No tempo em que vivemos não é de se estranhar uma postura de recolhimento da produção científica, em suas diversas disposições. Seja pela falta de recursos, seja pelo desânimo que o enfrentamento constante ao sucateamento das instituições produz nos que contribuem para a ciência; é notável a necessidade de continuamente se demonstrar a legitimidade do que se produz para o mundo social.

À margem das formações discursivas, como Luiz Costa Lima denomina as ciências produtoras de conceitos, estão em evidência alguns grupos negacionistas que, devido a uma série de situações sociopolíticas, vêm ganhando espaço nas mídias sociais. Não constitui nenhuma novidade a existência de grupos que caminham em contraposição ao discurso científico e a presença de revisionismos sob forma de discursos de confronto, de disputa e reação. A novidade, nos parece, está em sua convicção que tem ganhado gostos e sabores ao paladar popular.

Mas o que essa reflexão pode promover em nós? A primeira resposta seria, tudo relativo a vida prática e intelectual, i.e. toda atividade intelectual [historiográfica] exige o exercício da escrita, por se tratar da forma fundamental de debate e comunicação dos historiadores e das humanidades, sob um argumento universalista inicial, e isso nos encaminharia a pensar na responsabilidade com a maneira como escrevemos e lançamos ao mundo, nossos pensamentos, nossas ideias e ideologias.

Essa situação de enfrentamento nos mostra que produzir conhecimento (escrever, no nosso caso) é uma forma da resistência como não-violência, que segundo Judith Butler, não expressa uma posição moral, puramente, ou uma atitude de “paz de espírito” de uma pessoa. Em vez disso, é uma escolha moral e política; uma asserção raivosa, poderosa e geralmente tangível. Pensar é um desafio que nos colocamos ao mesmo tempo em que é uma necessidade. A não-violência, nesse sentido, não é um princípio, uma virtude ou uma posição passiva, mas prática.

É nesse tocante que ganha importância também pensar a linguagem em seu duplo eixo, para referenciar Luiz Costa Lima, compreendendo-a como dispondo de um núcleo conceitual e cercado por uma auréola metafórica. Isso quer dizer que podermos observar a potência da linguagem em sua  possibilidade de ampliar os limites conceituais que permitem que questionemos o paralelismo entre fato e linguagem. Em pensar que o sentido não é intrínseco ao acontecimento, mas que é embebido pela experiência do futuro do pretérito, enquanto incerteza, surpresa e indignação.

Uma segunda resposta deve atentar para a possibilidade de atuarmos como sujeitos que procuram formas de reelaboração do mundo da vida, como condição de atravessar os limites impositivos do mundo pós-moderno, bem como os enfrentamentos exigidos pelas falácias que nos cercam, que nada têm de ingênuas e imprecisas, mas que corresponde a um clamor que convoca para discussão. Em outras palavras, se o ético e o estético, tão presentes em nossos discursos acadêmicos, não dialogam mais no mundo moderno é porque não se entendeu o que o moderno tem de mais “hodierno”: o humano, o caráter antropológico que diz sobre o mundo, porque é pelo humano que se torna mundo.

Dessa forma, a existência une os sentidos do existir, constituindo a totalidade das estruturas do homem. Portanto, o homem não estaria ancorado na soma dos momentos, mas em uma ideia de totalidade, na teleologia que uniria passado, presente e futuro. Isto permite que o homem repouse no seu verdadeiro ser e de algum modo encontre-se sempre além de si mesmo, ou seja, passado e futuro se antecipam no presente como um misto de possibilidades de “recomeçar” e “reconstruir” sua vida. Ao fim e ao cabo, o que queremos evidenciar é: se por um lado temos que procurar forças para o enfrentamento, por outro devemos mobilizar os instrumentos que temos à nossa disposição: a linguagem.

Martha Nussbaum é bastante assertiva quando afirma que a literatura enquanto linguagem mobiliza as emoções, no reino do conforto, numa condição efetiva onde é possível cometer erros. Ela aponta que todo pensamento tem um aspecto ético que a razão não pode negar. O que corresponde a afirmar que não há um caráter de classe apenas pelo coletivo, mas que exige do indivíduo uma relação com o tempo e o ritmo do mundo para se integrar ao coletivo e assim constituir uma experiência que não o prive do contato com o outro.

