“Foge todo mundo que a barragem rompeu”.[Paula]foi uma das vozes que salvou muitos dos moradores, que foram pegos de surpresa por 40 milhões de metros cúbicos de lama que avançaram sobre o vilarejo, comunidades vizinhas e também pelo Rio Doce.[…]Nove meses depois de perder tudo, entretanto, [Sandra] conseguiu desenterrar duas panelas que tinha guardado debaixo de uma escada.”
(Heloísa Mendonça para El País)
Texto dedicado ao “Grupo do Bento”
Ewa Domanska em artigo recente apresentou sua perspectiva a respeito das “Humanidades afirmativas”. A historiadora e antropóloga polonesa destacou a necessidade de certo afastamento das Humanidades da ênfase nas experiências que reafirmam catástrofes, traumas, sofrimentos, risco de extinção, silenciamento e exclusão que se tornaram o foco das teorias mais fundamentais da pós-modernidade. Não se trata de ignorar os diagnósticos do pensamento contemporâneo que apontam para a retomada conservadora e violenta no âmbito social e político pautada por genocídio, terrorismo, migração, capitalismo global, crise da democracia, biopolítica, pobreza, engenharia genética e destruição ambiental. É partindo exatamente destas análises que a historiadora pergunta: que tipo de Humanidades precisamos hoje? Aquelas que reafirmam um horizonte global distópico?
Lançando mão de uma leitura de Rosi Braidotti, Domanska observou que as “Humanidades afirmativas” se referem a um projeto de imaginação de futuros apesar dos tempos. Trata-se de um exercício intelectual que procura valorizar abordagens e conceitos que fortaleçam sujeitos e suas comunidades, oferecendo um contraponto à “negatividade pós-moderna”: a ênfase incessante nos gestos distópicos que retiram dos entes possibilidades de reação diante de um horizonte fechado. Não está em questão ignorar estes processos. O que está em jogo é a investigação sobre as formas opressivas do poder a partir de novas perguntas, ontologias e epistemologias. Domanska gostaria que as Humanidades auxiliassem na oferta de “uma política progressista de apoio” ao invés de uma “política reacionária de medo”. Essa proposta pressupõe que os sujeitos não sejam infantilizados e destituídos de sua agência e responsabilidade frente aos sistemas de poder.
Os interesses de Domanska relacionam-se a reconfigurações e demandas próprias às Humanidades hoje. O uso dos prefixos bio, geo, eco, necro, neuro, tecno e zoo conectam-se à emergência de um paradigma que desloca o antropocentrismo e propõe uma abertura que repensa a relação com animais, plantas e coisas. Trata-se das variantes do chamado “pós-humanismo” que tem trazido para o centro do debate vertentes que questionam o modo de estar no mundo do homem tomando a si mesmo como medida em relação a tudo o mais que existe. Essas preocupações também abordam os limites impostos por um campo que por muito tempo se pensou a partir da Europa. Trata-se da reinvindicação por tipos de conhecimento que se afastam dos protocolos eruditos e científicos como formas privilegiadas de produção de visões de mundo e busca a proximidade com ontologias que escapam à delimitação ocidental, especialmente, a europeia.
Ela traz como exemplos, o modo de vida africano Ubuntu e o “Buen viver” (na língua quéchua, sumak kawsay) cultivada por povos andinos, especialmente na Bolívia e no Equador. Essas formas de existência oferecem, para a historiadora polonesa, paradigmas políticos e sociais baseados em relações distintas da ocidental no que diz respeito à morte, à natureza, à responsabilidade social… e contribuíram e contribuem de forma precisa para alteração da realidade – o Ubuntu na luta contra o Apartheid na África do Sul e o“Buen viver” na Constituição equatoriana de 2008. Ewa Domanska retomou como exemplo essas ontologias para a defesa daquilo que considera por “utopias realistas” que fugiriam da ingenuidade e autoritarismo das utopias imaginárias e não-espaciais modernas. As utopias realistas se voltam para experiências com foco locais e regionais que auxiliam na construção de modos alternativos de convivência sem negar os conflitos.
