Trabalhar memória e identidade através da arte envolve diversos aspectos técnicos e de sensibilidade histórica e pessoal. Ressignificar é, por sua própria definição, atribuir novos sentidos e, na arte, isto também se liga à projeção de novas perspectivas práticas e conceituais. A seguir, apresento duas artistas que trabalham com a ressiginifição da memória de forma a contribuir para a constituição de toda uma nova cena e acessibilidades à arte brasileira: Gê Viana e Carolina Mamedes.
Gê Viana nascida e residente no Estado do Maranhão, com formação em Artes Visuais e ampla experiência com exposições, eventos e premiações. A artista vem de uma família indígena e reside na periferia de São Luís. O trabaho de Gê, realizado em sua maioria através da fotografia, fotomontagem e lambe-lambes, carrega em sua essência a denúncia de várias formas de violências impostas aos povos originários ao longo da História em terras brasileiras. A série Paridade, produzida entre os anos 2018 e 2021, apresenta fotografias de remanescentes indígenas de comunidades diferentes, sobrepostas por colagens de fotografias históricas de indígenas assassinados durante ou mesmo após colonização da América. As fotografias trazem pessoas de idades variadas, em locais e/ou funções diversas na sociedade. A conexão com as ruas, por meio dos lambes, potencializa o trabalho de Gê ao atingir um público ainda maior, além de conferir ao trabalho da artista uma dimensão de arte pública, ligando-se diretamente aos seus contextos espaciais e temporais.
A minha primeira visita ao ateliê dos Irmãos Mamedes foi repleta de boas surpresas. Portadores da Síndorme de Asperger (subcategoria do Trantorno do Espectro Autista), Ismael, Gabriel e Carolina Mamedes se encontraram e se desenvolveram na arte de forma autodidata. A ampla produção dos irmãos apresenta diferentes temáticas, estéticas e personagens; cada um produz de acordo com seus interesses e preferências com grande autonomia e também com grande conexão entre si. De acordo com os pais dos três irmãos, os quais proporcionaram carinhosa acolhida no ateliê, os artistas iniciam a produção pela manhã, param para as refeições e encerram na parte da tarde. Sempre juntos, compartilham conversas, opiniões e risadas que enchem o ambiente de alegria e descontração. Ambos também gostam de apresentar e falar às visitas sobre suas produções do dia, revelando as ideias e impressões que motivaram suas escolhas de cores, traços e personagens.
Para esta coluna, irei me aprofundar nas obras de Carolina Memedes; a artista realiza representações de mulheres – em sua maioria, negras – com vestes e adereços coloridos e bem detalhados, além de traços e expressões faciais que trazem a sensação de autonomia e poder pessoal às figuras. O traço de Carolina é suave e se apresenta com uma fluidez notável, que liga a figura feminina ao fundo. A técnica desenvolvida pelos irmãos ao longo dos anos de intensa produção tem alta precisão e um acabamento que permite que as obras não se desgastem facilmente e valorizam a escolha das cores e de cada elemento da composição. O desenho a giz de cera é uma técnica que exige prática para que alcaçe os melhores resultados, algo que os irmãos Mamedes apresentam com facilidade, como no exemplo a seguir, de autoria de Carolina:
A própria artista nos fala de suas personagens enquanto mulheres poderosas, bonitas e livres; seguida à descrição feita pela artista, sua mãe nos conta a história de como Carolina despertou interesse pela temática: em uma aula de História sobre a escravidão, Carol se questinou o por quê de as mulheres serem mostradas usando roupas rasgadas, com aparência e semblantes que só demonstravam tristeza e falta de condições para se vestirem e se cuidarem bem. A resposta dada pela mãe à filha, então, se seguiu ao firme posicionamento de Carol ao afirmar, nas palavras de sua mãe, que “as minhas mulheres vão contar uma história diferente, vão ser sempre bonitas, bem vestidas e poderosas”. A fala da artista reflete bem o siginificado da potência de se constituir um novo olhar a aspectos tidos como a única perspectiva predominante. Tendo realizado inúmras exposições e participações em eventos junto aos irmãos, Carolina se figura como uma das artistas que se dedicam a reescrever a História no presente e inspiram novas gerações.
Tanto em Gê Viana quanto em Carolina Mamedes, a memória e a identidade se encontram e formam a tessitura de novas perspectivas. A memória é algo que permeia a todas as nossas vivências e conhecimentos, e trabalhá-la artisticamente requer, antes de tudo, que haja a presença da sensibilidade e empatia. A ancestralidade é o fio condutor, guiando a arte para esta costura entre o passado em suas complexidades negativas e positivas e reacender o questionamento no presente, visando a reflexão sobre o que ainda precisa ser mudado e melhorado, rumo a uma sociedade que se reconheça enquanto potência coletiva nos mais diversos âmbitos de sua experiência no presente tempo e espaços.
Créditos na imagem: Reprodução. Da série Paridade: Hildene e homem no centro histórico de São Luís, lambe-lambe (2019) – Acervo Gê Viana. In: Gê Viana – Corpografias e performance. In: Revista Continente. Disponível em: https://revistacontinente.com.br/edicoes/239/ge-viana
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Paula de Souza Ribeiro
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