“Não-humanos que ocultam [a si mesmos] por emanação mágica, de [lugares] tão alto ou tão baixo como Jang (Lijiang) do Império (Mongol) o qual compreende tudo que está abaixo do sol, escutem [ao meu comando]!
É absolutamente proibido fazer mal aqueles que o possuem meu [decreto] por meios tais quais as perigosas oito classes de deuses e demônios, maldições, rituais de invocação para destruir inimigos, espíritos malevolentes, poltergeists, e quebradores de juramento. [Todos] devem fazer notar este decreto por Ga Anyen Dampa!
No entanto, se houver alguém que desobedeça, [Eu juro pelas] Três Jóias que, liberando a feroz punição dos Protetores do Dharma, suas cabeças se partirão em um centena de pedaços!”
Assim diz o decreto por Dampa, um especialista no ritual da divindade irada Mahakala da corte de Qubilai Khan, do século XIII. O decreto, que funciona como um encanto protetivo para aqueles que o carregam, demonstra a inclinação de Dampa em misturar autoridade política com poder tântrico, o reino humano com o mundo espiritual.
A força da religião em reivindicar poder político é o foco da exibição e publicação Faith and Empire: Art and Politics in Tibetan Buddhism. O Budismo Tibetano ofereceu aos impérios do Interior Asiático um caminho simbólico para legitimação, assim como um meio literal de atingir poder físico: uma tecnologia ritualística que em tempos atuais classificaremos como mágica.
A imagem de um monge meditando em uma caverna remota é um estereótipo romantizado do Ocidente, que limita nossa compreensão da ampla gama da atividade religiosa do Tibet. Na realidade, muitas figuras religiosas desempenharam um papel muito mais ativo e engajado na história, agindo como chapelões da corte que serviram às necessidades de seus governantes. Monges-governantes também ascenderam ao poder, misturando os interesses da religião e do Estado. Para a corte imperial da Ásia, um dos grandes apelos do Budismo Esotérico foi sua alegada eficácia em lidar com objetivos mundanos e a aplicação militar de seus rituais, que refletiam o zeitgeist de sujeição, coerção e controle- em uma palavra: poder. Governantes e cortes imperiais estavam menos interessados em meditação ou iluminação e mais preocupados com o que a religião poderia fazer pelo estado: protegendo a nação; estendendo a vida, riqueza e poder de seus governantes; curando epidemias; controlando o clima; e pacificando ou matando seus inimigos.
Tibetanos adotaram o desenvolvimento tântrico do Budismo na Índia, com a reformulação de Buda, como um nexo de autoridade política e espiritual, corroendo a distinção entre poder secular e sagrado. Com essa fusão do imagético mundano e sagrado veio a elevação das divindades iradas ao status de budas. Essas divindades e seus praticantes não eram apenas úteis em termos de superar obstáculos para libertação, mas também em realizar objetivos mais mundanos. O segundo capítulo do Hevajra Tantra, por exemplo, inclui descrições detalhadas de rituais para destruir um exército inimigo e até seus deuses.
Como acadêmico, Bryan Cuevas explica em seu capítulo sobre guerra mágica no Faith and Empire catalog, que o ritual tântrico foi entendido como uma potente tecnologia para o controle de ambos os mundos, internos e externos, com quatro objetivos principais: pacificação, enriquecimento, dominação e destruição. Tibetanos viram o lendário mago do século VIII – Padmasambhava (Guru Rinpoche) – o qual dizem ter se envolvido em batalhas mágicas com os deuses e demônios locais para subjugar a região, como uma fonte das mais potentes formas de tal poder mágico. Uma ampla gama de imagens, tais como esta versão pintada de uma efígie humana ou as mais abstratas esculturas de oferenda (torma), que eram empregadas para sinalizar perigo e sujeitar ou destruir inimigos.
Guerra mágica e o carisma daqueles que a dominaram tornaram-se uma importante parte da legitimação política no mundo do Budismo Tiibetano. Lama Zhang é um caso fascinante sobre o emprego político e militar do Budismo Tântrico no século XII. Inseriu-se em assuntos políticos e militares, conquistou territórios e aplicou lei secular. Chegou até a enviar seus próprios estudantes em batalhas como parte de sua prática religiosa. Em adição às armas convencionais, Lama Zhang empregou uma guerra ritualizada de feitiços mágicos, supostamente ajudado por poderosas deidades protetoras como Shri Devi e Mahakala.
Budistas Tibetanos, conhecidos pela eficácia de seus rituais mágicos, também serviram cortes imperiais do leste, como o Império Tangute (Império de Xi Xia de 1038 a 1227). Um clérigo associado a linha imperial Tangut, Tsami Lotsawa, está ligado, ao menos, a 16 textos sobre a deidade irada Mahakala, incluindo The Instructions of Shri Mahakala: The Usurpation of Government, um pequeno tutorial sobre como derrubar um estado e tomar o poder. Quando Gengis Khan fez o primeiro cerco sobre a capital de Tangut, em 1210, o chapelão da corte tibetana de Tangut sumonou Mahakala para o campo de batalha, ao ponto de que represas que os Mongóis estavam usando para inundar a cidade romperam, afogando tropas Mongóis e forçando Gengis Khan a bater em retirada. Relatos tibetanos afirmam claramente que quando o instrutor imperial fez a torma, ele tinha uma visão de Mahakala no campo de batalha, e os Mongóis foram forçados a recuar. Esse relato sobre seu incomum fracasso militar, através de um efetivo ritual religioso, sem dúvidas chamou a atenção Mongol.
