Após morrerem, Garcin, Inês e Stelle são condenados a viver entre quatro paredes, eternamente iluminados e sem conseguirem dormir. Salão pequeno, sem janelas e espelhos, o inferno é um cômodo no qual os conflitos emergem, gradualmente, desvelando o pior de cada um. Encenada em 1947, a peça Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre, descreve a tormenta angustiante de estar eternamente preso ao olhar do outro. Como diz Inês, “cada um de nós é o carrasco dos outros dois” (Sartre, 2005, p.63). No momento central da peça, após compreenderem a insolubilidade do julgamento infernal, Garcin entende que o pior castigo não está na tortura física, no fogo ou no enxofre, mas sim no outros: “o inferno são os Outros” (Sartre, 2005, p. 125).
O atual cenário brasileiro carrega um pouco dessa dimensão sartreana do inferno. Estimulados pela dinâmica política, determinados grupos estão presos dentro de uma moldura retórica do nós contra os outros. A linguagem política polarizada escancara de modo límpido o que até então se mostrava como neblina sob o signo do bolsonarismo: o autoritarismo. Fenômeno autoritário que estabelece seus alicerces, primordialmente, em uma retórica da alteridade composta por dois esquemas interdependentes: a inversão e o amigo-inimigo.
A tradução da diferença por meio da inversão e do par amigo-inimigo tem na ira um de seus maiores combustíveis. Sobre a relevância do discurso irascível, já no século IV a.C., Aristóteles chamava a atenção para o domínio das paixões para se convencer: “persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio” (Aristóteles, 1998, p. 49). Não por acaso, a ira é a primeira paixão analisada pelo filósofo de Estagira em seu tratado sobre a retórica.
Não é difícil verificar como essa paixão mobilizou e ainda mobiliza o discurso bolsonarista, que tem como seu principal exemplo o próprio Jair Bolsonaro. Em fevereiro de 2017, o então deputado federal pelo PSC, Bolsonaro discursava diante dos seus apoiadores na Paraíba: “Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”. Já como um forte candidato à presidência, uma semana antes da eleição de 28 de outubro, o então candidato pelo PSL bravejava: “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. Após empossado, e depois de um discurso no Congresso, o presidente fez um pronunciamento ao povo, que se encerrou da seguinte maneira: “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela.”
A mobilização do ódio contra um inimigo construído é fundamental para compreendermos o pilar de sustentação da retórica bolsonarista. A retórica da inversão alimenta o contraste, transformando o inimigo imaginado em uma imagem vívida diante dos seus apoiadores, diante do nós. Portanto, de um lado estaria a “maioria”, o nós, que é verde-amarela, moral, cristã, de direita, composta por homens de bem; do outro lado, estaria a “minoria” vermelha, imoral, ateia, corrupta, comunista, esquerdista, composta por homens de mal, pelo movimento negro, pelos povos indígenas etc. Fazer ver com palavras é fundamental nesse processo. Depois de minimamente apreendida as formas que engendram os inimigos, os outros, torna-se mais fácil fazer as próprias seleções e reproduzir os próprios esquemas a partir da observação do cotidiano de cada experiência individual. Tais esquemas semânticos ajudam a ordenar os fatos nesse contexto caótico de desinformação, produzindo noções excêntricas, porém funcionais, tais como a do vírus chinês, ou mesmo ser a pandemia um plano da esquerda globalista para destruir a família e moral judaico-cristã.
O esquema da inversão fornece as ferramentais retóricas para sínteses desesperadas. A operação comunicativa elaborada por meio dessa inversão busca simplificar a realidade. Todavia, falar em simplificação não significa dizer que a comunicação seja menos efetiva, apenas menos complexa. Em termos concretos, o efeito comunicativo dessa retórica parece ser mais eficiente em determinados grupos, amplificando seu poder reprodução e atualização, justamente pela simplicidade de seus esquemas.
No entanto, chega-se a um momento em que a retórica, ao se descolocar demais da realidade que busca traduzir ao público, rompe-se. Ainda não estamos lá. A “maioria”, termo empregado recorrentemente pelo presidente e seus correligionários, ocupa hoje cerca de 30% dos brasileiros. Talvez estejamos chegando em um momento no qual essa vontade do “povo brasileiro” começa a ser identificada exclusivamente como a vontade daqueles 30%. Já era, no mínimo, estrategicamente arriscado associar os 55,13 % (57 797 846 pessoas) dos votos válidos no segundo turno com a “maioria” da população brasileira – o povo –, sendo que o número de abstenções chegou a 21,30 % (31 371 704 pessoas) e o candidato da oposição obteve substantivos 44,86% (47 040 906 pessoas).
As contradições do próprio governo, diga-se de passagem, um exímio produtor de crises desde o início, foram catalisadas pelo contexto pandêmico brasileiro, o novo epicentro mundial da disseminação do vírus. A tentativa de alterar os padrões de divulgação dos dados relativos a covid-19 por parte do Ministério da Saúde é um sintoma forte desse esforço de se evitar o confronto com a realidade. Quanto mais alto atingem os números de mortes e de contaminados pelo vírus, menos eficiente a moldura retórica desses esquemas se mostra. Cada nome de peso que pula fora do barco furado do governo, todavia, imediatamente passa do nós para o lado dos outros, vermelhos, corruptos, esquerdistas, comunistas etc. O Datafolha de 28 de maio apontou uma taxa de reprovação recorde do presidente em 43%. A capacidade comunicativa daquela “maioria” de 30%, que ainda se vê como maioria geral, como o povo, limita-se, a cada dia, aos seus próprios integrantes. O alcance da mobilização da ira como combustível para a militância bolsonarista parece ter encontrado sua fronteira na casa dos 30%, um número ainda assustadoramente expressivo.
