A semana retrasada foi marcada por um caso absurdamente bizarro em que um policial militar do estado de São Paulo, alocado na ROCAM, a Ronda Ostensiva com Apoio de Motos, arremessou um jovem de 25 anos de uma ponte de mais ou menos 3.7 metros de altura, em meio a uma abordagem. A ocorrência se deu em Cidade Ademar, zona sul de São Paulo (SP), na saída de um baile funk que havia sido disperso por agentes da Polícia Militar. O rapaz que foi arremessado disse que não estava na festa, mas passava de moto na região quando foi abordado. Por baixo desta ponte corre um valão, tipo de ducto infelizmente comum nas paisagens das periferias brasileiras que escoa o esgoto do local. Foi onde caiu de joelhos, e de onde se levantou, socorrido por moradores locais, e saiu andando, cambaleante. Sua cabeça estava ferida pelos golpes de cassetete que havia levado antes de ser atirado – ferimento que precisou de 8 pontos para ser fechado. Em depoimento à polícia, ele contou que o policial o disse: “‘você tem duas opções: ou você pula da ponte, ou eu jogo você e sua motocicleta daqui’.” Sentiu, naquele momento, “Uma sensação horrível […]. Eu não sei voar. É impossível” (FANTÁSTICO, 2024).
Ficamos sabendo do que aconteceu pela publicação de imagens gravadas por um celular. Uma câmera de segurança de um estabelecimento particular também registrou alguns momentos da ação. São imagens chocantes. Mostram um grupo de policiais rendendo um motoqueiro que, já imobilizado, é içado pelo PM pela perna direita e jogado por cima do parapeito, como se fosse… Como se não fosse uma pessoa. A “leveza” com que o rapaz foi levantado é assustadora, sobretudo pelo contraste com o peso daquela atitude. O fato foi classificado como “violência arbitrária” (JOZINO, 2024), mas na verdade trata-se de tortura, situação estruturada por uma hierarquia na qual o torturador joga com a vida do sujeito torturado, visando demonstrar poder sobre ela e, assim, busca reiterar a própria estrutura hierárquica. “Quase morri na mão de um policial que estava desequilibrado. Não tem o que falar. O que passou na mente dele pra ele me jogar da ponte?”, questionou a vítima torturada. Entrevistado, seu pai também mostrou deparar-se com a vida e com a morte: “Eu vi meu filho morrendo, cara…”. Assim como a vítima colocou a questão sobre “o que passou na mente dele”, o pai pediu uma explicação ao policial do por quê ele fez isso. Esta é uma pergunta que assombra todos aqueles que já tiveram contato com a perversidade e a violência – e que, ainda que se encontre alguma resposta, nunca se finda, e sempre traz à boca o gosto da injustiça. O próprio pai a respondeu: “Para mim, é maldade. Pura maldade.” E é, mesmo que se enumere uma série de outros elementos para analisar e explicar como uma situação como esta pode vir a acontecer.
Na segunda obra que escreveu após deixar os campos de concentração nazista, de ter sobrevivido, Primo Levi refletiu sobre a colaboração com o regime totalitário, em suas variadas expressões e razões. Trilhou, neste pensamento, um caminho solitário e pedregoso, onde teve de afirmar que alguns privilégios motivaram os presos a disporem um bocado de seus tempos, energia, habilidades, aptidões, em prol do funcionamento do sistema que os fez presos. É delicado falar em “privilégio” em uma situação tal qual a dos campos concentracionários, mas uma ida à raiz da palavra traz clareza ao seu significado bruto e ajuda a afastar algumas clivagens morais: lei de âmbito privado, podendo reger indivíduos ou grupos. Diz da abrangência de uma determinada norma. No caso analisado por Primo Levi, estes privilégios permitiam que a vida fosse um pouco mais possível dentro do campo, não só simbolicamente, mas de forma literal. Muitos o fizeram por uma porção maior de sopa, por exemplo. Falou isso para defender que, ainda que tenham exercido algum grau de colaboração, em nenhuma hipótese estas pessoas poderiam ser transpostas para os lugares dos assassinos. Seu objetivo era demarcar este limite e esta diferença: existem vítimas e existem assassinos, e um não pode ser confundido com o outro. Sua fala responde a uma vertente de pensamento que, esticada, chega a dizer que em todo ser humano reside um assassino… Mas, sobre isso, afirmou:
Não entendo muito bem do inconsciente ou do profundo, mas sei que poucos entendem disto e que esses poucos são mais cautelosos: não sei, e me interessa pouco saber, se em meu profundo se aninha um assassino, mas sei que fui vítima inocente, e assassino não; sei que os assassinos existiram, não só na Alemanha, e ainda existem, inativos ou em serviço, e que confundi-los com suas vítimas é uma doença moral ou uma afetação estética ou um sinal sinistro de cumplicidade; sobretudo, é um precioso serviço prestado (intencionalmente ou não) aos negadores da verdade” (Os Afogados e os Sobreviventes, 2023 [1986], p. 37).
