HH Magazine
Crônicas, contos e ficções

Venha cá, pr’eu te contar

 

Quinta feira. 02 de dezembro de 1869. Ainda lembro muito bem daquele dia.

Mamãe disse que eu deveria ir e obedecer ao senhor. Me deram comida, banho e me vestiram com uma roupa que nunca tinha visto. Fui levado para um prédio onde os homens “decidiam as coisas” e depois assinavam papéis – era assim que eu entendia naquela época. Chegando perto, escutei uma banda de música, vi também que muitas pessoas e crianças iam na mesma direção. Crianças mais novas, mais velhas e do meu tamanho. O sol quente da manhã batia nas roupas novas e cabelos penteados das crianças, e também nos chapéus, paletós e vestidos dos adultos.

Gente era muita. Gente importante. Tinha músico, militar, padre, bispo, e mais gente rica da cidade. Parecia um teatro cheio de gente e iluminado. Os atores desse grande teatro? 33 crianças pretas eram as personagens principais – ou, pelo menos, aparentavam ser. Naquele momento teatral, quem mandava e desmandava eram os “libertadores de gente”. Gente importante. Ainda lembro dos trajes, dos brindes e das palmas para eles.

Naquela época eu não entendia. Fui entender depois, fiquei com raiva. A maior raiva veio quando essa terra onde a gente mora ganhou o apelido de “Terra da Luz” em 1884.

Nos jornais só se falava o nome de gente rica, de bom coração, defensores da liberdade. Assim como naquele dia de minha juventude, o pessoal rico fez tanto teatro, tantas vezes, que vi traficante virando abolicionista.

Alguns libertaram e mandaram gente que eu conhecia para uma Guerra. Outros libertavam com contrato firmado com o governo recebendo indenização. Libertaram em comemoração ao casamento dos filhos e filhas ou pelo aniversário de D. Pedro II.

Se você quiser eu falo os nomes. Albano, Cunha Freire, Ribeiro da Cunha, Seixas Correria, Can, e muitos outros. Ninguém fala disso. Onde é que já se viu? Fizeram fortuna escravizando minha mãe e eu e ainda se passam de heróis. Os jornais só falam bem, inclusive, eram donos dos jornais.

Agora que lhe contei, me escute com atenção!

Se essa terra ficou conhecida como Terra da Luz em 1884, essa terra ainda tem muita sombra para iluminar. É nessas sombras que se escondem aqueles que chamo de “abolicionistas que traficavam”.

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução. Clement Eastwood. Acesso em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/leve-luz-light-natureza-5399403/

 

 

 


[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text] [authorbox authorid=”384″]

Related posts

Neonça – um conto folclórico cyberpunk

Thiago Ronza Bento
3 anos ago

A década de 90 e os seus ruídos

Jeferson do Nascimento Machado
4 anos ago

Sobre o encontro: Marighella e a importância de estarmos juntos

Gésssica Góes Guimarães Gaio
3 anos ago
Sair da versão mobile