Os outros, como inimigos, são alvos a serem combatidos, o mau a ser extirpado. A fragilidade desse esquema retórico é, a cada novo dia, confrontado com a realidade. Exemplo emblemático desse confronto foram os dias 27 e 28 de maio. Em 27 de maio, a Polícia Federal deflagrou uma operação que cumpriu mandados de busca e apreensão nos Palácios da Guanabara e das Laranjeiras, nas residências da mulher do governador e de servidores da Saúde, apreendendo inclusive o celular do então governador do Rio de janeiro, Wilson Witzel. No mesmo dia, no cercadinho do Palácio do Planalto, o presidente deu os parabéns ao trabalho da PF. No dia seguinte, 28, a mesma PF cumpriu outro mandado de busca e apreensão, agora mirando os empresários e blogueiros apoiadores do governo, no inquérito controverso das fake News. Em resposta, o presidente indignou-se no seu cercado, criticou as decisões monocráticas, fez menção a independência dos poderes e finalizou com o forte de sua eloquência: “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá pra admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações”.
Além de indecorosa para o cargo que ocupa, a insustentabilidade da retórica do presidente vai, paulatinamente, produzindo dissidentes. Obviamente, muitos deles tem vergonha de admitir isso. Talvez nunca o façam. No entanto, aqueles que ainda permanecem fiéis ao nós, cada vez mais se nutrem de um ódio gerado pelo confronto de seus esquemas retóricos com a realidade ultrajante. Paradoxalmente, quanto mais confrontados com ela, mais ira é disseminada, enrijecendo os próprios esquemas retóricos. Não nos esqueçamos que o inquérito das fake News investiga a existência de um suposto “gabinete do ódio”, justamente, dentro do Palácio do Planalto. Cabe lembrar também um outro aspecto que o próprio Aristóteles já chamava a atenção ao tratar da ira: “toda ira é acompanhada de certo prazer, resultante da esperança que se tem de uma futura vingança”. Vingança contra o outro, traduzida na figura do esquerdista, comunista, socialista etc., o inimigo a ser atacado, mesmo que no mundo real, poucos se enquadrem nesses alvos artificialmente elaborados.
Não há muitas dúvidas. Bolsonaro está sendo, simplesmente, Bolsonaro. Quem imaginou nele um outsider político, líder incorruptível, preocupado com a Nação, reformador e conciliatório, ou nunca acompanhou a política brasileira, ou foi tristemente enganado no meio do caminho, ou apoiava dissimuladamente. Em quase 30 anos de congresso nacional, a trajetória de Bolsonaro foi marcada por incitar o que há de pior na política, sempre mobilizado pela ira. Político irrelevante, fez muito pouco e, como de costume, produziu mais confronto por meio de bravatas e de violências verbais. Bolsonaro está sendo Bolsonaro, só que agora com poder que jamais teve.
Incompetente, arrogante e autoritário, a cada nova crise esses atributos são amplificados. Com isso, reforça-se juntamente os esquemas da inversão e do amigo-inimigo, pois sempre serão os outros, nunca nós, os responsáveis pelos problemas do governo. Serão sempre os outros que não deixarão o presidente governar. O problema é que a cada novo dia, novos outros surgem. O governo esbarra nos outros em todos os lugares, no STF, na Polícia Federal, nos Governos Estaduais e Municipais, na imprensa tradicional e alternativa, na imprensa internacional, na esquerda e na direita. Não há paz no horizonte da retórica bolsonarista, apenas o desespero de serem confrontados com a realidade. E se tomarmos como ainda validos as reflexões de Sun Tzu, um famoso estrategista militar que escreveu no século sexto a.C., “soldados em posicionamentos desesperadores perdem o senso do perigo. Mesmo sem local de refúgio, eles se manterão firmes. Mesmo no coração de um pais hostil, […] se mostrarão em uma frente unida e obstinada.” (SUN TZU, 2001, L. 17.6). A linguagem bélica cabe bem ao bolsonarismo, uma vez que esses 30% se imaginam como protagonistas de uma guerra em curso contra o comunismo, contra as instituições, contra o mal, contra os outros. Isso é dramático e deve ser levado em consideração. Estímulos à ruptura democrática vêm sendo lançados a todo momento. Análoga à atmosfera da peça Sartreana, nesse universo distópico atual chamado Brasil, não há escapatória para o governo e seus apoiadores, pois a cada movimento eles se deparam com o inferno, pois, exatamente, o inferno são os outros, e eles são setenta por cento.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Retórica. Introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988.
SARTRE, Jean-Paul. Ente quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. Eio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SUN TZU. A arte da Guerra. Tradução de Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Nova Fronteiro, 2011.
Créditos na imagem: “Death leading hell`s army”, English School, cerca 1800.
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Mamede Queiroz Dias
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