e havia embaixo do prato onde comeria um pacote retangular não muito alto e um cartão. Meu pai à mesa, na cabeceira daquela mesa, minha mãe a seu lado e eu em seu outro lado. 

Dizer que lembro o que almoçamos seria mentira, ficção, memória inventada ou invenção de memória. Maneira de amplificar narrativa. Não lembro mesmo. Pode ter sido estrogonofe, que é um prato típico de meu paladar adolescente. 

Lembro-me do discurso de meu pai. Essa coisa do tipo você está crescendo. Lembro que desembrulhei o pacote e li o cartão. 

Embrulhada era uma caixa, cujo conteúdo tinha uma caneta dourada. Uma esferográfica, dessas que se mudam a carga quando necessário. E necessário era quando a tinta acabava ou quando ela se secava. Coisas do mundo analógico. A caneta era uma Cross. 

Meu pai disse: 

– Olhe, está gravado seu nome. 

E não é que estava mesmo inscrito Eduardo Sinkevisque naquele objeto de desejo? 

Meu pai me presenteara com meu nome, com meu nome inscrito numa caneta Cross dourada e com um objeto de desejo. 

 

 

A menina de olhos apertados, de sorriso fácil e aluna do primeiro ano do ensino médio podia ser muitas coisas minha. Podia ser filha, devido a nossa diferença de idade. Podia ser aluna. Podia ser apenas uma passageira no mesmo vagão, e a meu lado, no metrô enquanto íamos para a mesma estação. 

Lá fora o dia secava-se e se iluminava de um amarelo que há dias não se via na cidade. 

A menina de olhos apertados, óculos grandes, sorriso fácil e aluna do ensino médio foi o dispositivo para a memória do dia em que fiz quinze anos. Foi a interlocução. 

 

Quando cheguei à estação Tucuruvi do metrô, ela já havia vendido todos os cinquenta pacotes de balas de coco iniciais de hoje. Eu já havia vendido minha força de trabalho, que como saliva já havia sido bala. 

A cesta com o pano de prato, tipicamente pintado e desenhado pela simplicidade de sua condição, estava vazia. Eu estava vazio. Vinha respirando pelo nariz e soltando o ar pela boca, assim descansando e tomando fôlego. 

Ela ia buscar mais balas de coco para continuar a vender durante a tarde agora. Eu não tinha mais balas, nem que quisesse as vender. A fabricação de minhas balas é mais demorada. 

Ao andar, carrego um mamute. Ao elaborar o que vendo em palavras, respiração e cuspe, é mais do que um elefante que fabrico, ou um poema que trate de mãe e em que todas as mães se reconheçam. Também nem sempre doces, nem sempre para o outro com sabor. 

A tarde era azul. Absolutamente azul. 

Ela, a vendedora de balas, tinha a chance de buscar mais para vender. Eu não. Nem que eu quisesse. 

A mim restava recolher dos olhos as roupas coloridas que vi em varais de vários quintais de casas pelo trajeto que me levou de Guarulhos até o metrô Tucuruvi. E reparar vermelhos intensos que não se expõem por aí. 

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Cotidiano. Foto: Chronosfer.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “156”][/authorbox]