O romance contemporâneo, em linhas gerais, encontra-se numa certa bifurcação: está confinado entre o relato pessoal (narrativo e em primeira pessoa) e o entretenimento de conteúdo, que sedimenta a criação poética no vazio de significado. Um tipo arriscado de generalizar, mas que se justifica quando pensamos sobretudo em uma “demanda” mercantil: o padrão de gosto está moldado pelas relações econômicas que formam não apenas produtores, mas consumidores e “interesses” subjetivos de uma época objetiva.

A sedimentação de assuntos que redundam na banalidade lírica, ou ainda, a superficialidade narrativa de romances “autobiográficos” que têm tomado conta do mercado editorial, é um efeito claro dessas tendências padronizadoras do fazer literário. A literatura, nesse sentido, passa-se a designar uma finalidade arbitrária, como resultado de propaganda de quem escreve ou por justificação inerente à proximidade com um público precário. A ficcionalidade dá espaço, agora, a uma exacerbação mercantil como produto vendável, consumível. Assim, as qualidades estéticas propriamente ao romance se perdem por afastamentos de sua vitalidade comunicacional de mundo, de uma historicidade e de certa autonomia poética.

Mas, felizmente, nem tudo está perdido. Nesse contexto complicado aparece o escritor Lucas Lazzaretti. Ele consegue, com muito êxito, criar uma intensidade literária na qual as personagens não são, entretanto, tipologias pessoais ou uma topografia literária de nosso tempo. Temos então uma significativa complexidade de seus personagens apresentando-nos nexos extra-narrativos, mas sem que disso exija “explicações” ou descrições delas, por meio de analogias e bruscos deslocamentos externos na figuração literária.

Em “O escritor morre à beira do rio”, seu narrador-personagem está no limiar entre fornecer a confiança narrativa disposta e a desconfiança daquilo que é narrado. Noutras palavras, o narrador não é uma figura aparentemente passiva, porque ele se interpõe com certa maleabilidade do que lhe é próprio, e nisso temos algumas suspeitas desse narrador. Não é um narrador inocente ou amorfo. A suspeita começa, não casualmente, no “escritor” que vem morar no condomínio. A tonalidade de suspense prende o leitor: “O escritor estava ausente fazia dias, muitos antes do início dos dias de chuva, e sua falta de já quase uma semana começava a criar certo ar tedioso, sobretudo quando a não-presença do escritor se somou à chuva (LAZZARETTI, 2021, p. 27).

Além disso, também está longe de um jogo psicológico que dá o enlace característico dos membros do condomínio de veraneio, pois seus integrantes assumem fisionomias que vão além do comum: elas são dotadas de caracteres não resolutas, cujas marcas vão deslocando-se na intensidade narrativa de que se revelam ao longo da história. Ao longo de suas 356 páginas, o que já mostra a diferença de muitas publicações atuais, Lazzaretti se mostra que não é um autor para aqueles que estão no empenho de “leituras rápidas para leitores apressados”. Muito antes se dá o oposto. É, pois, uma “grande obra”.

A história, resumidamente, se passa num condomínio de veraneio no sul do país. Diversos personagens, residentes ou trabalhadores do condomínio e aos arredores, a partir de lastros característicos daquela região: costumes, diálogos e hábitos comunitários. O condomínio de veraneio no qual fica cheio de gente externa para curtir as férias e o ambiente pacato de uma pequena cidade. Perto desse condomínio passa um rio, que, por sua vez, está próximo de uma usina hidrelétrica. E esse rio não é um adorno poético…

No aspecto interno à obra, a narrativa se constitui de elementos compositivos a partir de objetos (fenômenos naturais ou animais) e que dão características aos seus personagens presentes. Os personagens entre si possuem relações que oscilam entre afinidades e distanciamentos. Por outro lado, o modus operandi destes personagens possuem em suas características existenciais certas desconfianças pelo “escritor”. Um exemplo, dentre tantos outros, é possível notar mais de perto. O trecho abaixo joga luz à ideia que esboçamos. Vale citá-lo na íntegra:

Na casa do escritor, antes da chuva, viam-se as luzes da sala e da cozinha acesas e de tempos em tempos se via o escritor movendo-se ou ouvia-se que algo acontecia. Com a chuva caindo tudo se apagou, nem uma única luz vinda da casa de tijolos aparentes, os movimentos se interromperam abruptamente e não se podia ouvir nada. Podia-se pensar que o escritor, possivelmente por uma característica pessoal, havia aproveitado a chuva para dormir. Mas essa escuridão e silêncio duraram quatro dias. Enquanto parecia durar a chuva, também durava a ausência do escritor (LAZZARETTI , 2021, p. 27-8).

O romance de Lazzaretti ganha fôlego, principalmente, onde em muitos acabam se perdendo: o tensionamento entre figuração do cotidiano e a individuação moderna. Aqui é possível lembrar de György Lukács. No caso, para fazer uma pequena digressão estético-filosófica, o filósofo afirma que o romance representa a forma histórica de um mundo “problemático” cuja “desagregação” da organicidade da vida é a “tendência ao épico” romanesco (dilemas, dramas, etc.).

No que diz respeito ao estilo narrativo que Lazzaretti impregna ao seu romance, ele se dá pelo empenho da linguagem dinâmica, e não por descrições fidedignas da “realidade” inventada. Por isso, no desenvolver do romance, os personagens desenvolvem-se “dentro” de uma realidade figurada, com dilemas e objetivos inerentes, e não por uma petição descritiva exterior. Na verdade, para ser mais preciso, podemos citar aqui Roland Barthes nesse aspecto: “A palavra não é um instrumento, nem um veículo: é uma estrutura, e cada vez mais nos damos conta disso; mas o escritor é o único, por definição, a perder a sua própria estrutura e a do mundo na estrutura da palavra” (BARTHES, 2013, p. 33). Lazzaretti, por sua vez, sabe bem utilizar a técnica narrativa de que dispõe a si, numa certa estrutura que se alça ao mundo composicional a partir de uma organicidade de seus personagens e na elevação dos conflitos sociais aparentes.

