Primeiramente é preciso apontar que ao debater sobre religiosidade entre os povos indígenas, não partimos do aspecto etimológico da palavra, e isto porque a palavra “religião” vem de religare (dentre outras alternativas, como demonstra José Coutinho, em Religião e outros Conceitos”), significando a releitura ou religação com o divino. Dessa forma, os povos indígenas não precisavam se reconectar (da forma que nós, não indígenas compreendemos) com nada, afinal eles individualmente e coletivamente já estavam e eram conectados com o mundo encantado, com as formas criadoras e suas cosmogonias habitavam (e habitam) seus cotidianos, a depender de cada povo. No entanto, a partir da invasão (colonização), essas crenças foram, em grande medida, intensamente demonizadas ao longo do tempo, mas de forma desigual. Isso se deve a uma separação entre indígenas Tupis e Tapuias, em que os primeiros seriam passíveis de civilização, e por isso de catequização, e os segundos seriam irredutíveis, “bravios” e a estes só restaria a dizimação, como demonstra John Monteiro, em “Tupis, Tapuias e historiadores” (2001).
Nesse sentido, a visão sobre suas religiosidades também estariam viciadas e os invasores veriam e/ou entenderiam apenas o que suas próprias experiências permitissem que entendessem, como demonstra Tzvetan Todorov, em “A Conquista da América”. É por isso que entre os povos indígenas, falantes de línguas Tupi, os colonizadores europeus e os jesuítas(principalmente, mas não exclusivamente) conseguiram ver pessoas tementes a um Deus, pois conseguiam associar Tupã à uma entidade criadora, como observou Gonçalves de Magalhães, já no século XIX, em “Os Indígenas do Brasil perante a História”, ou mesmo nos “Sermões”, do padre Antônio Vieira. Enquanto isso, aos indígenas considerados genericamente como Tapuias, era construída uma identidade antropofágica, relacionando seus rituais sociais compartilhados (inclusive, com falantes das línguas Tupi) com uma demonização de suas cosmogonias, como sugeriu Adone Agnolin, em “O Apetite da Antropologia”, generalizando assim suas cosmologias.
Esses, obviamente, partiram de um considerável número de relatos de viajantes que tomavam a autoridade da escrita, mediante a observação. Pouco tem a ver com a relação daqueles povos com a terra e seus habitantes humanos e não-humanos, no firmamento ou no céu. A partir de vestígios arqueológicos e pela história oral, podemos ter um vislumbre do cosmos compartilhado por aqueles indígenas, como destacou Carlos Fausto, em “Os Índios antes do Brasil”. Assim, a partir da sociodiversidade existente no passado e no presente, aponta-se aqui a importância da figura feminina nas populações anteriores ao século XVI, principalmente no arquipélago de Marajó, relacionando-a à fertilidade e à terra, como mostra Anna Roosevelt em “Arqueologia Amazônica”. Essa percepção, por mais que seja ligada a um período anterior, remanesceu na relação com a terra e às territorialidades estabelecidas entre si.
Ao longo do período colonial, com as violências e obrigatoriedade de catequização, muitos povos indígenas se converteram ao cristianismo. Outros, criaram mecanismos de sobrevivência física e religiosa, construindo alternativas para suas vivências e crenças. A tradição oral, eternizada pelos cânticos (textos orais) contam e cantam os deuses criadores, os primeiros demiurgos, como escreve Pedro Cesarino, em “Quando a terra deixou de falar”, sobre os Marubo. Ao mesmo tempo que os cantos exaltam os humanos e não-humanos, animais e encantados, havia certa seleção dos sujeitos desses cosmos: enquanto certos animais eram vistos e entendidos como gente (a depender sempre do povo em questão), outros eram vistos como inferiores, como demonstra Ronaldo Vainfas, em “A Heresia dos Índios”. No livro, o autor aponta como parte dessa cosmovisão foi amplamente utilizada para associar certa mitologia cristã à uma santidade no profetismo Tupi, mais especificamente sobre a Terra sem Males. A busca dessa terra tangenciou muitos dos ritos Tupi, em uma peregrinação contínua para adentrar o mundo dos ancestrais e vivenciar o tempo eterno, como destacou Hèléne Clastres, em “Terra sem Mal: o profetismo tupi-guarani”. No entanto, durante a colonização, e mesmo no período imperial, com a invasão de suas terras, a busca pela terra sem mal adquiriu um ideal de resistência frente à Coroa portuguesa, como indicou Vainfas, em trabalho já mencionado.