Um curto e super eloquente texto de Maria Rita Kehl, psicanalista e estudiosa justamente do inconsciente e do profundo não só dos indivíduos mas das sociedades que eles formam no coletivo, vem nos dizer da tortura como um sintoma de uma patologia social do Brasil que teria resistido à “pseudoanistia” de 1979. “Pseudoanistia” pois não houve o enfrentamento do debate e a punição pública sobre atos brutais, o que dificulta a inscrição de que estes atos aconteceram, e a tomada de responsabilidade sobre a crueldade que foi produzida. O resultado é o adoecimento da sociedade, e a revelação da doença que já habita os próprios torturadores. Isto pois
não se ultrapassa alguns certos limites impostos ao gozo impunemente. Assim como certas experiências com a droga e com o álcool traumatizam o psiquismo pelo encontro com o gozo da pulsão de morte, o convívio ‘normal’ com a crueldade traumatiza o sujeito que se autorizou a ser cruel e imagina beneficiar-se disso. O sentimento de realidade – que para o homem é sempre uma construção social – se desorganiza, assim como o sentimento de identidade do sujeito. Não é fácil efetivar a passagem do ‘sou um homem’ para ‘sou um assassino de outros homens’ – ela tem um preço alto. O efeito, para o próprio sujeito, é tão aterrorizante que ele se vê impelido a repetir seu ato mortífero até assimilar de vez sua nova hedionda identidade (Tortura e Sintoma Social, em O que resta da ditadura, 2012, p. 130).
Dito de outra forma, existe sim uma passagem para o outro lado dos limites impostos ao gozo que, para o sujeito, ele passa a uma atitude reiterada e insistente de reafirmação do convívio com a brutalidade, forçando que seja percebida como ‘normal’, até que se aceite em sua nova identidade, a de assassino. E com essa assimilação, tanto em termos individuais quanto em termos coletivos, o maior problema é que, além do sujeito anterior, morrem-se, também, os parâmetros do que é normal para o convívio social, e a possibilidade de vislumbrar uma vida sem a brutalidade.
A democracia que vivemos no Brasil foi erguida em cima de uma grande mentira: a de que não houve tortura sistemática na ditadura militar, a de que a ditadura militar brasileira não foi violenta. A sobrevivência dessa mentira dependeu da colaboração do parlamento brasileiro, que promulgou a Lei de Anistia de 1979 e impediu a operação da Justiça, instância institucional de produção da verdade. Em 2010, a própria Justiça fez sua escolha e manteve-se/manteve-nos em situação de mentira, quando não reviu a anistia tal qual foi feita em nosso país em um momento posterior, à luz de seus efeitos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010). Este discurso mentiroso abrigou um certo grupo da população que, uma parte, acreditou na mentira, e outra parte, sabendo da verdade, seguia defendendo a violência como método de aniquilação da diferença. Com o passar do tempo e, principalmente, com a emergência do bolsonarismo, essa mentira começou a ser desfeita. Jair Bolsonaro foi a figura política que representou este grupo que, sabendo da verdade, ainda defendia a violência estatal, tornando a defesa da violência pública. Neste período, criou-se, entretanto, uma outra mentira: a de que “bandido bom é bandido morto”, a de que “direitos humanos é para humanos direitos”. Isto porque uma vez explícito que houve emprego de violência estatal na ditadura militar, não poderiam perder para a desilusão a parcela da sociedade que simplesmente acreditava que não tinha havido. Era preciso contar uma outra mentira para manter este grupo no lado oposto do discurso democrático, e essa mentira é de que a violência foi justificada.
