Como ser um anti-racista de verdade

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Ao contrário do que afirma um tipo muito específico de esquerda contemporânea, aqui chamada de Liberal, muito presente nas redes sociais e outros espaços convenientes, o racismo não se encontra no predicado do que é dito, mas na própria estrutura de predicação. Parece abstrato, eu sei, mas aqui seguem dois exemplos, sendo um deles um relato pessoal:

1) Certo dia, em uma cidade do interior chamada Pojuca, lugar que fui criado por 18 anos da minha vida, eu passeava de carro com um dos meus melhores amigos em uma tarde de sexta-feira. Enquanto eu permanecia no banco do carona, cercado de compras por toda a parte, ele comandava a coisa toda. Quando se aproximou de um cruzamento, um outro carro invadiu sem avisar a faixa contrária. Depois do choque, e do susto, ele falou em voz alta: “Tinha que ser mulher!!!”. Logo após a explosão de ódio, percebendo o exagero, ele se corrigiu. “Você sabe que não falo sério. Todos sabem que mulheres dirigem bem porque elas possuem um ótimo senso de atenção”.

2) Afirmar que um “índio” é preguiçoso sem dúvida é uma atitude racista, não tem como negar, mas o argumento contrário, aquele que o enxerga como uma criatura “natural”, vivendo em harmonia com a natureza, cultivando ao mesmo tempo um conhecimento nobre, superior e incorruptível, também é racismo.

As pessoas pensam no racismo, ou outros tipos de ismos, como se o problema fosse o tipo de predicação usada. Ou seja, se você oferece um bom predicado, e todos estão confortáveis com ele, isso não seria racismo. Mas se, ao contrário, oferece um predicado negativo, problemático e ameaçador, aí sim teríamos uma postura racista. Meu argumento nesse ensaio, seguindo um percurso bem genealógico, sugere o racismo enquanto algo presente na própria estrutura de predicação, no próprio ato pretensioso de definir o que o outro é, não importando aqui se essas predicações são bonitas ou feias, convenientes ou não. Nesse sentido, o racismo é muito mais um problema de linguagem do que um assunto de caráter. Estamos falando de uma insistência radical e agressiva em definir, nomear e, principalmente, essencializar corpos, como se o outro fosse um pacote de carne transparente, como se eu já conhecesse tudo enquanto um a priori, um saber intuitivo e imediato.

O outro, e toda sua corporiedade implicada, acaba se tornando um espaço disponível a mim, um campo em que eu defino seus contornos, nada mais do que uma carcaça flexível. O problema dessa linguagem racista, muito além de simples desvios de caráter, é o quanto ela se apresenta em vários lugares, mesmo naqueles mais insuspeitos. Se você espera que o racista seja caricatural, se espera um sensacionalismo da rede globo, como naqueles exemplos do “Mosaico Baiano”, ou “da novela das 9”, você realmente não entendeu direito como o racismo funciona. Se você busca grandes desvios de caráter, personagens cômicos e trágicos rondando por aí, é preciso avaliar de novo. Se o racismo fosse tão óbvio, claro e escancarado, se fosse apenas uma notícia sensacionalista que observo enquanto mastigo meu último pedaço de bife do prato, ninguém precisaria de métodos como análise do discurso e outras ferramentas de investigação genealógicas. Por conta de sua natureza escapadiça, traiçoeira, existe sempre a necessidade daquilo que foi chamado por Foucault de “epistemologias da suspeita”, envolvendo um olhar cuidadoso sobre tudo aquilo que se apresenta como óbvio, sólido e claro.

Como disse logo acima, o racismo não está no predicado atribuído, ou no desvio de caráter dessa predicação, mas sim na estrutura predicativa em si mesma, na insistente mania de definir o outro, seja usando adjetivos bons ou ruins. Nesse sentido, o combate das predicações da direita, e seu preconceito enraizado, não passa por uma inversão predicativa. Ou seja, a ideia não é trocar o “índio preguiçoso” pelo “índio sábio”, ou a “mulher desajeitada” pela “mulher atenta”, mas deixar com que corpos existam como corpos e não como idealizações. O outro não pode ser uma simples extensão da minha expectativa, do que eu preciso, sendo necessário conferir a esse Outro autonomia, mesmo que frustrações apareçam no horizonte. É na frustração gerada pelo outro que um campo autônomo se concretiza, no seu fracasso de ser dissolvido por mim, pelo meu desejo. Se aquele “índio” apenas preenche suas expectativas de fundo, apenas reforçando o que você já sabe e já sente, aquele sujeito, na verdade, não existe. Corpos não são brinquedos dentro de tabuleiros verbais, não são apenas peças manipuladas pela esquerda ou direita. Corpos transbordam, resistem, principalmente boas expectativas. O que percebemos nesse cenário todo é o quanto o racismo não é apenas um problema da direita, ou dos reacionários, mas da própria esquerda também, já que o racismo é funcional. Ser racista é antecipar o que outro é, faz e diz, como se a verdade alheia já estivesse comigo desde sempre. Ser racista é criar um mundo à minha imagem e semelhança, sem surpresa, sem crise, sem frustração, um espaço de jogo em que o outro é apenas uma peça predefinida. Ser racista é acabar com a autonomia de todo tipo de corpo, fazendo deles apenas prolongamentos de mim mesmo. Em outras palavras, ser racista é ser narcisista. O racismo é só mais uma forma de narcisismo, uma maneira de ver o mundo como só uma continuidade de mim mesmo, do que preciso, do que sou, do que desejo. O outro no racismo é apenas um EU prolongado, nada mais do que uma extensão de uma vaidade não declarada.

