Lulancolia: a dificuldade brasileira de se desvincular de seu objeto de desejo

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Você que chegou a este texto, ou por convite ou curiosidade, ou pelos dois motivos, deve estar se perguntando sobre o que eu chamo aqui de Lulancolia… Bom, talvez a resposta não esteja precisamente nesse texto, mas vamos lá!

No dia 1º de janeiro de 2011, findava-se o segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Morria ali o Presidente Luiz Inácio, 35° presidente da República Federativa do Brasil. Encerrava-se um ciclo de oito anos – para não dizer um ciclo de 30 anos, afinal de contas, desde as primeiras greves e fundação do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva era figura carimbada no álbum da política brasileira. Saía da cena político-eleitoral para dar lugar a sua escolhida para sucessão: Dilma Rousseff – mas continuaria a orbitar a cena como uma espécie de fantasma, com visitas de tempos em tempos. Os primeiros anos foram de um fantasma que descansava, sempre à espera, na espreita, esperando o momento certo do seu retorno. O primeiro ensaio da volta aconteceu no ano de 2014, às vésperas da convenção eleitoral, quando parte daqueles que compunham seu grupo político desejavam seu retorno à presidência em detrimento da reeleição da então presidenta. Naquele ano, “a bancada do PR na Câmara convocou a imprensa para declarar apoio ao movimento “Volta Lula”, que [teve] adeptos no PT e [defendeu] que o ex-presidente [concorresse] à eleição presidencial” (G1, 2014). O deputado Bernardo Santana chegou a colocar um quadro do ex-presidente em seu gabinete em Brasília, e “leu um manifesto assinado por 20 dos 32 deputados federais em que a bancada “[reivindicava]” o retorno de Lula” (G1, 2014). Essa, foi, a primeira aparição daquele que se tornara um fantasma, até mesmo para seus aliados. O fantasma foi pseudo-exorcizado.

O segundo ato, a segunda entrada em cena do fantasma, depois de quatro anos de turbulências no Brasil, aconteceu no ano de 2018, no período eleitoral, e depois de toda a força-tarefa lava-jatista que se propunha exorcizar de uma vez por todas o fantasma Lula. Naquele ano, há pouco mais de um mês para as eleições, o operário pernambucano liderava as pesquisas e possuía larga vantagem sobre o segundo colocado, Jair Messias Bolsonaro. Segundo notícia da época “o ex-presidente Lula [tinha] 39% das intenções de voto estimulada (…). Ele [tinha] larga vantagem sobre Jair Bolsonaro (PSL), que [tinha] 19% e [era] seu adversário mais próximo no momento” (DATAFOLHA, 2018). Seus adversários (e até mesmo boa parte dos aliados) não sabiam que a tentativa de exorcizar um fantasma é sempre tarefa frustrada. Nem mesmo a prisão de Lula fez com que seu fantasma deixasse de aparecer no cenário construído naquele ano. Essa, foi, a segunda aparição do fantasma. O fantasma foi pseudo-exorcizado.

Cá estamos nós em 2021, em plena pandemia, diante de um cenário de guerra, com recordes e mais recordes de mortes. A pandemia, e a atuação do governo federal diante dela anteciparam as discussões eleitorais que costumam acontecer no ano da eleição (no caso, 2022). Aliada a isso, a decisão Supremo Tribunal Federal de anular as condenações do ex-presidente e reestabelecer seus direitos políticos, antecipou a re-aparição do fantasma, que estava com visita marcada para o ano eleitoral de 2022. Oh, pobre de nós que esquecemos que um fantasma nunca marca a hora de aparecer. Será que agora o fantasma, na série de aparições que fará até o ano de 2022 (ou não), retornará sob uma nova face, em uma nova pele? O fantasma será pseudo-exorcizado?

Mas… por que Lulancolia se até o momento só me prestei a falar de fantasmas? Ao leitor apressado, gostaria de dizer que era necessária a apresentação da “morte” do Presidente Lula, para dizer que “os mortos continuam nos criando problemas” (RODRIGUES, 2019, p. 333). Ao me propor falar de uma certa Lulancolia, era preciso mostrar o processo de morte, e como após a “morte”, o morto, sob a forma de fantasma, continuou e continua nos criando problemas. É preciso, pois, deixar que o velho Presidente Lula, de fato, morra, e, assim, viva de outro modo, reinventado. Antes, porém, precisamos falar daquilo que se segue após a morte.

