Quando pensamos em filosofia antiga, muitas vezes a associamos com grandes pensadores dedicados à busca pelo conhecimento. Nesse sentido, eles visavam o conhecimento daquilo que é real objetivamente que, uma vez alcançado, fundamentaria os princípios que guiariam suas ações, os direcionando a um certo estilo de vida. Os sofistas, durante muito tempo, foram considerados aqueles que, visando a persuasão, negligenciavam o conhecimento e, junto dele, qualquer reflexão moral; e, por isso, não poderiam ser considerados filósofos.
No entanto, Górgias, um dos sofistas mais famosos do séc. V a.C., parece ter uma reflexão moral segundo uma perspectiva da impossibilidade de comunicar o que conhecemos[1]. Ele dizia que, havendo diversos discursos acerca de como se dá o real, mesmo que exista algo a ser conhecido, ou uma forma de conhecê-lo, não há como falar sobre ele – pois se fôssemos capazes de expressar em nossas palavras como a realidade objetiva é, haveria apenas um discurso possível acerca dela.
Górgias concebia que, se não somos capazes de dizer aquilo que conhecemos, sempre que tentamos fazê-lo, nós dizemos uma opinião e não a verdade mesma, isto é, aquilo que é real. De acordo com ele, é como quando tentamos dizer que algo é verde: a palavra “verde” não é o mesmo que ver o verde. Ora, se não somos capazes de comunicar o que é a realidade objetiva, a melhor forma de usar o discurso seria visando convencer os outros a agir de acordo com uma opinião que não prejudique quem é persuadido.
Se o discurso não é capaz de comunicar aquilo que conhecemos enquanto real, então ele não comunica o que seria moral independentemente dele. Ou seja, se a moral é baseada em fundamentos externos ao discurso, não há como comunicá-los pois, como acontece com a palavra “verde”, quando tentamos falar acerca de uma moral que não foi elaborada pelo discurso, as palavras que emitimos não são capazes de abarcar como os princípios dessa moral realmente são. Nesse sentido, conhecer princípios morais externos ao discurso, não significa ser capaz de comunicá-los.
Uma vez que o discurso não é capaz de transmitir tais princípios, podemos pensar que não há uma comunicação direta entre ambos. Ou seja, se os princípios morais existem independentemente do discurso, e este último é tão diferente do primeiro que lhe é inviável traduzi-lo em palavras, então é como se estes princípios fossem de uma ordem completamente diferente da do discurso. Similarmente a falar sobre princípios externos ao discurso, seria tentar sentir o sabor de algo visível – duas categorias tão diferentes que acabam incomunicáveis. Ora, assim como nos parece estranho dizer que algo visível não é agradável por causa de seu gosto, também não seria apropriado dizer que um discurso não é moral a partir de princípios que são de uma ordem diferente da dele.
Porém, se não somos capazes de julgar o discurso a partir de um critério moral independente dele, como nos seria possível ter certeza se tal discurso é vantajoso para quem o ouve? De acordo com Górgias, a princípio, não há como saber – somos apenas capazes de julgar um discurso como benéfico ou prejudicial a partir de um contexto.
Tal contexto surge no momento em que o ouvinte é persuadido pelo discurso que lhe foi apresentado. Se este é um discurso que traz boas repercussões àquele que teve sua opinião modificada por ele, este é um discurso benéfico. Se não for este o caso e as repercussões do discurso forem prejudiciais ao ouvinte, o poder de persuasão do discurso não foi propriamente usado, sendo este um discurso imoral, ou até ilegal.
Dessa forma, um discurso não será avaliado a partir de uma moral que ele não é capaz de comunicar; ele será, na verdade, julgado a partir da convenção humana, oficializada na lei. Esta, por ser desenvolvida pelos homens através do próprio discurso, é capaz de julgá-lo, a partir de um contexto, enquanto moral ou não.
Na esteira de nossos estudos, podemos concluir que, apesar de sua atividade ser a de um sofista, Górgias apresenta reflexões de teor filosófico. Ele considera a possibilidade de o homem conhecer o que é real, mas, por assumir que o discurso não é capaz de comunicá-lo, acaba elaborando uma reflexão moral acerca do uso deste sem recorrer à realidade objetiva ou a princípios que seriam de uma ordem diferente da do discurso. Górgias, por outro lado, estabelece o critério de julgamento do discurso na convenção, mantida pelo próprio discurso e cristalizada na lei.
REFERÊNCIAS
CASERTANO, Giovanni. Sofista. Tradução de Pe. José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2010.
CASSIN, B. O efeito sofístico. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira et al. São Paulo: Editora 34, 2005.
COELHO, M.C.M.N. Eurípides, Helena e a Demarcação entre Retórica e Filosofia. São Paulo: USP/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2001.
DINUCCI, A. Apresentação e tradução do Elogio de Helena, de Górgias de Leontinos. In: ETHICA, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, 2009, p. 201-212.
DINUCCI, A. A Sedução do Discurso Poético no Elogio de Helena de Górgias. In: DINUCCI, A. (Org.). Górgias de Leontinos. São Paulo: Oficina do Livro, 2017a. p.27-48.
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
MARTINEZ, J. T. A Defesa de Palamedes e sua relação com o Tratado do não-ser, de Górgias. Tese de Doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP, 2008.
KERFERD, G.B. O movimento sofista. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
Notas
* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
[1]O atual ensaio é resultado de uma pesquisa de mestrado (orientada pelo Prof. Dr. Fábio Fortes) realizada na UFJF, na qual buscamos investigar a possibilidade de haver um pensamento desenvolvido por Górgias que é apresentado e perpassa tanto o Tratado do não ser quanto o Elogio de Helena.
Créditos na imagem: foto reprodução. Disponível em: https://counter-currents.com/2013/11/what-socrates-knew-part-13-of-15/
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Daniela Brinati Furtado
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