5 motivos que provam que Bolsonaro é um pós-estruturalista

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O pós-estruturalismo, e sua hermenêutica da suspeita embutida, produziu desde a década de 60 um conjunto de valores e virtudes que definem o espaço do jogo acadêmico. Ser crítico nada mais é do que um gesto de combate direcionado ao tão famoso e temido logocentrismo, ou seja, a destruição de tudo aquilo de universal, essencial e objetivo. O compromisso crítico, todo ele amparado naquilo que Isabelle Stengers chamaria de ressentimento epistemológico, era basicamente mostrar que por trás de toda coisa sólida, coerente e estável existiam apenas dimensões frágeis, desprezíveis e nada confiáveis. Com a chegada recente de uma onda reacionária que atravessou vários países, como o próprio Brasil, essa postura de extrema desconfiança começou a ser vista também na caverna do reacionarismo. Nesse momento, nesse verdadeiro choque, nosso sinal de alerta disparou, explodiu, gerando até mesmo uma crise existencial profunda.

Antes de mergulhar de cabeça no campo dos argumentos, e todas suas implicações epistêmicas, é preciso deixar claro que não me refiro nessas páginas a autores complexos como Foucault, Lyotard, Bauman e tantos outros, mas apenas à instrumentalização que essa linha pós-estrutural sofreu ao longo de sua trajetória. Como diria Djamila Ribeiro, o problema maior se encontra quando os conceitos e teorias são instrumentalizados ao extremo, perdendo a complexidade e a abrangência, além de trazer riscos perigosos dentro do próprio campo político.

A meta desse ensaio não é apenas comparar a postura dos reacionários e de certos desdobramentos pós-estruturais, mas sugerir também novos caminhos, novas alternativas, ao mesmo tempo que uma outra definição de “criticidade”. Isso significa que antes de sair por aí apontando os dedos para um outro problemático, é preciso realizar um tipo de autoanálise, envolvendo uma atitude de(pós)-colonial, já que a nossa própria linguagem demanda um cuidado urgente. Sem essa autorevisão, sem uma autoanálise, a nossa defesa da ciência e dos fatos soa como hipócrita, estranha e contraditória. Se queremos realmente defender a ciência, e não apenas contrapor as bizarrices do bolsonarista, numa busca alucinada por uma simples oposição, é preciso, de fato, compreender o nosso vínculo com o campo científico e o nosso passado traumático com esse mesmo universo. É preciso, sem dúvida, apontar para novos caminhos, mas antes é necessário deixar claro as falhas e o exagero da nossa tão aplaudida e amada hermenêutica da suspeita. Na tentativa de tornar mais claro os argumentos desse ensaio, várias falas do presidente Bolsonaro foram escolhidas, todas elas entre 2020-2021, separadas por cinco grandes temáticas que aproxima o bolsonarismo de certas visões pós-estruturais.

1) A ciência como ideologia. O espaço científico é apresentado como um simples campo de interesses, discursos e opiniões. Não apenas a objetividade não existe enquanto um espaço autônomo, como também é um mero pretexto ideológico produzido por grupos específicos. A ciência, nesse sentido, esconde várias sombras nos seus bastidores, inclusive quando oferece um método confiável, sólido e universal. A própria noção de verdade é apresentada como uma simples ferramenta, um resultado de jogos de linguagem, de conflitos de campo, discursos ou outras instâncias de pura contingência.

Bolsonaro (31-12-2020): “Falam tanto em máscara… Não encheu o saco ainda, não? Isso é uma ficção”.

Bolsonaro (27-03-2020): “Não estou acreditando nesses números [de mortes divulgadas pela Secretaria de Saúde de São Paulo]”

Bolsonaro (05-06-2020): “Ou a OMS trabalha sem o viés ideológico ou nós vamos estar fora também”

Bolsonaro (10-07-2020): “Tivemos lá um médico [Mandetta como ministro], um primeiro médico lá, olha a desgraça que foi”.

 

2) A mídia e seus fatos não existem. O terreno factual, da mesma maneira que a mídia mais popular, jamais pode ser confiada. Ela sempre distorce os fatos, manipulando a mente do povo com seus interesses grotescos e ocultos. Esses fatos, portanto, nada mais são do que reflexo de interesses pontuais de grupos e corporações. O que existe são apenas discursos, conflitos, ideologias e visões de mundo. Os fatos são construídos, nada mais do que produtos de manobras ideológicas, demandando sempre suspeita, não importa o que aconteça.

