Quando eu te pergunto, no meio de uma sala de aula, “você pode alcançar aquele livro?”, o que você faz? Provavelmente me entrega o livro. Mas, pense um pouco, por que isso acontece? Eu não pedi que me entregasse nada. A pergunta é clara: VOCÊ PODE ALCANÇAR AQUELE LIVRO? Para um cínico literal, a melhor resposta seria “sim, posso alcançar”. O problema é que essa resposta é insuficiente, já que a frase carrega um pedido implícito, um sentido implícito. Existem no interior da linguagem, como diria Austin, vários níveis de significação, várias modalidades que não se reduzem a um papel meramente descritivo. Embora não seja evidente, o cotidiano é povoado de situações dessa ordem, como numa conversa com um amigo ou assistindo um programa de TV. As palavras brotam, se articulam, e nos afetam de um jeito disperso, em redes. Ou seja, uma simples frase, imagem, ou qualquer material semiótico, sempre carrega dentro de si um potencial incrível, múltiplo, principalmente quando colocado no limite através de métodos como a Genealogia, a Associação Livre e a Irredução latouriana. 

Em cursos de humanas e sociais, de maneira geral, é comum acreditar que a palavra é um simples meio de expressão, um tipo de ponte, mas não qualquer uma. Ela é também a nossa virtude, nosso instrumento, muitas vezes até mesmo nossa arma. É através dela que o caos vira cosmos, e a complexidade é costurada, fazendo de tudo um grande retrato significativo, onde cada elemento tem seu lugar, seu propósito, o que chamamos aqui de transcendentalismo. Ser crítico nada mais é do que encaixar o mundo inteiro na linguagem, comprimindo ao máximo seus contornos até caber nas paredes do signo. O excesso nunca é bem-vindo, já que bagunça fronteiras e descontrói conveniências, além de espalhar gotas de dúvida por todos os cantos. Por outro lado, existe uma outra forma de entender essa história, um outro modo de conduzir a própria criticidade. Em uma democracia liberal onde todos falam o tempo todo, onde todos tem uma opinião pronta e disponível, assim como centenas de interpretações de bolso, o silêncio pode ser a grande chave, até mesmo uma arma revolucionária, inédita. Claro que esse silêncio não tem nada de resignado, mas carrega uma abordagem nova, além de um horizonte político a ser construído. Sobre essa linguagem descentrada e silenciosa, Rowan Atkinson (o Mr. Bean) talvez seja o seu mais popular representante, além de um possível ponto de partida rumo a uma Teoria Social Alternativa (T.S.A).

Rowan Atkinson, comediante britânico, é uma figura no mínimo incomum, uma raridade no campo da comédia. Apesar de ter uma eloquência sem comparação, um potencial retórico muito raro, prefere a comédia do silêncio, do detalhe, da sutileza, assim como Chaplin preferiu esse trajeto, ao menos no seu início de carreira, no começo do século passado. Algo parece impactar mais no silêncio, principalmente quando ele é acompanhado por um certo toque de dúvida, às vezes até de ignorância. O corpo, oscilante, acompanha o ritmo dos acontecimentos, seguindo um fluxo leve, modesto, chegando ao ponto de rir de si mesmo, algo completamente impensável para um comediante transcendentalista. Ao contrário do Stand-Up tradicional, em que o menor traço de humor é planejado, assim como as risadas são antecipadas, inclusive em detalhes, a comédia do silêncio, ao contrário, é espontânea, inesperada, já que conta com uma combinação de milhares de músculos espalhados por todo corpo, gerando assim uma infinita margem de possibilidades, uma incrível rede de afecções. Ao invés de um plano, um projeto, existe muito mais o improviso, um toque intuitivo, a certeza de que o espectador pode ser afetado de outras formas para além da palavra, para além da representação. A linguagem é um tipo de trampolim que ultrapassa a si mesma, abrindo as portas para um mundo cheio de conexões. Em um terreno onde o Stand-Up é uma regra, como nos “The Late Shows”, o silêncio de Atkinson acaba sendo muito mais impactante, muito mais revolucionário. 

