Confesso que pouco conhecia do grupo Velvet Underground até perceber que os sons distorcidos de Heroin, aliados à letra que remete ao consumo da droga e uma possível overdose, remetiam a uma sonoridade já vista antes. Não o som do punk, cuja influência de Velvet é reconhecida e amplamente divulgada, mas na proximidade estética e sonora com outro movimento brutal e bastante barulhento: o industrial. Seria possível perceber as influências do grupo de Andy Warhol e do movimento da contracultura do rock, dos anos 1960 e 1970, na cena da música industrial?
O industrial, atualmente, não é um movimento conhecido por muitos, mas o que ele criou serviu de influência para a música eletrônica e até o metal. A cena do industrial iniciou-se em 1976 com a formação da gravadora inglesa “Industrial Records”, criada para divulgar a banda Throbbing Gristle. A ideia inicial era criar um projeto artístico, com performances visuais cruas e transgressivas, cujo objetivo era chocar o público acostumado à música comercial. A música seria apenas uma das formas para alcançar essa provocação e estranhamento, como é possível observar em gravações das bandas Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire e Einstürzende Neubauten. O leitor mais curioso pode checar as performances bizarras de Z.N.S de Einstürzende Neubauten, que contou com a presença de dançarinos de butô japonês, e Discipline, tocada por Throbbing Gristle.
As características presentes na música industrial estão relacionadas com o uso de sintetizadores e ferramentas (como serras e instrumentos de solda) aliado às letras provocativas (que remetem ao fetichismo, violência e sadomasoquismo) para criar um som grosseiro e mecanizado. Algumas das inspirações iniciais do movimento, sinalizadas por Simon Reynolds, no livro Rip it up and start again: Postpunk, foram Frank Zappa, John Cage, Karlheinz Stockhausen e Kraftwerk, além de poetas da geração beat como William S. Burroughs (REYNOLDS, 2005, p.225). A influência de Stockhausen, por exemplo, foi citada diversas vezes pelos grupos Cabaret Voltaire e Throbbing Gristle, que se viam como uma espécie de Stockhausen de garagem, compreendendo que o som realizado pelos grupos tinha paralelos com a música avant-garde (REED, 2013, p.13).
Em The Rock counterculture from Modernist utopianism to the development of an alternative music scene, Christophe Den Tandt analisa a visão do rock como movimento da contracultura, repleto de rebeldia e com uma produção artística que rejeitava modelos, preocupada em construir algo novo. Para o autor, o rock desejava romper com fórmulas, transfigurando a vida cotidiana; sendo que a forma utilizada para tal seria a criação de uma utopia ou, sua versão negativa, uma distopia, caracterizada pela destruição, violência e agressividade contra o sistema. Ao citar o punk e o pós-punk das décadas de 1970 e 1980 como expoentes dessa visão distópica e niilista da sociedade, Tandt se aproxima das características do movimento industrial, que traz em si elementos como a discordância com o cotidiano, um descontentamento com a sociedade expressado através da agressividade e dos temas perturbadores, como a mutilação ou sadomasoquismo.
A ideia do industrial, assim como do punk, era causar estranhamento e uma espécie de fuga da sociedade padronizada, ou seja, criar uma distopia agressiva e alternativa ao mundo. Pode-se observar essas características em exibições que buscavam causar asco no público e em shows de grupos que flertavam com a sexualidade extrema: em 1974, o músico Genesis P-Orridge do grupo Throbbing Gristle ficou fascinado com o artista Monte Cazazza e suas fotos cobertas de excremento e sangue, utilizando suas imagens em encartes do grupo. Einsturzende Neubauten admirava as obras sobre mutilação corporal de Rudolf Schwarzkogler e as usou como fonte de inspiração em suas letras (se estiver lendo esse texto enquanto faz sua refeição, não recomendo jogar no Google por imagens do artista). O artista visual Bob Flanagan, conhecido pelas performances masoquistas, foi torturado com seu consentimento para a gravação do videoclipe Happiness in Slavery da banda Nine Inch Nails (1992).
Essa estética sexualizada, beirando ao grotesco, e a sonoridade barulhenta já estavam presentes no grupo Velvet Underground. O texto The Banality of Degradation: Andy Warhol, the Velvet Underground and the Trash Aesthetic de Simon Warner trabalha com a ideia de que o propósito fundamental do grupo era usar o niilismo, a sexualização, o consumo de drogas, as modificações corporais e a agressividade como formas de expressão de transgressão cultural, quebrando com valores padronizados da época e com os códigos sociais e culturais produzidos.