Os Mongóis adotaram a prática do Império Tangut, de empregar Tibetanos como seus instrutores, a deidade colérica Mahakala se tornou o protetor do estado e foco do culto imperial. Mahakala (“O Grande Negro” / “O Grande Tempo”) tomou crédito pela intervenção em diversas batalhas de grande importância, como por exemplo no início da campanha mongol para pressionar o sul da China, o especialista em rituais da corte de Kublai Khan, o previamente mencionado Dampa, sumonou Mahakala, que foi visto avançando por todo o campo de batalha. Quando chineses rogaram pelo seu deus da guerra Xuanwu para salva-los, o deus chinês deixou um recado em seu altar dizendo que tinha que render-se ao Deus Negro que liderava o exército mongol.
Em seu exemplo mais famoso, Kublai Khan pediu ao seu instrutor tibetano para que Mahakala interviesse contra Sung do Sul (1127–1279) o qual seu maior general não conseguira conquistar. Um templo foi levantado a sua imagem, virado para o sul, e, não muito depois, a capital de Sung rendeu-se. Quando o antigo imperador de Sung e sua corte foram trazidos ao norte ficaram espantados ao ver a imagem de Mahakala da mesma forma que era vista entre as tropas mongóis. Sua escultura usada na conquista da China se tornou um símbolo potente sobre o controle de Kublai Khan e a linhagem da dinastia Iuã.
Nem todos os tibetanos aceitavam o envolvimento mongol em assuntos tibetanos, dessa forma repetidas incursões em terras tibetanas resultaram em um sistema doméstico de especialistas em ritual de guerra-mágica, conhecidos como expulsa-mongóis (Sokdokpa). Por exemplo, o Rikdzin Chodrak do século dezessete, a última figura na linhagem desta pintura, tinha sua fama por artista e por seus rituais de banimento mágico contra o exército mongol. A deidade Yamari, na forma de “Lâmina Ardente de Extrema Repulsa”, é retratada no centro como um punhal ritualístico de 3 lâminas, usada para oprimir forças malévolas e assassinar demônios, uma forma estritamente associada ao mago arquétipo, Padmasambhava.
Em meados do século XVII, a mágica era uma parte integral da legitimação da política e da guerra. Ambos os lados usaram da magia em uma prolongada guerra civil no Tibet Central que levaram os Dalai-Lamas ao poder. O arsenal de ritos de destruição do 5º Dalai-lama incluíam as divindades coléricas Vajrabhairava, Yama Dharmaraja, e Shri Devi na forma de Makzor Gyelmo (A Rainha que Repele Exércitos). Ele reconheceu que o carisma político, somado aos praticantes que dominaram tais habilidades mágicas, foi crucial para a sobrevivência do regime.
O Elmo Mongol é um brilhante exemplo do emprego de magia no campo de batalha. As letras entrelaçadas do mantar Kalachakra, conhecidas como “As Dez Silabas do Poder” se encontram como iconografia central acima das sobrancelhas. Na parte de cima irrompe Vajrabhairava, uma das principais divindades no arsenal de práticas mágicas destrutivas da Ordem Delugpa.
Os imperadores da Dinastia Manchu dos Qing (1644–1911) adotaram o budismo tibetano como meio de legitimação política e utilizaram a guerra mágica como um meio de estabelecer sua autoridade. No século dezoito o imperador Qianlong, que posicionado como a emanação do Bodisatva da Sabedoria Manjusri, teve uma forte afinidade com Vajrabhairava, a emanação colérica de Manjusri. O chapelão de estado de Qianlong, Changkya Rolpai Dorje também interviu em batalhas em nome do estado Qing. Conforme relatos, os rituais performados na capital resultaram em chamas, caindo sobre o campo de batalha Gyelrong (Jinchuan) uma das mais custosas e prolongadas guerras do Império Qing.
Esse aspecto da tradição tibetana pode surpreender – ou até mesmo ir contra as percepções populares sobre o budismo – porém o emprego de rituais mágicos foi uma parte integral do poder do budismo tibetano na política. Em uma tradição onde religião e política estavam inseparavelmente entrelaçadas era natural que governantesuscassem respostas religiosas para solucionar problemas do mundo real, seja para aumentar sua longevidade ou para superar adversários.
NOTAS
Texto original em War Magic: The Wizarding World of Tibetan Sorcery.
Agradecimentos e créditos a Karl Debreczeny, Curador Sênior de Coleção e Pesquisa no The Rubin Museum of Art, a Spiral Magazine pela cooperação e a Margot & Tom Pritzker pelas imagens.
Créditos na imagem: Dossel de um Iantra de Mahakala; Tibet; século XVIII-XIX; pigmento em tecido; 61.9 x 51.1 cm; Rubin Museum of Art; C2006.66.509 (HAR 977)
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