Em 1725, o então governador da capitania do Rio de Janeiro, D. Luís Vaia Monteiro, escreveu que as minas de ouro e diamantes não poderiam ser, em hipótese alguma, exploradas sem a população negra – escravizada. Essa afirmação diz respeito a uma dependência do trabalho aurífero em relação à mão de obra africana e diaspórica (FURTADO, 2020, pág. 2). Todavia, o governador não implica essa dependência aos conhecimentos que esses sujeitos tinham. Conhecimentos tradicionais transmitidos pela oralidade, de geração em geração. Ele destacava as artes mágicas, e a sorte de se ter um “mina” no ofício (FURTADO, 2020, pág. 17).

Esse silêncio, no que diz respeito aos conhecimentos mineradores dos africanos, não é puro desconhecimento dos administradores portugueses. Desde do século VIII, havia relatos de cronistas e já chegavam notícias à Europa das técnicas mineradoras africanas e da opulência aurífera de algumas regiões, como é o caso de Gana (FURTADO, 2020, pág. 7 – 9). Há razões políticas, dentro da lógica do discurso colonial, que busca projetar no africano a inferioridade e tenta reforçar que a única contribuição do africano se deu pela mão de obra, que ele não era produtor de conhecimento, e sim “escravo” (SILVA; DIAS, 2020, pág. 4 – 5).

Esse ensaio objetiva tratar das tecnologias de matriz africana, ou seja, herdadas do continente africano através da viagem negreira e da diáspora negra (SILVA; DIAS, 2020, pág. 3). A partir deste objetivo, estaremos contrapondo a perspectiva eurocêntrica de que os africanos não são agentes produtores de conhecimento (SILVA; DIAS, 2020, pág. 2). Para tal, utilizaremos dois artigos: As tecnologias derivadas da matriz africana no Brasil: um estudo exploratório (2020), de Lucas Silva e Rafael Dias; e Mulheres escravas e forras na mineração no Brasil, século XVIII (2020), de Júnia Furtado.

 

Conhecimentos africanos na mineração

Lucas Silva e Rafael Dias (2020), não exploram, unicamente, as contribuições de matrizes africanas para a mineração, mas também tratam da arquitetura, da medicina, da botânica, etc. Todavia, me prenderei aqui a apenas dois pontos, a mineração e a metalurgia. As duas principais contribuições apontadas, que foram utilizadas em larga escala nas minas coloniais, são a canoa e a bateia. No que diz respeito às canoas, elas eram estruturas longas e rasas, feitas na sua maioria de madeira (2020, pág. 5). Essas eram colocadas às margens dos rios e riachos e tinham por função desviar a água. A água que passava por esse duto levava consigo o ouro de aluvião e outras rochas, que por serem mais densas que a água, ficavam presas no couro colocado no fundo do instrumento (FURTADO, 2020, pág. 15 – 16).

Já as bateias teriam por função apurar esses sedimentos presentes nas canoas. As bateias já estão no imaginário popular quando se pensa em mineração, sendo instrumentos rasos e cônicos, que, com o movimento circular, junto à água e aos sedimentos, separavam o ouro. O material de feitura desse objeto também representava uma adição africana. Afinal, embora essa já fosse usada no mundo europeu, as utilizadas por lá eram de estanho ou ferro, e se desgastavam muito rapidamente. No Brasil, assim como em Áfricas, foram utilizadas bateias de madeira, que eram mais resistentes às mudanças de temperatura e ao contato com a água (FURTADO, 2020, pág. 15).

O ato de encontrar jazidas de ouro também representava um conhecimento apurado e refinado, destinado principalmente às mulheres. Não se tratava, todavia, de magia, ou sorte. Eram, na realidade, conhecimentos conjuntos de geologia, botânica e hidrologia (SILVA; DIAS, 2020, pág. 6). Isso ocorre porque em África, as mulheres “minas” estiveram, durante séculos, empregadas na exploração do ouro de aluvião. E a partir dessa experiência, podiam determinar lavras mais ou menos ricas. Os sinais eram vastos, desde o formato das pedras nos leitos dos rios, até a coloração da areia nas praias das margens (FURTADO, 2020, pág. 19).