Repete-se pelas sombras do mundo uma ideia de Joseph Goebbels, que foi ministro da Propaganda de Adolf Hitler durante a Alemanha Nazista, de que uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade. Essa é uma grande mentira que, apesar de vir sendo contada milhares de vezes, nunca tornou-se uma verdade. A mentira, ela é antinatural. Para que seja proferida, a mentira deve resistir ao corpo do mentiroso, deve resistir aos corpos das testemunhas, e, no limite, ao corpo da vida da História, esse lugar simbólico onde o que realmente aconteceu se inscreve e está sempre prestes a gritar que existe e lá está. (Talvez por isso Joseph Goebbels tenha se suicidado, sua esposa tenha se suicidado, e ambos tenham matado toda a família, os 6 filhos: o suicídio como a única forma de preservar uma mentira contra os vários corpos. Eles próprios tornaram-se provas materiais do crime que cometeram.) A mentira, isso é verdade, é uma arma e muitas vezes é empenhada em prol da autopreservação, seja do mentiroso em si, seja da estrutura fantasmagórica erguida sobre uma mentira que, afinal, serve ao mentiroso e ao grupo de mentirosos que pertence. Fantasmagórica, pois, ao contrário da verdade, edificada pela liga concreta formada entre os diversos fragmentos de verdade auto suficientes, auto sustentáveis, a mentira não forma liga ou, se forma, é por um conjunto limitado de elementos, enquanto a verdade é ilimitada, infinita, irreparável, inexorável. A verdade está sempre prestes a ser desvelada, revelada e a mostrar-se como é, muitas vezes dura, crua e nua.
Acontece que é verdade que violência gera violência. E que a criminalidade deve ser combatida. E o que o caso de SP mostra é que a população sabe que criminalidade não se combate com mais crime, mesmo que seja praticado pela polícia. A sociedade reagiu às imagens que viu – que geraram uma enxurrada de outras imagens, de outros episódios, envolvendo policiais de outros estados, inclusive. O eleitorado periférico que deseja uma polícia forte e atuante o quer para que seus filhos e filhas não sejam aliciados para a criminalidade. Quer viver em um ambiente tranquilo e livre de brigas, confusões, covardia, tortura, violência, que é o oposto do que foi visto no vídeo. O eleitorado médio quer segurança para andar nas ruas com seus celulares, com seus pertences adquiridos através do trabalho, e uma polícia que faz o que fez só aumenta a sensação de insegurança, de que algo grave pode acontecer a qualquer momento. Talvez essas pessoas estejam começando a sair da zona cinzenta do discurso sobre a repressão na qual se colocaram, à luz da experiência de um projeto autoritário levado à cabo pelo bolsonarismo. Se antes prevaleciam a crença em uma mentira, seguida pela frustração de não verem realizado este projeto violento pelo impedimento das forças democráticas, o bolsonarismo realiza esse projeto e todos podem ver que não traz mais segurança, nem de fato, nem em sensação. A violência não está recalcada.