Em outras palavras, são as relações que estabelecemos em conjunto que nos permitem compreender, interpretar e agir no mundo. No entanto, as condições de atuação estariam constantemente tensionadas nessa dupla situação e, portanto, pela conjuntura histórica em que os sujeitos estão imersos. É preciso interrogar as normas sociais como produtoras de repressão e questionarmos as limitações que cerceiam a produção da linguagem, pensando que as emoções políticas, que não estariam delimitadas a uma condição de passividade, são motoras e produtoras de ação, de mobilização e de mudança; diríamos mais enfaticamente como promotoras da consciência de classe.

O retorno tautológico à natureza da narrativa historiográfica e ao perigo da ficção está cada vez mais no campo do kitsch ou da ignorância dos estudos sobre a natureza da ficção e a aproximação entre res factae e res fictae; percorrendo um caminho que tem a necessidade de “articulação da racionalidade metódica com o sentido, por meio da narrativa histórica” (WHITE, 2014, p.65). Pois bem, cabe trazer aqui um argumento de Hayden White para demonstrar que os historiadores continuam fazendo uso do fato como arma para defender uma possível cientificidade do conhecimento histórico.

Os teóricos da historiografia geralmente concordam em que todas as narrativas históricas contêm um elemento de interpretação irredutível e inexpungível. O historiador deve interpretar a sua matéria a fim de construir o padrão que irá produzir as imagens em que deve refletir-se a forma do processo histórico (2014, p.65).

Portanto, fica claro que o historiador não tem acesso ao passado senão pela sua condição interpretativa e representacional. Em outras palavras, é preciso perceber que essa imagem não é um enclausuramento, mas um grito de liberdade em relação a condição rígida de forma e conformidade, abrindo possibilidades narrativas e interpretativas ao já muito explorado esforço comunicativo do historiador. Seria preciso ter em vista que essa sentença não é condicionante, portanto, levar em consideração a dimensão subjetiva e insegura de profissionais aficcionados com a pragmática ou com a empiria. Hayden White continua seu argumento ainda dizendo:

(…) o registro histórico é ao mesmo tempo compacto demais e difuso demais. De um lado, sempre existem mais fatos registrados do que o historiador pode talvez incluir na sua representação narrativa de um dado segmento do processo histórico. E, assim, o historiador deve “interpretar” os seus dados, excluindo de seu relato certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito narrativo” (2014, p.65).

 

Sinalizando as limitações da condição interpretativa dos fatos, Hayden White afirma que a seleção do corpus documental do historiador é fundamental, não apenas como lugar de organização e organicidade, mas também como maneira de arranjar, ordenar e planificar a explicação. Em outras palavras a escrita da história necessita de uma organização narrativa; seja como condição de composição, seja como uma forma de, nos limites da linguagem, encontrar as encruzilhadas e os vínculos necessários à enunciação.

Ao assinalar esse percurso, aqui sintetizado, queremos endossar a possibilidade de pensar a história, pensar a ficção e a ficcionalidade da vida como formas de resistência pela linguagem contra aquilo que nos provoca desconforto, tensionando a maneira mesma de produzir discurso e discursividade, de enfrentar os negacionismos e os disparates de uma situação histórica desequilibrada pelo reforço da desonestidade intelectual e o populismo político e historiográfico.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ASSIS, Arthur Alfaix. A teoria da história de Jörn Rüsen. Uma introdução. Goiânia: Ed. UFG, 2010a.

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? (S. T. M. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

LIMA, Luiz Costa. Os eixos da linguagem. São Paulo: Iluminuras, 2015.

NUSSBAUM, Martha. Poetic Justice. The literary Imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaio sobre a Crítica da Cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2 ed. São Paulo, Editora da USP, 2014

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. The Massacre of the Innocents, Cornelis Cornelisz. van Haarlem, 1590. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/SK-A-128?rts=True

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “257”][/authorbox]