Fogão Aceso (edição do autor), apresentado por Fernando Cea Nuñez, é um livro híbrido, um misto. É um movimento musical. Uma rapsódia, uma sinfonia polifônica, dodecafônica. Não pela sintaxe dos textos, mas pela aura que emana. Tem poemas curtos, médios e longos, como são as ondas médias e curtas do rádio. Tem prosa, crônica, mini crônica, tem poema em prosa. Mas, é, sobretudo, um livro escrito por um poeta. Nei Schimada é um poeta. Escreve como poeta. Não apenas por escrever poesia, mas por seu olhar, sua visão de mundo ser a de um poeta. E, por ter como ofício a poesia. KS Nei, como ele assina seu livro, é afinador de pianos, para isso é preciso ter ouvidos, ouvir; é artista plástico; músico; escritor. KS Nei é poeta.
Enquanto lia Fogão Aceso, troquei alguns áudios por aplicativo de celular com ele. Eu comentava os textos que lia, minha experiência. Ele me contava alguns dos bastidores de sua escrita, as histórias contidas às escondidas nos textos do livro. E a coisa (res), matéria, foi ficando auditiva. Os textos que eram lidos, mancha na folha branca, registro gráfico em tinta, foram ficando audíveis. Eles carregam musicalidade (de seus ritmos), em suas referências de bandas de rock, de punk rock, de jazz, de músicos de jazz, entre outros, e começavam, a mim, a emitir mais sonoridade, conforme eu ia lendo e trocando os áudios com Nei.
Esses áudios passaram a ser minhas anotações, e eu já fazia anotações em caderno físico, em papel, anotações materiais, analógicas. São essas anotações que aqui amplifico, no sentido de sobre elas discorrer e no sentido da caixa de som, do amplificador de instrumentos, espécie de metáfora cara ao autor do livro.
Não vou analisar a poesia de Nei Schimada, nem vou resenhar Fogão Aceso. Não se irrite, leitor, com meus impressionismos. Esta é uma escrita-ouvido, uma oitiva, uma audição. Não é uma auditoria, nem é uma investigação, logo eu tão investigativo, pesquisador antigo.
Dos 77 textos, destaquei, enquanto li, 16. Não porque sejam os 16 melhores. Não se trata de um top 16. Aliás, tanto em Nei quanto em mim nada é top, nem “topzeira”. A gente não é de camarote, nem V.I.P. São 16 textos que não tive como não destacar. Foram os textos que mais me tocaram, que mais tocaram no rádio de meu coração, como canta Morais Moreia em Sintonia, aquele sucesso de 1986. São 16 à guisa de exemplificação.
Gilberto Gil, em Essa é pra tocar no rádio, canta, meio que classificando, para que servem determinados tipos de música ou canção. Ele critica alguns argumentos empresariais, comerciais em arte, ainda que em arte de indústria cultural, de comunicação de massa, de massificação.
Definitivamente, os textos de Nei, sejam poemas, sejam prosas, sejam poemas em prosa, não são produtos de massificação. A canção de Gil, elaboradíssima, escapa à baixa qualidade de musiquinha para surdos. Pense em Gil com Jorge Ben (ainda não Ben Jor) tocando e cantando Essa é pra tocar no rádio. Ouça isso e você ouvira os textos de Fogão Aceso. Eles têm essa estirpe, essa pegada, essa vibe.
