Tudo muda para ficar igual

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Era véspera de uma daquelas datas consideradas importantes por resumir o ano todo em dez segundos. Restaurantes só funcionavam com reservas. O senhor precisava ter feito a reserva com no mínimo 3 meses de antecedência, respondiam os trabalhadores automatizados. Lojas abertas até às dezesseis horas. Já os vendedores ambulantes funcionando até os últimos segundos daquele ano. Óculos com o ano estampado, apitos, confetes, pulseiras e tantos outros objetos que carregam a ideia de felicidade materializada em barulho e exposição. Ruas cheias e com euforia a cada nova esquina. Este ano será diferente, disse o jovem com pouco passado e muito futuro. Apenas saúde e tranquilidade é o que desejo, disse a senhora com muito passado e pouco futuro. Telas de celulares em todos os cantos. A felicidade não pode mais ser um instante como diriam os antigos. Ela deve perdurar o máximo possível nem que para isso seja armazenada em um grupinho de WhatsApp ou noutros aplicativos feitos para ela proliferar. Em uma dessas esquinas algo alheio se encontrava. Algo que era incluído na paisagem a partir da sua condição de excluído. Um casal ajoelhado e ultrajado pela vida com um copo nas mãos implorava por ajuda. Temos fome. Por favor, nos ajudem. A multidão se empurrava e se grudava em um movimento de deixar Hegel enciumado. O interessante era que justamente em frente aos ajoelhados surgia um vazio de humanos ou, talvez, de humanidade. Parecia que as teses 27 e 28 de Martinho Lutero foram internalizadas tão literalmente que não se ouvia nenhum tilintar de moedas lançadas no copo. O problema é que o tilintar que ali deveria se ouvir não era para a alma sair voando do purgatório, mas para os corpos receberem alimentos básicos. Para dois corpos dotados de alma restabelecerem a dignidade. Não para aumentarem lucros e a cobiça tal como apontado pelo reformista. Será que conseguiremos ver os fogos? Ainda nem comprei o meu espumante para estourar a meia-noite. Ainda bem que estou com roupas amarelas. Dinheiro, né?! Frases e mais frases eram ditas ao redor. Risos e gritarias inenarráveis. A escravidão de um único ser humano é a escravidão de todos. Maldito Bakunin que não deixava a cabeça aproveitar nem mesmo uma festa. Empurradas pela muvuca, por não mais do que quinze passos longe dos ajoelhados, as pessoas eram postas diante de um enorme urso balançando os braços e dançando. Diante dos pés do urso estava o mesmo tipo de copo usado pelos ajoelhados. A diferença entre os recipientes, no entanto, era marcante. O dos famélicos com cinco ou seis moedas de baixo valor. O do urso dançante com tantas moedas que já não cabiam dentro do copo. Fotos. Pais e crianças rindo e abraçando o urso. Fotos. Jovens bebendo e acariciando o enorme urso de pelúcia. Claramente o humano que estava trajado de urso era mais um dentre tantos outros que compõem a massa de expropriados. O espantoso era a absoluta cegueira moral dos que participavam daquela festa obscena. Ao passar em frente aos famélicos que imploravam por uma moeda o olhar era de desdém, desconfiança, nojo ou indiferença. As crianças eram afastadas pelos adultos. Não tenho nada. Cuidado. Diante do urso de pelúcia a histeria coletiva se alimentava. Vai lá, meu amor. Coloca uma moedinha para o urso não parar de dançar! O urso, enquanto um trabalhador informal na condição máxima de exploração sem direito algum, dançava. A festa prosseguia sem nenhuma vergonha de ser o que é. Ali do lado, na outra praça, algo coroava a noite das transformações. Agentes da segurança pública espancavam um negro por ter ultrapassado uma área proibida. Enquanto acontecia o linchamento público, gratuito e de qualidade oferecido pelo Estado, no mesmo lugar, na mesma hora, fazendo a mesma coisa, passavam sete, oito, nove e dez brancos. Todos correndo da polícia enquanto a mesma coibia os atos transgressores daquele outro. Um dos polícias ao perceber a estranha movimentação sacou de imediato o seu apito. Pôs-se a apitar como se não houvesse amanhã. Seguro de sua função. Seguro de estar cumprindo ordens. Com um fôlego de nadador. Claro. Enquanto isso o negro que fora espancado era posto dentro do camburão. Seria levado para não se sabe onde, mas seguramente longe da festa e dos outros transgressores que inacreditavelmente não foram parados pelo som do apito. O seu delito, aos olhos dos policias, fora de uma natureza colossal diante do mesmo delito cometido pelos outros dez brancos. A disciplina de alguns é feita pelos sinos e escolas. A de outros, por coronhadas e tiros. Maldito Frantz Fanon que não deixava a cabeça aproveitar nem mesmo uma festa. DEZ, NOVE, OITO, SETE, SEIS, CINCO, QUATRO, TRÊS, DOIS, UMMMM!!!!

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago David Stadler

Doutor em História. Professor Adjunto do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná campus de União da Vitoria. Contato: thibastadler@gmail.com

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