As disputas que acontecem na sociedade, entre esquerda e direita, por mais tensas que sejam, e por mais que se desdobrem de formas inesperadas, podem ser vistas como elementos superficiais, já que mantém por debaixo do pano um certo acordo implícito, o que podemos chamar de conservadorismo ontológico. Esse tipo de conservadorismo sugerido por mim não é aquele epistemológico, o das redes sociais e da tv, ou seja, aquele reflexo de interpretações de mundo, conceitos, ideias, palavras e crenças. A versão ontológica, por outro lado, diz respeito a um tipo de pacto elementar, constituinte, além de ser pré-reflexivo. Isso significa basicamente que todos, não importa quem seja, acabam fazendo parte desse tipo de acordo cotidiano, mesmo que não percebam, mesmo que não queiram. Podemos chamar esse pacto também de conservadorismo fenomenológico, envolvendo um contato bem espontâneo e irreflexivo com o mundo ao redor. Não acredita em mim? Ok… então vamos aos exemplos:

  • Pessoas debatem o tempo todo sobre quantos tipos de banheiros uma escola deve ter. Alguns dizem apenas dois, reflexo de um dualismo de gênero conservador, enquanto outros apostam em três ou mais, numa tentativa de acolher outras formas de corporeidade. Apesar dessa polêmica, todos concordam a respeito da existência de um local destinado às fezes e urina. Isso significa que caso eu seja convidado até sua casa, e “mije” no meio da sua sala, sobre seu precioso sofá, não importa se você é pró-bolsonaro ou pró-lula. Suas reações serão as mesmas!!!
  • Muitos debatem sobre que tipo de roupa as pessoas devem usar. Alguns dizem que existe um guarda-roupa específico, dependendo do seu gênero. Se você é homem, precisa usar calça. Se for mulher, saia. Já outros, por outro lado, entendem que existe uma variedade de possibilidades e que cada um deve escolher o próprio caminho, traçando performativamente as próprias escolhas. Apesar dessa polêmica, todos concordam que é necessário o uso de roupas. Isso significa que se eu for novamente convidado até sua casa, e tirar todas as minhas roupas no meio da sua sala, não importa sua orientação política, já que a reação será sempre a mesma
  • É comum também o debate sobre o uso da linguagem e aquilo que deveria ser aceito ou excluído. Algumas pessoas defendem um tipo de purismo linguístico, envolvendo o uso tradicional da língua. Já outras apostam na pluralidade de formas de comunicação. Novamente, apesar das diferenças, todos concordam que existe uma estrutura sintática e semiótica que deve ser respeitada. Por exemplo, se você pergunta a mim “como foi seu dia?” e eu respondo: “macaco pelado caiu de cara no chão”, o estranhamento vai ser imediato, seja você de esquerda ou de direita. Diante da língua portuguesa, existe um tipo de acordo implícito sobre o modo correto de falar, um modo que ninguém ousa desobedecer, caso contrário será visto como estranho, no mínimo, ou louco, na pior das hipóteses. Em outras palavras, eu preciso sempre obedecer a sintaxe (sujeito-verbo-objeto) e a semântica (significado) das palavras. Eu posso tentar, claro, substituir o significado tradicional de palavras como “casa”, “copo”, “água”. “Casa” pode significar agora uma pessoa triste, “copo” pode ser um campo de futebol e assim por adiante. Eu posso tentar produzir, sem dúvida, meu próprio vocabulário, com significados específicos e que refletem minha própria subjetividade. Apesar de interessante o experimento, lembrando muito as ousadias de Garfinkel e seus estudantes, ninguém em sã consciência ousa fazer isso.
  • Existe uma polêmica muito forte sobre tipos de sentimentos e sensações. Alguns apostam na ideia de que corpos são livres, performáticos, e que por isso o respeito é a melhor estratégia. Já outros, ao contrário, acreditam em um modo especifico de se viver, fazendo da intolerância uma arma perigosa. Apesar de tão diferentes entre si, ambos concordam na existência de um tipo implícito de gramática do sofrimento. Exemplo: imagine que eu esteja em um enterro, acompanhando o funeral de uma pessoa muito próxima a mim. De repente, eu começo a rir, rolando no chão com uma gargalhada estrondosa. Não importa se você é pró-bolsonaro ou pró-lula, já que todos concordam que a minha atitude foi estranha e desrespeitosa. Mas por que? Isso é simples… porque existe uma gramática do sofrimento que precisa ser obedecida. Ainda que meu riso tenha sido um sinal legitimo de um sofrimento bem pessoal, eu não sou autorizado a criar minha própria gramática, mas obedecer ao que é dado a mim. Ou seja, Sofrimento=choro. Não adianta tentar criar outras combinações afetivas (Sofrimento=jogar futebol. Sofrimento=chutar cachorro na rua. Sofrimento=masturbação no meio do shopping, etc). Existe uma expectativa sobre todos os corpos (e não apenas aqueles das minorias), uma expectativa que torna a vida cotidiana previsível, sólida e confiável.

Nesse cenário de conservadorismo ontológico, quem seria o sujeito revolucionário? Existe alguém capaz de ultrapassar esses limites de conveniência? Felizmente, a resposta é sim. Segundo Nietzsche, e sua genealogia poderosa, dois tipos de pessoas são capazes de revolucionar o conservadorismo ontológico. A primeira é o ARTISTA, que com sua rebeldia consegue implantar novos e estranhos tipos de gramática. Beckett, por exemplo, escreveu uma peça chamada “Esperando Godot” em 1949, com uma estreia tumultuada feita em 1952. Na peça, a linguagem dos personagens (Estragon e Vladimir) beira o absurdo, a pura incoerência, mas que se torna genial na atmosfera da obra, principalmente por conta do próprio significado da “espera pelo tal de Godot”. Ou seja, uma linguagem que seria vista como “estranha” por bolsonaristas e lulistas, ou por qualquer indivíduo “normal”, passa a ser ressignificada pelos contornos da arte. Ao artista é permitido, de fato, revolucionar. Não estamos falando aqui de uma simples rebeldia superficial, mas de uma mudança nos próprios alicerces da realidade.

O segundo grupo de revolucionários, de acordo com Nietzsche, não passeia pelas galerias de arte, ou pelas salas de teatro e cinema, mas circulam por sessões de terapia e consultórios psiquiátricos. A loucura é a outra face revolucionária, embora trazendo muito mais custos ao corpo daquele que “escolhe” esse caminho. O louco é o artista no limite, é alguém capaz de criar a própria gramática, a própria linguagem, chegando ao ponto da extrema criatividade. Segundo Nietzsche, o louco sofre não porque é louco, mas porque é criativo demais, porque inventou suas próprias ferramentas simbólicas, além de sua própria corporeidade. Esse gesto, no mundo em que vivemos, seja ele de esquerda ou de direita, seja ele no governo Bolsonaro ou Lula, é um gesto completamente intolerável.

Quando lidamos com o conservadorismo ontológico, percebemos que o revolucionário não passeia mais por grupos de resistência, centros acadêmicos, sindicatos, mas por museus, exibições, assim como por centros de tratamento psicológico e psiquiátrico. O revolucionário é aquele que compromete o alicerce mais sólido que sustenta os bastidores do próprio mundo, comprometendo aquilo que Giddens chamou de segurança ontológica. Com exceção de artistas e loucos, todos acabam se dando as mãos em um pacto implícito, hipócrita e conservador sobre as regras de funcionamento da realidade.

 

 

 


Créditos na imagem: James Gillray – A Peep into the Cave of Jacobinism, or Magna est Veritas et praevalebit (1798)

 

 

 


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