Restarão, ainda, os que defendem a violência por convicção. Ou, por cumplicidade. Em uma passagem de Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi descreve uma importante dinâmica adotada quando ex-inimigos tornam-se aliados, um “modo de agir conhecido das associações criminosas de todos os tempos e lugares”: “o melhor modo de comprometê-los é carregá-los de crimes, manchá-los de sangue, expô-los tanto quanto possível: assim, contraem com os mandantes o vínculo da cumplicidade e não mais podem voltar atrás.” (p. 23) Com este mecanismo, a revelação da verdade sobre os outros o indiciaria, também, a si próprio. Basta ver a trama golpista que foi arquitetada para impedir que o presidente Lula, democraticamente eleito, tomasse posse em 2023 mediante os resultados das eleições de 2022, que envolve Jair Bolsonaro e todo o seu entorno. A defesa do ajudante de ordens, tenente-coronel do Exército Brasileiro Mauro Cid, primeiramente alegou que o chefe não tinha conhecimento de seus planos. Isto é improvável sob diversos pontos de vista, mas, uma vez reveladas as movimentações que indicam a ocorrência de crime, este certamente torna-se o ponto de vista em que esse argumento é ainda mais improvável. Aliás, o inquérito da trama golpista é um ótimo exemplo de que uma mentira contada mil vezes segue sendo uma mentira. E a mentira de que o resultado das urnas foi fraudado está sendo, hoje, assunto dos tribunais.
Em São Paulo, a escalada da violência está, agora, sendo tratada não mais como reiteração das mentiras já conhecidas, mas como um “completo erro”, o que não é mais que um ajuste no discurso sobre a política de Segurança Pública – uma vez que refere-se a um errante na política que, por isso, deve ressoar pesquisas qualitativas internas que capturam a repercussão e o pensamento imediato dos potenciais eleitores. Sem estrutura para conduzir o processo e sem lastro histórico, precisa ter ouvidos atentos para equilibrar-se, dia a dia, na corda bamba das opiniões quentes do eleitorado. Talvez não estivesse “nem aí” quando ninguém mais estava, mas agora, direta ou indiretamente, pode estar se vendo obrigado a conversar com os 2 milhões de brasileiros que, nas salas do cinema, ecoaram o grito de que “Ainda Estou Aqui”, enunciado que diz respeito, junto à Eunice Paiva, à todo conteúdo verdadeiro sobre a crueldade da violência estatal, à verdade de que a violência policial é intolerável. Enunciado que mostra que Rubens Paiva, sua história e sua memória não permaneceram, no tempo, desaparecidos, mentira contada por seus torturadores. Por isso, olhando os revezes no negativo, pode-se ver um bom indicativo da sociedade. Se é uma posição pontual do momento, ou se já é uma tendência de revisão dos discursos nutridos pelo bolsonarismo, isso o tempo vai dizer. Quero dizer, na verdade, o que o tempo vai dizer é quanto tempo o tempo levará para dizer toda a verdade.
REFERÊNCIAS
BERRÊDO, José Raphael; G1 RIO. Morte de Evandro Teixeira: veja fotos icônicas e conheça as histórias por trás delas. g1 Rio, 04 nov. 2024. Acesso: https://shorturl.at/Ls04f
FANTÁSTICO. “Quase morri na mão de um policial que estava desequilibrado”, afirma jovem arremessado da ponte. g1 – Fantástico, 08 dez. 2024. Acesso: https://shorturl.at/b3oAJ
JOZINO, Lucas; LEITE, Isabela; TV GLOBO; GLOBONEWS. PM que jogou homem de ponte em SP é preso após prestar depoimento. g1, 05 dez. 2024. https://shorturl.at/CJfz6
KEHL, Maria Rita. Tortura e Sintoma Social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladmir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 123-132.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sérgio Henriques. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
NATÁLIA. Para conhecer: as fotos de Evandro Teixeira. Lomogracinha. 25 set. 2012. Acesso: https://shorturl.at/nZ7ta
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF é contra revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. STF Notícias. 29 abr. 2010. Acesso: https://shorturl.at/jF3sf
Créditos da imagem da capa: “Queda de motociclista da FAB”, de 17/09/1965. Em: BERRÊDO, José Raphael; G1 RIO. Morte de Evandro Teixeira: veja fotos icônicas e conheça as histórias por trás delas. “g1 Rio”, 04 nov. 2024. Acesso: https://shorturl.at/Ls04f
Ana Carolina Monay dos Santos
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