A estética da banda, longe de ser polida ou profissional, com o uso de sons considerados crus e distorcidos demais, serviu de inspiração ao movimento industrial. O propósito da música industrial também era chocar através de sons crus ou barulhentos.
Uma das grandes inspirações do industrial foi Lou Reed e seu álbum Metal Machine Music, de 1975. Reed, artista que havia sido membro do grupo Velvet Underground, realizou no álbum citado um material controverso e barulhento, com uso de experimentações que fugiam da estrutura padronizada da música. O próprio álbum foi uma provocação artística à gravadora, que havia obrigado o músico a cumprir seu contrato com um novo disco.
O público que ouvia Lou Reed e Velvet Underground era muito específico, escapando da estética “paz e amor” dos artistas da década de 1960 e 1970, e mais interessados na estética de submundo sujo e agressivo. Esse elemento também foi resgatado pelo público do industrial, que não conseguia alcançar um vasto número de adeptos por fugir do padrão esperado.
Um dos aspectos mais importantes ao pensar a estética industrial e que se aproxima do que o Velvet Underground produzia é o interesse pelos reinos obscuros da mente, com a utilização de imagens de acidentes de carro, perversidade sexual e consumo de drogas, em especial da heroína. A estética destrutiva que aceita a degradação humana também foi um tema recorrente no industrial, como o próprio líder do grupo SPK, Graeme Revell, em uma entrevista de 1982, afirmou: “Muito do que fazemos é sujo e nojento, e vivemos em uma sociedade que finge ser excepcionalmente limpa.” (VALE, V.; JUNO, A., 1992, p.100). Diversas bandas da cena industrial chegaram a utilizar a heroína como forma de escape dessa suposta realidade banal: Reed cita Ministry, Nine Inch Nails, Revolting Cocks, Skinny Puppy.
Em Love in Vein, por exemplo, Skinny Puppy, simula os estágios de uma overdose de heroína. Trechos de uma letra disforme (e de difícil tradução) apresentam o desespero com o consumo do entorpecente:
Escute o som do colapso
Colapsando
A agulha é quente no braço
A garganta queima a ilusão
Dor, dor, dor
(…)
Simboliza a decadência
Decadência que esqueceu o aviso
Que esqueceu a veia que grita pelo Aviso
Coração explodindo, ataque cardíaco.
É inevitável a comparação de Love in Vein com a já citada Heroin, clássica do Velvet Underground, que traz em seus versos frases como: “Heroína, seja a minha morte; Heroína, é a minha esposa e minha vida, haha; porque uma agulha na minha veia leva ao centro da minha cabeça; E então estarei melhor que morto.”
Tanto em Velvet Underground, quanto no início do movimento industrial, assuntos obscuros como o consumo de drogas, a transgressão, a violência e o sadomasoquismo foram constantes. O que torna plausível a conclusão que o industrial é parte da contracultura do rock dos anos 1970, com uma estética provocativa e niilista, com o propósito de causar desconforto ao público acostumado com o som mais audível produzido até então.
REFERÊNCIAS
REED, Alexander. Assimilate: A critical history of Industrial Music. New York: Oxford University Press, 2013.
REYNOLDS, Simon. Rip it up and start again: Postpunk 1978-1984. London: Faber and Faber, 2005.
TANDT, C. D. The Rock Counterculture from Modernism Utopianism to the Development of an Alternative Music Scene. In: WHITELEY, Sheyla and SKLOWER, J. – Counterculture and Popular Music. England/USA, Ashgate, 2014
VALE, V. JUNO, Andrea (org.). Industrial Culture Handbook. San Francisco: Re/Search Publications, 1992.
WARNER, Simon – The banality of degradation: Andy Warhol, The Velvet Underground and the Trash Aesthetic. In: WHITELEY, Sheyla and SKLOWER, J. – Counterculture and Popular Music. England/USA, Ashgate, 2014
Créditos na imagem: Reprodução. Genesis P-Orridge of Throbbing Gristle performs in London in August 1979. Foto:David Corio/Redferns.
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Mara Lucia Ribeiro de Sousa
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