O si-mesmo como outro é, conforme o próprio Paul Ricoeur o compreendeu, um esforço de retomada de toda a sua obra. Uma obra síntese, em que se conjuga preocupações hermenêuticas mais tradicionais, como as desenvolvidas em Tempo e narrativa, com algo como uma hermenêutica da condição histórica. Lançada em 1990, ela é resultado das Gifford Lectures de 86 ocorridas na Universidade de Edimburgo. O contato com esse livro oferece, de alguma maneira, uma oportunidade importante para compreendermos uma parte do pensamento ricoeuriano não tão acessada. Como forma de lançarmos uma problemática possível diríamos que estamos diante de um projeto que acredita nas potencialidades da pessoa humana, dotando-a de dignidade através de uma hermenêutica voltada para si mesmo, em que se sobressai a ideia de pessoa capaz. Esse caminho é marcado pelo encontro entre alteridade, o relacionamento com o outro, e solicitude, ação de ser solícito, interessado, atencioso. Veremos como o estudioso de Valence faz dialogar para tal objetivo as éticas de Aristóteles e de Kant.
O filósofo francês aposta na estima de si como caminho possível para se atingir a vida boa, porém fechada nele mesmo esse horizonte não traz às pessoas um sentido de concretude, sendo necessário a homens e mulheres os amigos, que aparece como condição para a estima própria, como vimos no primeiro estudo desta série. O que veremos no estudo que se segue é como Ricoeur articula um modo de se alcançar a felicidade individual pautado na responsabilidade, envolvendo deveres e moral, para com o outro.
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A ética do cuidado de Ricoeur não se limita ao estimar-se, posto que esse direcionamento não traz o sentimento de concretude para as pessoas, sem contar que poderia resultar em alguma forma de individualismo. Mas o viver bem, complementando, também não está reduzido ao outro. Isso porque esse ideal humano, que Ricoeur faz enxergar praticamente por meio de uma antropologia filosófica, necessita daquilo que ele concebe como instituições justas. Estamos já no terceiro momento da sua ética, depois de atravessarmos a estima de si e a solicitude. É o momento que o filósofo se preocupará com a justiça e com a equidade a partir da sua visada ética. O filósofo de Valence volta-se para os costumes comuns de uma comunidade histórica (povo, nação, região), mas não necessariamente com um foco nas instituições stricto senso, aquelas atravessadas por uma normatividade oficial, por regras comuns. O estudioso quer pensar os costumes comuns, aquilo que é o esteio da socialidade, lugar por onde se dá o encontro com o outro, ou seja, as relações interpessoais. Inclusive a questão do ethos, da ética, deriva desse movimento.
Ao pensar os costumes em comum, as instituições, o filósofo se direciona para o que chama de “terceiro incluído”, que é o entorno social, que é o ambiente que envolve as relações sociais, que não é somente o outro, mas os outros, por isso sendo atravessado pela noção de pluralidade. Poderíamos, como forma de clarificar o que está em jogo, chamar de ambiente social. O viver bem, a vida boa, necessita se estabelecer socialmente, e isso só se torna possível através da assimilação da noção de pluralidade. Não é difícil compreendermos, porque os seres humanos vivem juntos, e o que atravessa essas relações interpessoais são os costumes em comum, ou seja, as instituições. Esse encontro com a pluralidade se desenvolve a partir do eixo da duração, quer dizer, a busca do estabelecimento de disposições virtuosas que possam amparar o viver bem em comunidade – a tentativa de indicar algo que agregue e, portanto, que dure. O viver bem, que já passou pela estima de si e pelo movimento de solicitude, também demanda a elaboração de boas práticas comunitárias ao ponto de poder durar e de poder servir para a pluralidade que por ela se desloca. Então, a instituição acaba sendo algo que extrapola a instância de distribuição de papeis, sendo “bem mais que os indivíduos que desempenham tais papeis e também diferentes deles” (RICOEUR, 2014, p. 223).
É introduzida, então, a noção de distribuição, sendo a instituição atravessada por essa regra que só se efetivaria a partir do momento que houvesse a participação das pessoas. É um tomar parte, que leva em conta análise virtuais, probabilísticas, não apenas sobre si, sobre o seu viver em comunidade, mas sobre os outros. Em suma, as ações em comunidade devem ser pensadas porque impactam a vida de outrem. Ricoeur quer, nesse momento da sua pequena ética, pensar as relações entre disposições individuais, interpessoais e sociais, sendo que nesse trânsito se encontra a vida em estado de realização, a vida boa. Podemos retomar, de algum modo, o caminho de Ricoeur, que responde ao seu viver bem com a para os outros em instituições justas: 1) a estima de si seria derivada da vida boa, uma espécie de reflexo; 2) a solicitude é a estima de si em modo dialogal, que decorre da carência humana por outrem, por amigos; 3) as instituições justas funcionam como eixo mediador das relações abertas pela solicitude, sendo o seu conteúdo ético atravessado pela noção do “cada um” e pela phrónesis grega, a prudência, no sentido dos papeis sociais em que a pluralidade das comunidades são atravessadas pela equidade.
