Morte em Veneza de Cordovani e Coimbra: o belo como antídoto do torpe

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Há um ano mais ou menos, conversei com Roberto Cordovani sobre as idades, sobre o chegar à idade madura, à velhice etc. Roberto me disse que definitivamente faria espetáculos (isso já ocorre há muito) em que ele pudesse dizer essencialmente o que deseja dizer, julgar ter que dizer, dizer o que é imprescindível; segundo sua ética.

Assim se dá em Morte em Veneza que, para além da discussão do amor homo afetivo, encena o debate sobre o belo, a beleza, seus modelos socioculturais, artísticos, humanos, “demasiadamente humanos” num tempo, hoje, em que o padrão de beleza é estabelecido por redes sociais e por intervenções, muitas vezes, cirúrgicas.

Morte em Veneza, um espetáculo mais que pertinente, necessário, põe o expectador frente à discussão sobre o belo em tempos em que o feio, o torpe, parece reinar.

A ação da peça se passa em Veneza, como indicado no nome do espetáculo, mesmo nome do livro, cuja adaptação inédita para o teatro é assinada por Vinicius Coimbra, que também dirige o espetáculo, e Roberto Cordovani, que atua no palco, tendo Guilherme Cabral, em projeção audiovisual, no papel de Tadzio, contracenando com Cordovani no papel do escritor alemão Gustav Von Aschenbach.

A estreia internacional (Morte em Veneza fará carreira viajando pelo Brasil e pelo exterior) foi sexta-feira passada, vinte e um de abril, no novo Teatro Paiol, em São Paulo.

Em Morte em Veneza, o escritor Gustav Von Aschenbach (Roberto Cordovani) está em crise criativa na sua cidade Munique. Isso ocorre nos primeiros anos do século XX. Gustav decide partir de férias para Veneza.

Gustav Von Aschenbach é rigoroso, obcecado pela perfeição e por atingir a beleza ideal em arte.

Ao chegar a Veneza, hospeda-se em um luxuoso hotel a beira mar. Encontra o jovem Tadzio (Guilherme Cabral).

O jovem tem uma beleza natural que, aos olhos do escritor, supera todos os parâmetros por ele já pensados, por ele já definidos em termos de belo artístico, principalmente.

Com o passar do tempo, Gustav por observar, tal qual um voyeur, Tadzio em suas atividades físicas, em trajes mínimos, como outros jovens na praia, uma paixão inesperada se instaura no coração do escritor.

As projeções audiovisuais não apenas as que Tadzio aparece, mas as de lugares em Veneza levam a plateia a viajar junto com o protagonista do espetáculo. Não são meras projeções, como pano de fundo ou para contextualizar a ação. Roberto Cordovani passeia por elas, interage com elas, interagindo à maneira do escritor Gustav com Tadzio.

O espetáculo é belo, fazendo jus à discussão temática. Luz, trilha sonora, cenário e, principalmente, figurinos são de muita elegância.

A direção encontrou soluções ótimas em um monólogo em que não se tem apenas um ator em cena. As vozes em off, sejam de personagens secundárias, seja quando Gustav está pensando em silêncio, são exemplos de soluções ótimas.

Roberto Cordovani desenha um Gustav Von Aschenbach com todas as nuances de um velho que, ao amar rejuvenesce e que, ao se ver neste delírio e ao adoecer, envelhece mais. É nítido esse processo de rejuvenescer e voltar a envelhecer da personagem, que o talento de Roberto Cordovani põe em carne e osso e em verdade cénica.

A paixão por Tadzio, mais a peste que se dissemina em Veneza, levarão o escritor Gustav à reflexão sobre a tensão entre o artístico e a vida pessoal. Gustav Von Aschenbach vive sentimentos também conflituosos como os de lutar contra a passagem do tempo, entender a decadência do corpo, e a doença, entendida, no espetáculo, como metáfora de um mundo agonizante.

Quem, se não um homem em idade madura, idoso, doente, solitário, frustrado talvez, faria a si mesmo perguntas existenciais sobre a beleza, que não é beleza apenas física, aparente, mas beleza incorpórea, da alma?

Gustav Von Aschenbach interroga-se, como quem interroga à vida, ao mudo, critérios para o belo. Seu fascínio sobre a questão incide sobre o jovem Tadzio ganhando proporções muito além do carnal.

Grosso modo, o belo em Platão (340 a. C.) é o ideal da perfeição que só podendo ser contemplado em sua essência por meio de um processo de evolução filosófica e cognitiva do indivíduo por meio da razão, proporcionaria conhecer a verdade harmônica do cosmo. Daí, dizer-se paixão platônica, amor platônico, idealizado, que vive no mundo das ideias e não desceu ainda (quase nunca desce) para o mundo da empiria.

Para Aristóteles (384 a. C), o belo é o bom, o útil, o esplendor da ordem, inerente ao homem.

Nos primeiros anos do século XX, tempo da ação de Morte em Veneza, Thomas Mann para escrever seu romance, adaptado agora para o teatro, vale-se de histórias bíblicas e germânicas, assim como ideias de Goethe, Nietzsche e Schopenhauer.

Para Goethe, por exemplo, o belo é uma manifestação de leis secretas da natureza, que, se não se revelassem a nós por meio do belo, permaneceriam eternamente ocultas.

Para Nietzsche o belo em si não seria mais que uma miragem ou um ludíbrio, pois se trata de mero espelhamento daquilo que tomamos por belo ou perfeito, ou seja, uma vaidade da espécie.

Em Schopenhauer, o belo tem explicação metafísica. O conhecimento do belo se eleva sobre o conhecimento ordinário e o científico, pois esse tem, pelo lado objetivo, os fenômenos relativos e fugazes do princípio de razão, e pelo subjetivo, o sujeito subordinado à vontade. O conhecimento do belo consiste, pelo lado objetivo, nas ideias eternas e arquetípicas de Platão, a objetivação mais adequada possível da vontade, e pelo subjetivo, o puro e atemporal sujeito do conhecimento destituído de vontade e sofrimento.

Em Morte em Veneza, vê-se a euforia e a tentativa de apreensão do belo sublimado, desejo e vontade, delírio; sofrimento e agonia.

Gustav Von Aschenbach, na pele, carne, inteligência e sensibilidade de Roberto Cordovani, convida o expectador a refletir sobre a beleza e sobre a projeção dela no humano, para usar novamente um termo de Nietzsche, “demasiadamente humano”.

Morte em Veneza desloca quem assiste ao espetáculo a outros padrões de beleza que não o dos procedimentos estéticos, não o das academias de ginástica, não o padrão de beleza dos filtros do Instagram.

 

FICHA TECNICA

Autor : Thomas Mann Premio Nobel de Literatura

Adaptação Literaria e Direção: Vinicius Coimbra (Premio Emmy Internacional

Adaptação e Estruturação Teatral Roberto Cordovani

Com

Roberto Cordovani (Prêmios de melhor ator em Londres, Madri e Compostela) e Guilherme Cabral como Tadziu (Em projeção)

Vozes off: Debora Olivieri, Ruben Gabira, Vinicius Coimbra

Trilha Sonora: Sacha Amback

Cenário: kerrys Aldalbalde

Figurinos : Renaldo Machado

 

SERVIÇO

Teatro Paiol – Rua Amaral Gurgel, 164 / São Paulo-SP.

Até 04 de julho

Sextas e sábados às 21: 00 h

Domingos às 20: 00 h

 

 

 

 


Créditos na imagem: Cenas de ‘Morte em Veneza’, com o autor Roberto Cordovani, em cartaz no Teatro Paiol – Vinicius Coimbra/Divulgação

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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