Freud, em seu ensaio intitulado Luto e Melancolia, apresenta as experiências do luto e da melancolia, sendo as duas de acontecimentos que após a perda de determinado objeto. Freud postula que o luto é um momento de perda de alguém, mas pode surgir em outras situações, como a perda de um ideal, “o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc” (FREUD, 2019, p. 28). Para o psicanalista, certo é que o luto passará, “confiamos que será superado depois de algum tempo” (FREUD, 2019, p. 28), afinal, é “um processo normal diante de uma perda, processo esse que tem um fim” (CONTINENTINO, 2008, p. 68). No luto, existe “o desligamento do objeto e a recuperação de investir” (CONTINENTINO, 2008, p. 74). Já a melancolia é caracterizada “por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar” (FREUD, 2019, p. 28), um processo patológico, uma ferida aberta, que acaba utilizando sua energia em investir em uma representação mental. Nesse processo “alheio à ‘prova de realidade’, o melancólico prolonga a vinculação a este, impedindo-se de estabelecer novas ligações” e a falta de superação e desligamento desse objetivo. Afinal de contas, o que quero falar? Que o Brasil vive esse processo patológico desde 2011, e teria esse processo gerado Bolsonaro? Ou o Brasil teria feito o processo de luto e já substituído seu objeto de desejo? Nem uma coisa e nem outra.

Ora, mas você não falaria sobre a tal da Lulancolia? Sim. Estou, aliás, quase. Justamente por isso é necessário seguir e não me desviar por outras questões, apesar do desvio já feito. Não é exatamente sobre o luto que quero falar, e nem tampouco a melancolia, mas do que pode ser chamado de luto impossível, meio-luto ou quase-melancolia. Adotarei a partir de agora a quase-melancolia quando me referi a isso, para manter o jogo do termo Lulancolia que aparece no título – um tanto quanto sensacionalista. Na quase-melancolia, diferente do luto e da melancolia, não há substituição do objeto de desejo e nem a forma patológica da não-substituição. Existe um deslocamento a partir desse mesmo objeto. Aqui, “as chances de deslocamento (e não substituição) se abrem, justamente, dentro de situações nas quais o conflito e a tensão possam ser suportados na sua forma extrema, sem o recurso a álibis escamoteadores, recalcantes” (CONTINENTINO, 2008, 75). Neste movimento, existe “uma estrutura de tensão da qual nunca saímos (…) e é ela mesma que, quando não denegada, oferece a chance de deslocamento, ou seja, o aparecimento de novas indagações e reposicionamentos” (CONTINENTINO, 2008, 75). Assim, vivemos constantemente nos reposicionando e nos recolocando a partir daquele que outrora nos deixou. Esse movimento garante que o morto viva, sempre de outro modo, sob novas formas. É preciso deixar que aquele que outrora viveu (no nosso caso, o velho Presidente Lula) morra, para que assim, viva de outro modo, sob uma nova face.

O que este movimento quase-melancólico, que chamamos de Lulancolia, de deixar que o morto (o velho Lula) morra para que assim ele viva, será capaz de produzir? Qual ato novo, inventivo, devemos esperar? No novo retorno do fantasma, sob essa nova face, em sua terceira vinda, qual deslocamento será feito na cena político-eleitoral? O fantasma, mais uma vez, será pseudo-exorcizado, ou lhe será restituído um corpo, diferente do que outrora foi, mas igualmente com uma faixa presidencial sobre o peito? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos…

 

 

 


REFERÊNCIAS

CONTINENTINO, Ana Maria. O luto impossível da desconstrução. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2008. p. 59-87.

DATAFOLHA, Instituto de Pesquisas. 39% votariam em Lula: sem petista, Bolsonaro lidera disputa presidencial. Disponível em:  https://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2018/08/1979559-39-votariam-em-lula-sem-petista-bolsonaro-lidera-disputa-presidencial.shtml. Acesso em: 01 de jul 2021.

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Disponível em: https://clinicasdotestemunhosc.weebly.com/uploads/6/0/0/8/60089183/luto_e_melancolia_-_sigmund_freud.pdf. Acesso em: 19 jun. 2021.

G1. Movimento ‘Volta Lula’ incomoda o ex-presidente, diz Gilberto Carvalho. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/noticia/2014/04/movimento-volta-lula-incomoda-o-ex-presidente-diz-gilberto-carvalho.html. Acesso em: 01 de jul 2021.

RODRIGUES, Carla. A função do luto na filosofia política de Judith Butler. Disponível em: https://www.academia.edu/37972677/A_fun%C3%A7%C3%A3o_do_luto_na_filosofia_pol%C3%ADtica_de_Judith_Butler. Acesso em: 11 jun. 2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Disponível em: https://paduacampos.com.br/2012/2016/04/01/opiniao-lula-e-pt-fazem-terror-com-temer-ao-pp-pr-e-prb/lula-fantasma-496×346/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Fernando Brito Moreira

Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é Consultor Unesco e Mobilizador da 4ª Conferência Nacional de Juventude e responsável pelo Movimento Estudantil Estadual no Partido Verde de Minas Gerais.

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