Outro ponto a ser abordado é uma revisão necessária sobre o uso do conceito de “aculturação”, como indicado por Nathan Watchel, em “A Aculturação”. Isso porque o conceito foi amplamente utilizado por uma historiografia colonialista, também mobilizada pelo Estado, em diferentes ocasiões, para a negação das identidades indígenas e suas transformações ao longo do tempo. Mesmo a evangelização daqueles povos é relacionada a um suposto “abandono” de suas culturas, como demonstra José Luiz Rojas em “La historia de America”. É obvio, houve catequização forçada e violências, ao mesmo tempo que houve transformações culturais que contradizem uma imposição passiva e unilateral, como demonstram Mateus Cari e Paula Sampaio, em “Missões Jesuíticas dos Sete Povos e o Tratado de Madri”, sobre os guarani-missioneiros. Para os autores, o hibridismo construído nos Sete Povos das Missões demonstra as resistências dos povos originários, assim como as reorganizações necessárias à continuação de seus ritos e religiosidades. Um dos heróis indígenas dessa época e região, Sepé Tiaraju, está em processo de canonização desde 2018.
Essas resistências demonstram também a urgência sobre uma leitura crítica das fontes e métodos utilizados na área da história, assim como demais ciências. Isso se mostra necessário pois a própria concepção de ciência faz parte de conhecimentos diferentes das epistemologias indígenas e que, por sua vez, são duramente criticadas e vistas de forma racistas e colonialistas. A forma de viver o mundo, assim como a utilização dos ambientes que habitam dialogam diretamente com suas religiosidades e cosmogonias, como aborda Antonella Tassinari, em “Sociedades Indígenas: introdução ao tema da diversidade cultural”. Essa percepção orienta os saberes, a partir dos próprios encantados que também habitam esses espaços. A astronomia Guarani-Mbyá demonstra a presença desses seres também na forma de se locomoverem, direcionados a partir de cartografias estelares, como demonstram Omar Martins e Simone Pinto, em “Os conhecimentos Astronômicos dos Guarani Mbyá”, no Rio de Janeiro. É a astronomia que organiza os ciclos rituais desse povo, assim como o uso da terra para o plantio. A partir de Carlos Fausto, já mencionado aqui, podemos entender tais conhecimentos como ancestrais, e compartilhados ao menos pelos falantes da mesma língua.
Conhecimentos como esses circulam por um amplo território, e isto considerando também o comércio existente entre os povos originários e os não-indígenas. Tais saberes transitavam e correspondem também a saberes médicos, que salvaram em diversas ocasiões os mesmos invasores de suas terras, como demonstra amplamente Sérgio Buarque de Holanda, em “Caminhos e Fronteiras”. De acordo com o autor, esses mesmos conhecimentos foram intensamente negados no que tange sua origem indígena, pois autores clássicos na historiografia, como Von Martius, depreciavam e desacreditavam os povos indígenas. Este último, inclusive, defendia que os conhecimentos médicos, adquiridos pelos bandeirantes, provinham mais da observação do ambiente do que de qualquer outra fonte, aqui, no caso, dos povos originários.
A negação desses conhecimentos diz respeito ao que conhecemos hoje por uma abordagem epistemicida, que tentou sistematicamente branquear os saberes indígenas, camuflá-los em saberes europeus, adaptados àquelas realidades, como mostra Carla Berenice Starling de Almeida, em “Medicina Mestiça”. Salienta-se aqui que o mesmo ocorreu com os saberes africanos.