A vida em comunidade, a partir dessa disposição tripartite, é mediada pelo cuidado com o mundo, pela responsabilidade. Noção importante no pensamento ricoeuriano. A responsabilidade se apresentaria, nesse sentido, como o grande princípio ético estabelecido pelo filósofo de Valence, sendo que conjuga prudência no agir e, também, no contato com outrem, além de movimentar-se como esforço de promover práticas duradouras no sentido de manter saudável a existência das comunidades, do nível mais elementar ao mais geral. O pensamento em questão, em que se flexiona as apostas de Aristóteles, é essencialmente teleológico, ou seja, visa um fim, que no caso seria a vida boa como sinônimo de felicidade. A filosofia de Ricoeur caminha, então, no sentido da busca da felicidade de si, do outro e de todos. Em resumo: uma filosofia do bem viver.
De qualquer maneira, Paul Ricoeur fará Aristóteles se encontrar com Kant, que é o momento em que ele submete àquela visada ética, como proposta pelo estagirita, à norma. A ética, como pensa o autor, passa pelo escrutínio da moral. A diferença entre os filósofos aludidos, no plano das normatizações sociais, é que para Kant a moral aciona a perspectiva do dever. O filósofo agrega ao dever a ambição da universalização, do respeito, da autonomia e, também, da humanidade. Ricoeur dialogará com essa tradição em busca de uma complementariedade ao estabelecido por Aristóteles. Podemos fazer, pois, Ricoeur nos explicar os caminhos pelos quais o seu pensamento está tomando:
O respeito a si, que, no plano moral, corresponde à estima a si do plano ético, só atingirá sua plena significação ao cabo da terceira etapa, quando respeito à norma se tiver desenvolvido como respeito a outrem e a “si mesmo como outro”, e este estiver estendido a quem quer que tenha o direito de esperar sua justa parte numa partilha equitativa. O respeito a si é a estima a si sob o regime da lei moral (RICOUER, 2014, p. 228).
De uma maneira bastante esquemática: o viver bem apresenta-se como um dever, enquanto que a solicitude um imperativo, sendo o respeito um modo de prevalecimento da justiça. A vida boa, quando atravessada pelo crivo kantiano, transforma-se em boa vontade. Então, a obrigação moral estaria intrinsecamente relacionada com o bem viver. O filósofo de Valence, acompanhando o curso do seu raciocínio, faz uma ligação entre a boa vontade com a estima de si, na medida em que ambos os gestos imprimem decisões baseadas em razões, na possibilidade de estabelecer um começo no curso das coisas. Não seria outra coisa do que a razão prática kantiana, o gesto de movimentação da vontade, do seu uso direcionado, da própria ação em si. O que Ricoeur está interessado em Kant, e por isso o seu retorno à deontologia, é como ocorre as relações entre ações e normas, sendo a verdadeira vontade aquela que coaduna o cumprimento ativo com a consciência das leis que o sujeito se lhe impõe, derivando, daí, o dever. Homens e mulheres de boa vontade agem, pois, de acordo e com amor ao dever que formularam para si mesmos.
É simples a escolha, e nos faz entender o caminho tríptico da pequena ética de ricoeuriana: o cumprimento do dever é, em todo caso, algo bom e urgente para si, para o outro e para a existência das instituições. Interessante dizer que todo esse processo é realizado de maneira racional, flexionando algo importante na filosofia de Kant: a autonomia. Vemos, então, Paul Ricoeur (2014, 2333) se valer patentemente do pensamento do filósofo alemão: “como poderia eu saber se, durante a ação a estima a uma coisa é adequada à estima absoluta à vontade boa, a não ser formulando a seguinte pergunta: a máxima de minha ação é universalizável?”. Percebemos o filósofo fazendo um elogio da autonomia. A equação é a seguinte: não se trata de uma obediência a uma exterioridade, mas a si mesmo, o que implica a perda de qualquer laivo de submissão. O que torna a autonomia a verdadeira obediência, acionando o circuito da pequena ética: estima de se ó solicitude ó instituições justas = bem viver com responsabilidade.
REFERÊNCIAS:
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
Créditos na imagem: Reprodução: Mind Journal. Caption This. Megan Margery.
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Piero Detoni
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