Portanto, ser ANTI-RACISTA não é apenas trocar predicações, ou inverter seus vetores, mas destruir completamente todo o tipo de estrutura predicativa, não importa qual seja. Não adianta trocar o slogan “lute como um homem” por aquele mais alternativo: “lute como uma menina”. É preciso ir muito além dessas inversões de predicação.  Mulheres não são abstrações, mas corpos concretos. Corpos que não apenas choram, mas riem, que não apenas deprimem, mas se alegram, que não apenas enfraquecem, mas se empoderam. Elas são de carne e osso, como qualquer um, como qualquer coisa. Essa corporeidade não pode ser aprisionada na conveniência interpretativa de alguém, já que esses corpos são materiais e não simples ideias lançadas ao vento. Corpos concretos fedem, fracassam… corpos concretos falham, invejam, tem medo. Da mesma forma que esses mesmos corpos cheiram bem, tem sucesso, são fortes, etc. É preciso que a esquerda entenda, já que a direita provavelmente nunca vai entender, que o corpo do outro não é território meu ou de minhas teorias e pautas partidárias. Claro que posso falar da mulher ou do negro enquanto grupos que possuem certas características, mas isso é apenas um movimento pragmático, pontual, reflexo de uma luta simbólica específica, o que Spivak chamou de essencialismo estratégico. Embora exista essa dimensão pragmática, não podemos levar muito a sério predicações, sejam elas quais forem. É preciso deixar que corpos falem, mesmo quando eles falam de formas desagradáveis, estranhas e silenciosas.

Como disse uma vez, a esquerda não é o oposto da direita… isso é um engano!!!! É um engano achar que a esquerda faz o contrário da direita. Nesse sentido, se a direita tem predicados negativos sobre o “gay”, a esquerda teria predicados positivos. Não é bem assim… a esquerda não é o outro lado da direita, mas uma postura política completamente distinta e inconciliável. Falar da esquerda como um lado, como uma estrada, também não ajuda, porque oferece sua postura como só uma via contrária, oposta. A esquerda não é uma estrada, mas o movimento na própria estrada, assim como os novos percursos em busca de novos caminhos. Apesar do que diz a rede globo, e a esquerda liberal no Facebook e Instagram, destruir o racismo é mais difícil do que parece, porque é muito conveniente ser racista. É muito conveniente essencializar alguém, predicar alguém, nomear alguém. É algo de pura conveniência entender o corpo do outro como algo que me pertence, seja física ou simbolicamente. O corpo do “Índio”, “do negro, “da mulher”, “do gay” claro que não pertencem ao ESTADO, claro que não pertencem à MÍDIA, claro que não pertencem ao CAPITALISMO, mas eles também não pertecem à ACADEMIA e a sua pretensão de nomear, circunscrever e definir. Corpos não pertencem a ninguém, já que frustram todos, e até a si mesmos, transbordando os limites de cada conveniência disponível.

 

 

 


 

Créditos na imagem:  Reprodução. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-os-brancos-precisam-ser-antirracistas.shtml

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago de Araujo Pinho

Thiago Pinho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi pesquisador convidado na Sci-Arc (Los Angeles, EUA), em 2020. Atualmente é professor substituto da própria UFBA-IHAC e tutor na SPIRES (British Tutoring). Também escreveu dois livros sobre Teoria Social: “Descentrando a Linguagem” (Zarte, 2018) e “Sintomas” (Paco, 2019).

1 comment

  1. Caroline 20 dezembro, 2022 at 07:07 Responder

    Adorei todo o seu texto e concordo em gênero número e grau em vários aspectos mas da mesma forma que vc defende que o racismo vem do narcisismo é que devemos tratar de uma forma diferente do que vem sendo feita, você cita que “a direita nunca vai entender” já colocando todas as pessoas de direita em um mesmo rebanho e agindo de forma tão narcisista quanto os racistas. Eu não sei bem o que sou ainda, mas tenho certeza que não sou de esquerda. No entanto se não sou de esquerda não posso ser anti-racista? Assim como a esquerda entende que o indígena deve ser um “ser puto do mato e que deve viver em comunidades nas florestas” enclausurando-o nesta realidade mesmo que talvez não seja o seu desejo?

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