Os 16 textos que destaco são, para mim, faixas no dayol, por isso a seleção. Pela ordem de entrada no livro, destaco: “Última carta da casa sem reticências”, em que Nei começa pelo fim, se despedindo do Japão, após lá viver e trabalhar (muito) uma eternidade de muitos anos; uma crônica em tom confessional, um ego documento, uma escrita de si, uma escrita pessoal, que ao longo do livro vai se dissipar e se universalizar nos poemas e crônicas que, embora, líricos, têm tons e tonalidades menos confessionais; “Peras Verdes”, uma crônica de observação e reflexão crítica, uma narrativa sobre o trivial cotidiano que explode em hábitos corporais, tradicionais, memorialísticos; “Tipo um blues”, poema, cuja música é referência e condição e condução, talvez matriz da poesia de Nei Schimada; “Eu precisava vir ao Brasil urgentemente”, uma crônica-poema pessoal, escrita de si, sobre a vinda do autor para o Brasil quando sua mãe faleceu; a construção temporal da vivência temporal, em sofrimento e angústia, condensando tudo na frase final, ou verso final: “38 horas era o agora mais possível e não me atrasei”; “Listen to a Dozen Blues”, espécie de “de tudo fica um pouco”, de Drummond, à maneira de Nei, musical; “E o Jiló na Terra do Sol”, crônica saborosa sobre amargor e diferenças culturais entre o Brasil e o Japão; “Aula de Música (‘Aura’ – Miles Davis); é o milesdavinismo de (e em) Nei, crônica bem humorada e cheia de referências musicais; “Howlin Wolf é fodão”, um poema blues com quase legenda, explicação, não tem o nome de aula, mas é uma legítima aula; “Sobre o lixo Japonês”, crônica memorialística, mais do que lição, embora haja explicação; “Verves”, que não se confunde com “Verve”, é um poema falante e que mostra a arbitrariedade, ao mesmo tempo mantém a música como referência e matéria, é um poema quase melancólico, à deriva, como se a comunicação estivesse à deriva; “O berimbau é hipnótico”, poema sem nome, mas cujo primeiro verso o nomeia, conforme cito, aproxima estilos musicais e culturais americanos brasileiro e norte-americano e japonês (pela inclusão do mantra, talvez), tem ritmo mimético ao som produzido pelo instrumento; “Foi”, tem na última parte uma ironia crua, uma ironia realista, um modo de compor um realismo que lembra Rubem Fonseca, pois o texto vinha leve, alegre e termina ardido, dolorido; “Um bom livreiro usa os óculos pendurados no pescoço”, poema cujo primeiro verso é este, mistura literatura e música, letras e sons, desejos; “É sobre o homem que passa o dia todo puxando a carroça de tralhas”, uma crônica, poema em prosa cinematográfica, que tem as miudezas como elementos de relevo em meio ao carnaval, em meio ao desejo do que importa mesmo, a contemplação do miúdo da vida, do tamanho ínfimo humano; “Hiroshima explodiu num dia comum”, poema impactante, que me fez pensar que a poesia de Nei Schimada não deve ser lida antes de dormir, que não é uma poesia leve, mesmo quando com leveza ou quando de circunstância; “Quando lhe oferecem tulipas com as mãos vazias”, um poema de quatro versos (um quarteto) onde cabe o mundo em síntese e força invisível; “O lugar, tão íntimo é o lugar”, poema que fecha o livro, qualquer deslocamento.
Se Fogão Aceso começa pelo fim, fim de um ciclo, com uma carta despedida, Nei termina seu primeiro livro no lugar, lugar íntimo, no seu lugar de poeta, no pensamento.
Há música o tempo todo, ou quase o tempo todo, no livro de estreia de Nei Schimada. É nítido que se trata de um livro de um poeta. Embora haja textos em prosa, e boa prosa, crônicas curtas e, às vezes, prosa poética, poesia narrativa, como disse, os textos de maior força são os poemas.
Não é uma experimentação no sentido de que o autor esteja experimentando escrever poema, é uma experimentação de linguagem, um modo próprio de escrever poesia, uma voz própria, uma dicção própria de quem sabe que está escrevendo poesia.
Nei não é um poeta bissexto, não é um poeta por acaso. É um poeta de ofício. Faz da poesia seu ofício. Faz da matéria de sua poesia aquilo que vive, aquilo que experimenta, aquilo que observa, aquilo que sente e aquilo que deseja. Ao mesmo tempo que Nei compõe escrita e música, ele cozinha. De sua lavra de palavras, sons, imagens se fundem numa espécie de cardápio de nihon ryori desu, como culinária de uma cozinha japonesa. A meu paladar, confort food, embora, muita vez, perturbador. Mas quem há de negar que a perturbação não é bem-vinda? Ainda mais em se tratando de poesia?
A poesia de Nei Schimada, em Fogão Aceso, toca porque emite, porque se propaga em ondas médias, em ondas curtas. Toca porque afeta, porque encosta, chega perto, entra. E ela não é papagaio desesperado por estar engaiolado com medo do gato no telhado. Ela se edifica, se ergue, move, comove. Toca porque entra. Ler essa poesia, em dias de dois metros de distância e de cumprimentos com os cotovelos e com os pés uns chutados de leve nos outros, é encostar no outro, esbarrar, se misturar, se expandir. É poesia que dá vontade de fazer porco chapeado com missô. De fazer da escarola a chicória com óleo de gergelim e gengibre e shoyu, para comer com arroz sem sal cozido apenas em água. Ela toca porque lavado o arroz por muitas águas, e escorrido por vinte minutos, ele ainda chora.
Créditos na imagem: Crédito da imagem: Imagem: “Mount Fuji seen throught cherry blossom”, por Katsushika Hokusai.
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Eduardo Sinkevisque
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