O conhecimento da metalurgia também foi indispensável para a mineração. E é um consenso que a qualidade da fundição africana foi, por séculos, superior à fundição europeia. Para citar um exemplo prático, das três gerações de enxadas, para a agricultura, exportadas para o Brasil, duas vinham do Congo e apenas a última, já no contexto da revolução industrial, era da Inglaterra. Para realizar esse processo de fundição, os africanos utilizavam o cadinho, que era um tipo de vaso que resistia a altas temperaturas (SILVA; DIAS, 2020, pág. 6).

Se por um lado, os negros da Costa da Mina eram conhecidos como os detentores das técnicas mineradoras, os negros bantu eram conhecidos pela metalurgia (SILVA; DIAS, 2020, pág. 6). Mesmo com a “fama” de serem menos eficientes no trabalho e mais moles para as doenças (FURTADO, 2020, pág. 4), eles desenvolveram processos complexos de fundição envolvendo um conjunto de atividades, como: o garimpo; preparação do arenito; preparação do combustível; construção do forno de fundição; a fundição propriamente dita; o tratamento do ferro florado para a forja; e a forja dos utensílios e objetos (SILVA; DIAS, 2020, pág. 6).

Júnia Furtado (2020), também aponta algumas técnicas e métodos mineradores que foram exportados de Áfricas para o Brasil. Entre essas, podemos citar o mergulho, o carumbé e o cuyacá. O mergulho consistia na estratégia de fincar estacas de madeira no meio do rio, formando barreiras que diminuiam a força da correnteza. Assim, os mineiros conseguiam mergulhar com os carumbés e emergir com o cascalho do leito (2020, pág. 14). Os carumbés em muito se assemelhavam às bateias e o objetivo do instrumento era, de fato, muito semelhante. A principal distinção era que os carumbés eram menores, possuindo um palmo e meio de diâmetro. Esse tamanho tornava mais fácil de ser levado na cabeça, até a margem do rio, para os demais processos de apuração (2020, pág. 16).

Já o cuyacá era uma técnica tipicamente africana de lavagem dos sedimentos. Consistia em bater a terra com a mesma água enlodada e depois ir trocando a água em cada lavagem, além disso, tinham a expertise de racionar o uso do líquido quando escasso (2020, pág. 16 – 17). Evidentemente, essas não foram as únicas contribuições africanas na mineração, afinal, não eram apenas as técnicas mineiras que foram utilizadas para o sucesso da mineração nas Minas Gerais. As técnicas construtivas (SILVA; DIAS, 2020, pág. 9), agrícolas e botânicas (SILVA; DIAS, 2020, pág. 7 – 8), também foram fundamentais para a produção ativa das minas de ouro e diamante.

A partir do exposto, é visível a contribuição das populações africanas para a mineração, e, em última análise, para o sucesso da colonização portuguesa. Fica evidente o acerte de Manuel Querino, historiador negro do começo do século XX, que afirmava que o negro não precisaria ser embranquecido e civilizado, pois os negros é quem tinham civilizado o Brasil. No sentido de que, sem os conhecimentos e a sabedoria africana, o projeto colonial, do qual o Império português tanto se vangloria, teria sido um fracasso.  Da mesma forma, no período das invasões e da interiorização da metrópole, os portugueses não teriam tido sucesso sem a presença das populações indígenas, que conheciam aquele território. A empreitada da plantation e, posteriormente, da mineração, não teria sido bem sucedida sem a inteligência africana. Esse ensaio é pequeno, mas busca explorar um não dito, expressão célebre de Michel de Certeau, e demonstrar os motivos discursivos por trás desse apagamento.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1982.

FURTADO, Júnia Ferreira. Mulheres escravas e forras na mineração no Brasil, século XVIII. Revista Latinoamericana de Trabajo y Trabajadores, n. 1, p. 1-49, 2020.

QUERINO, Manuel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Afro-Ásia, n. 13, 1980.

SILVA, Lucas César Rodrigues da; DIAS, Rafael de Brito. As tecnologias derivadas da matriz africana no Brasil: um estudo exploratório. Linhas Críticas, v. 26, 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: História do Brasil: mineração no século XVIII. Notícias Concursos, 2021.

 

 

 

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