O que é salutar em seu romance, na sua composição ficcional, é a ampla capacidade poética de tensionar a existência humana e sua respectiva linguagem que é expressada. Na obra, a linguagem é seu elemento mais peculiar. É por ela que se desvela as camadas da existência comunitária em seus contornos psicológicos, sem cair num reducionismo subjetivista do “eu” fragmentado do contemporâneo: o narcisismo da existência narrativa. O “escritor” do romance de Lazzaretti é aquele quem é capaz de contar uma história; um narrador que observa, mas também é observado. O escritor da “casa de tijolos à vista”, por isso, é quem conta a história a partir do ponto de vista do morador do condomínio, ou, por outro lado, quem conta a história deste “escritor” é o autor do romance?

Seu torso não conhece a água, como deveria. Mas a água conhece bem todas as suas veias e artérias, e as reentrâncias dos seus órgãos e de seus nervos. A beira do rio ainda é água, mas negada, negaceada. Desde o começo esperei encontrar alguém na margem. Alguém que soubesse habitar a margem. Só quem nasceu na margem sabe ver o rio subir e descer sem nunca avançar até o leito. De uma margem até a outra, tudo o que existe é o rio (LAZZARETTI, 2021, p. 154).

De fato, escritor é quem escreve-nos um romance? Será que pode ser aquele que conta uma história? Seja como for, este sujeito noturno, com papéis avulsos às mãos vistos pelos moradores deste condomínio de veraneio, ora vagueando pela casa, ora ziguezagueando em volta de sua “casa de tijolos à vista”, é o nexo central de que nos deixa a primeira suspeita. Quem é o “escritor”? Lazaretti, aqui, dá mostras sobre o tensionamento linguístico e de causalidade narrativa (perspectiva que lhe é muito cara). Os personagens interagem entre si não apenas a partir do ponto de vista do narrador-partícipe, mas também a partir de suspeitas de quem é o “escritor” desses personagens: se está observando a tudo ou se quem é o vigiado.

De alguma maneira, o meu vislumbrar coincidia em tempo com aquele do Cotia, algo que se podia conjecturar pelo fato de que tão logo o escritor se retirava e as cortinas do meu quarto eram fechadas, o Cotia se desfazia de seu esconderijo e, como contara a Trindade, rondava a casa por um tempo, para depois voltar para o mato e para sua casa lá na cidadezinha (LAZZARETTI, 2021, p. 123).

No caso de “O escritor morre à beira do rio”, a extensão dos objetos é parte essencial da intensidade dos fatos. Explicando melhor: o efeito de suspense, quando o manuscrito é descoberto e trazido à tona, coloca em jogo um desnível de outra história, aparentemente deslocada, mas capaz de “elucidar”, sem sobrepor, a história anterior narrada. O conjunto complexo do escritor é ampliado repentinamente. O narrador é quem descobre o manuscrito. Os desníveis narrativos não é o mesmo que defeito linguístico, antes aqui, porém, é a sua grandeza. Tal é o nível de “romance policial” que agora entra em cena numa região também provinciana do Brasil, mas que ganha contornos históricos e políticos concretos a partir de uma violenta situação que envolve crimes, coronelismo político, assassinatos, etc.

Sendo assim, por tudo exposto até então, não é exagero algum, pelo contrário, afirmar que o livro de Lazzaretti não é um “livro urgente de nosso tempo”, ou para ser lido “urgentemente” por apelo. Aliás, ainda bem que assim não seja. A razão é simples e óbvia. O romance publicado em 2021 é para ser lido exatamente por não ser urgente, pois não se trata de uma autojustificação temporal por parte do autor. Em resumo, “O escritor morre à beira do rio” é daqueles livros que, na leitura, se caso existe a “pressa” para terminá-lo, é por outra necessidade, ou seja, é no que consiste o desvendar narrativo de que é interposto pelo próprio leitor. Seus personagens ganham força evocativa ao longo da história e cujo “destino” nunca está sobreposto à revelia de evoluções e dilemas internos.

Lazzaretti lança, por fim, alguns recursos poéticos que dão conteúdo à sua forma: os longos parágrafos que entrelaçam tanto o narrador-partícipe, numa espécie de narrador “não confiável”, quanto os deslocamentos sutis de foco das personagens. Até onde vai a capacidade deste escritor? Quem publica ou vive na “casa de tijolos”? Quem é o escritor que, no caso, “morre à beira do rio”? Afinal, se o estilo que imprime Lazzaretti pode assumir importante posição no romance brasileiro contemporâneo é porque, sem dúvidas, não é um “livro urgente”. Talvez seja esse o nosso problema atual: se nos faltam escritores de relativa força e grandeza, talvez a explicação se dê pela exigência. Por certo, se temos de fato um grande romance escrito por Lazzaretti, então não se trata de um breve colecionador de histórias repentinas, mas de um cauteloso narrador. Essa exigência são poucos quem consegue cumpri-la.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. 3° edição, 4° reimpressão. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LAZZARETTI, Lucas. O escritor morre à beira do rio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021.

LUKÁCS, György. O romance como epopeia burguesa. In: Arte e sociedade: escritos estéticos. Tradução e notas José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Capa do livro ”O escritor morre à beira do rio”, de Lucas Lazzaretti, 2021.

 

 

 

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