O objetivo de retomar de forma bastante simplificada as ideias gerais que constituem a proposta das “Humanidades afirmativas” de Domanska é basicamente trazer para este espaço uma reflexão sobre qual Humanidades precisamos hoje. Algumas críticas às perspectivas defendidas por ela poderiam ser aqui abordadas, mas não integram neste texto o objetivo fundamental. Ao contrário, ela acaba por sugerir uma agenda bastante corajosa ao incentivar que as Humanidades precisam e podem inspirar novas relações (a despeito) e junto a uma determinada realidade, na qual os horizontes estão fechados. Nestes termos, a proposta de Domanska ofereceu um desafio em particular para pensar e enfrentar minha realidade “distópica local”. E é com ela que eu gostaria de terminar este ensaio.
Tendo nascido e morado praticamente toda a minha vida em Mariana, a queda da barragem de Fundão da Samarco(Vale/BHP), responsável pelo maior “desastre” sócio-ambiental do país teve um impacto decisório sobre minha forma de viver. Os relatos daqueles que sobreviveram ao tsunami de rejeito de minério que percorreu 826km, matando o Rio Doce e destruindo os modos de subsistência de suas comunidades trouxe consigo o pesadelo da realidade de que os poderes neoliberais estão literalmente em nosso quintal e são fatais. A lama trouxe uma realidade da catástrofe como regra, e não como exceção. A lama trouxe a realidade da lentidão da justiça e das demais instituições. A lama trouxe com mais força as tensões de uma cidade marcada pela dependência minerária que ao experimentar um dos níveis mais alto de desemprego, viu seus moradores hostilizarem os atingidos diretos (igualmente moradores) e responsabiliza-los pelo crime! A lama trouxe a compreensão de perdas que a justiça não pode reparar – a perda da relação destas comunidades com a terra, com a natureza, a autoestima de pertencer ao seu lugar e aos seus. A lama trouxe doenças psíquicas para perto de muitos daqueles que, como mesmo afirmam, eram felizes onde e como estavam. Acompanhar de perto essas e outras tantas realidades impostas violentamente pela queda da barragem de Fundão produziram em mim e em minha forma de ver o mundo certa dureza. No que tange a atuação como historiadora, os limites se impõe igualmente. A produção de pesquisas e das narrativas parecem insuficientes diante do fenômeno.
Contudo, o convívio com alguns dos atingidos da comunidade de Bento Rodrigues, ouvir seus testemunhos e lutas, ler suas memórias e denúncias e, sobretudo, acompanhar a insistência de um grupo, conhecido como “Grupo do Bento”, que não abre mão de ocupar o local tomado pelo rejeito, produzem rupturas decisivas neste fechamento de perspectivas. Este grupo de moradores retornam a Bento Rodrigues para estar junto aos seus mortos e igrejas. Eles retornam para celebrar suas festas religiosas e culturais. Eles dormem lá olhando para o céu e recontam suas lembranças. Eles persistem, apesar da dor e das proibições, na convivência com o seu lugar a despeito da lama e junto a ela.
O que este gesto de resistência e agência pode oferecer para o campo da História e para as Humanidades em geral? Difícil ainda precisar. Mas o “Grupo do Bento” parece sugerir que mesmo em um cenário incontestavelmente distópico, no qual a dor, a saudade e sensação de injustiça se impõe, impõe-se igualmente em meio as ruínas uma insistência em preservar Bento Rodrigues como um espaço de sua felicidade. Essa felicidade não é ingênua e vem acompanhada da consciência da impossibilidade de uma retomada de suas vidas tal qual antes da queda da barragem. Trata-se de uma felicidade localizada no passado, sem dúvida, mas ela está presentificada em seus corpos e no espaço onde há pouco viveram. É junto deste passado e deste espaço que eles querem e se esforçam para construir, em meio ao caos e ao medo que lhes foram impostos, o seu futuro. O retorno a Bento Rodrigues, onde jamais voltarão a morar, possui um gesto afirmativo diante da destruição. É num gesto semelhante de afirmação que parece residir uma das potências para as Humanidades hoje.
Referência:
DOMANSKA, Ewa. “Affirmative Humanities”. In.: History-theory-criticism. N. 1, p. 9-26, 2018.
MENDONÇA, Heloísa. “Minha casa, a lama levou”. In.: El País. Publicado em 04 de novembro de 2016. Pode ser acessado em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/02/politica/1478041923_489450.html?rel=mas
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Thamara Rodrigues
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