Bolsonaro (16-03-2021): “Grande parte da mídia… batendo o tempo todo, é uma luta de poder”

Bolsonaro (22-03-2020): “É uma crise fabricada pela imprensa”

Bolsonaro (23-03-2020): “Brevemente o povo saberá que foi enganado… por grande parte da mídia na questão do coronavírus”

 

3) A estrutura conspiratória. Existe sempre uma conspiração de fundo, afinal nada é por acaso. Existem grupos, indivíduos e outras instâncias manipulando cada centímetro de nossa existência. Até mesmo o ar que respiramos é manipulado, assim como a ciência que passeia pelos corredores, ruas e conversas. Tudo isso é apenas um pretexto de controle, um gesto que nos aliena, nos ilude. Existem sempre “coisas por trás”, “nos bastidores”, “no subsolo”, “nas entranhas”.

Bolsonaro (15-03-2021): “Tivemos vírus muito mais graves que não provocaram essa histeria. Certamente tem um interesse econômico nisso”

Bolsonaro (16-06-2020): “Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas.

Bolsonaro (12-11-2020): “Sobre a vacina, parece que tem coisa esquisita aparecendo, mas não vou falar, para evitar polêmica”

Bolsonaro (26-11-2020): “Há uma preocupação de que ‘interesses outros’ possam estar envolvidos nessa questão da vacina”.

 

4) Tudo é político!!!. Essa frase que fez parte da minha graduação, e provavelmente da sua também, hoje é uma bandeira dos reacionários, na medida em que eles enxergam a ciência, a arte e a própria religião como apenas extensões de jogos e interesses políticos. Tudo é reduzido a uma única esfera de relações, o que nega a autonomia de qualquer outra realidade. Tudo, e exatamente tudo, esconde manobras políticas, principalmente quando envolve o terreno fantasioso dos fatos e da ciência.

Bolsonaro (16-03-2021): “O que está em jogo? É uma disputa política por parte desses caras, eu estou sozinho em um canto, apanhando de todo mundo”.

Bolsonaro (09-08- 2020): “O tempo e a ciência nos mostrarão que o uso político da COVID…”

 

 

5) O anti-intelectualismo. Teorias, conceitos, produções acadêmicas, testes, etc, são vistos como elementos inferiores, menores, muitas vezes até ideológicos, ao menos se comparado com a experiência e o corpo. O campo experiencial se torna um critério epistêmico. Como cada um tem sua própria trajetória, não existe aqui nenhuma instância mais autorizada que reivindique um saber mais consistente. A ciência, portanto, se torna apenas mais um elemento corporal, como qualquer outro, sem nenhum tipo de vantagem ou destaque. Ela acaba sendo nada mais do que um pacote de experiências como tantas que existem por aí.

Bolsonaro (13-08-2020): “Eu sou a prova viva de que deu certo” (se referindo a cloroquina)

 

Apesar dessa linha pós-estrutural exagerada que ainda atravessa muitos dos nossos textos, aulas e encontros, é preciso lembrar que o universo acadêmico das humanidades e da própria filosofia é enorme, envolvendo várias abordagens, muitas delas críticas a esse “pós-estruturalismo conservador”. O compromisso do teórico social contemporâneo, portanto, não pode ser apenas a destruição de verdades, fatos e valores, como foi durante muito tempo, e que o próprio Bruno Latour chamou de postura iconoclasta, mas é preciso ir muito além, propondo agora melhores alternativas, novos caminhos e novos critérios. Destruir não é mais a meta, mas apenas o ponto de partida para uma nova, complexa e incrível jornada no campo das humanidades.

Autores e autoras como Bruno Latour, Manuel DeLanda, Donna Haraway, Jane Bennett, Karen Barad e muitos outros tentam retirar as ciências humanas e sociais do buraco pós-estruturalista que entraram, retomando um compromisso com a ciência, os fatos, a objetividade, embora sem cair nas suas armadilhas. Esses pensadores e pensadoras, antes mesmo de criticar a postura absurda de reacionários (e não tem como negar o quão é absurda), primeiro olham para si mesmos, reavaliando suas próprias linguagens, em um exercício humilde e decisivo. Esse ensaio é um testemunho de que as ciências humanas, sociais e a própria filosofia vivem hoje em um novo momento, muito mais criativo, interessante, embora mais custoso, afinal sempre foi mais fácil destruir, sempre foi mais fácil apontar falhas, defeitos, até porque tudo tem marcas de contingência pelo caminho. Contudo, o desafio nesse século XXI é ir além, é produzir novas opções, propor novos critérios, caso contrário o reacionarismo vai ser apenas o começo de tantos outros problemas que ainda podem brotar na superfície do mundo.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Maurício Pimentel/AFP. Disponível em: https://talisandrade.blogs.sapo.pt/o-riso-do-mito-2231652

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Thiago de Araujo Pinho

Thiago Pinho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi pesquisador convidado na Sci-Arc (Los Angeles, EUA), em 2020. Atualmente é professor substituto da própria UFBA-IHAC e tutor na SPIRES (British Tutoring). Também escreveu dois livros sobre Teoria Social: “Descentrando a Linguagem” (Zarte, 2018) e “Sintomas” (Paco, 2019).

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