Apesar da genialidade incomparável de Chaplin, em seu filme luzes da cidade (1931), o seu silêncio é muito mais um detalhe casual, provisório, resultado de uma certa limitação tecnológica, incapaz de registrar sons. Em Atkinson, ao contrário, o silêncio, e a própria capacidade de rir de si mesmo, quase como o príncipe Míchkin em Dostoiévski, é uma escolha revolucionária, algo afirmado a cada momento, a cada encontro. A importância do silêncio e do riso, principalmente em cenários cheios de conversa, barulhos de carro e discussões, marca um diferencial, um traço marcante, ao menos enquanto contraste. O fundo barulhento, ao invés de desviar a atenção do espectador, realça mais e mais o silêncio em primeiro plano, conferindo evidência ao que acontece. Atkinson se destaca no meio dos sons, no meio do barulho circular e sem propósito da vida moderna, fazendo um tipo de comédia rara e muito impactante. O Stand-Up, especialmente nos “Talk Shows”, nada mais é do que uma combinação matemática, e transcendentalista, de dois fatores: “timing” + “punchline”. Ao seguir essa receita, uma infinidade de temas pode ser articulada, fazendo com que o Stand-Up brote como um simples exercício de técnica, podendo ser realizado basicamente por qualquer um, sem muito segredo ou critério. Já a “comédia do silêncio”, de figuras com Atkinson e Chaplin, ao contrário, não respondem a uma ordem matemática, a uma fórmula, mas a um movimento espontâneo, suave, ou seja, imanente. O critério de sentido não está em um além, em alguma estrutura, ou forma, ou sistema, mas sim no próprio processo em si mesmo, no modo como as coisas se articulam e se desdobram, além da maneira como a linguagem e o corpo se associam. Esse tipo de linguagem descentrada é cheio de brechas, vazios, silêncios, crises, como é de se esperar de uma linguagem alternativa.

A sociologia, presa em uma atmosfera liberal, lembra bastante os cenários na série Mr. Bean (1995), cheias de barulho, pessoas falando ao mesmo tempo, ninguém ouvindo ninguém. De repente, no canto esquerdo da cena uma figura estranha caminha em silêncio, senta no banco, e começa sua refeição. Simples, não é? O barulho de fundo apenas realça a sutileza dos seus gestos, dando destaque até às mínimas contrações dos músculos na sua face, revelando os contornos de cada ruga. Vivemos em um episódio de Mr. Bean, mas sem o seu personagem principal, apenas o barulho sobreposto em barulho, apenas falas cruzadas e empilhadas sem propósito, sem destino. Linguagens pretensiosas colidem, sem nenhuma chance de escuta, nem mesmo uma simples, passageira. O significante pretensioso quer apenas devorar tudo, não importa o que encontre pelo caminho. Esperamos talvez que, algum dia, uma figura estranha (espinosana) também apareça no primeiro plano e, com seu silêncio e seu riso de si, conquiste a atenção de todos. 

Se a escrita e a fala eram uma virtude dentro da Teoria Social Clássica, agora a opção talvez seja a escuta, nada mais do que um ouvido cuidadoso, como aquele do psicanalista de um mundo (corpo) que escapa, revoluciona. O barulho é inútil, assim como as interpretações descontroladas, ou até mesmo o desespero paranoico em encaixar tudo dentro do signo, não importa o que aconteça. Sem dúvida, novas opções devem surgir, mas não sem antes experimentar algumas gotas da comédia do silêncio, permitindo um contato sem pretensões, a não ser uma linguagem disponível, descentrada, ou seja, em rede. 

Em seu livro “A queda”, Camus (1956) oferece ao leitor o seu personagem principal, Jean Baptiste Clamence. Ele é uma figura curiosa… muito curiosa!!! Seu único papel na trama é falar, articulando monólogos sem fim, e até sem propósito, numa circularidade muitas vezes irritante. O silêncio é o seu inimigo, já que pode ser mortal, e por isso as palavras não podem deixar de sair, como uma cachoeira infinita ou um trem desgovernado. Em Shakespeare existiam, sem dúvida, os chamados solilóquios, conversas internas, profundas, e reveladoras do destino da trama, assim como em Hamlet em seu Ato 3 Cena 1, o tão famoso “ser ou não ser”. O problema é que um solilóquio não é um monólogo, não é um esforço desesperado para preencher algum buraco, alguma interpretação. Infelizmente não vivemos em um mundo de solilóquios, mas de monólogos, onde cada um tem o seu e isso que importa. Nessa atmosfera liberal, barulhenta, o silêncio de Mr. Bean pode comunicar alguma coisa, contribuindo para a própria reconstrução da Teoria Social, ao seguir um rumo alternativo, inesperado, embora repleto de possibilidades.

 

 

 


Créditos na imagem: Mr. Bean, Rowan Atkinson, happiness, HD wallpaper

 

 

 

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