Além disso, os próprios caminhos percorridos pelas terras invadidas, diziam respeitos às trilhas indígenas, estradas abertas por entre as matas adentro, como menciona Maria Regina Celestino de Almeida, em “Os Índios na História do Brasil”. No livro, a autora comenta como os bandeirantes, durante os adentramentos dos sertões, seguiam pelos caminhos apresentados e ensinados pelos povos com quem tinham alianças. Mesmo os povos com que não tinham, acabavam sofrendo com isso, visto que tais informações eram utilizadas para os seus aprisionamentos. Assim, os aliados informavam onde e como seus próprio inimigos tradicionais poderiam ser atacados. Conflitos como a Guerra dos Emboabas e a Confederação dos Cariris, foram eventos maximamente branqueados e a atuação indígena invisibilizada na história. No entanto, a continuidade dos avanços colonizadores para o que seria Goiás e Mato Grosso (referentes ao primeiro conflito) e Bahia e Ceará (referentes ao segundo), só foi possível a partir dos conhecimentos indígenas de seus territórios, que a depender do povo analisado, conciliava com os invasores (mediante interesses próprios) ou barrava seus avanços, como demonstra Maria Idalina Pires, em “Guerra dos Bárbaros”.
Para finalizar, outro alvo de branqueamento e consequente invisibilização dos conhecimentos originários foram suas línguas. Proibidas amplamente durante o período colonial, as línguas indígenas continuaram sendo coibidas nos tempos seguintes a depender da oscilação da legislação que ora “protegia” os povos indígenas, ora os perseguia. Apesar de indígenas escreverem em suas línguas (principalmente em Tupi) e em português e espanhol, como apontou Eduardo Navarro, no “Dicionário Tupi Antigo”, o Nheengatu, língua desenvolvida a partir do tronco linguístico Tupi, foi amplamente utilizada, até o século XVIII, como mostra Cézar Coelho em “Do Sertão ao Mar” e José Ribamar Bessa Freire, em “Da Língua Geral ao Português”. Assim, as línguas originárias são exemplos de como, apesar dos inúmeros esforços de proibições, os conhecimentos indígenas permanecem e são objetivos de retomadas e valorização de seus povos.
Referências:
AGNOLIN, Adone. O Apetite da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico – alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo – SP, Associação Editorial Humanitas, 2005.
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das línguas na Amazônia. Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2003.
CARI, Mateus B; SAMPAIO, Paula F. Missões jesuíticas dos Sete Povos e o Tratado de Madri (1750): protagonismo, resistência e autodeterminação dos índios na luta pela terra. Revista Tellus, Campo Grande, MS, ano 19, n. 38. 2019.
CESARINO, Pedro. Quando a Terra deixou de falar: Cantos da mitologia Marubo. Rio de Janeiro: Editora 34, 2013.
CLASTRES, Hèléne. Terra sem mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Editora Brasiliense 1978.
COELHO, Mauro Cezar. Do Sertão para o Mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750 – 1798). Tese de doutorado defendida pela USP, 2005.
COUTINHO, José Pereira. Religião e outros conceitos Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXIV, 2012.
FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. São Paulo: Zahar Editora, 2000.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 1994.
MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Os indígenas do Brasil perante a História. Revista do
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MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Campinas – SP, Tese apresentada para o concurso de livre docência na UNICAMP, 2001.
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionário Tupi Antigo: A língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2019.
ROJAS, José Luis. La etnohistoria de America: Los indígenas, protagonistas de su historia. 2015
TASSINARI, Antonella. Sociedades Indígenas: introdução ao tema da diversidade cultural. In: Aracy Lopes da Silva; Luís Donizete Benzi Grupioni. (Org.). A Temática Indígena na Escola, 1997.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo – SP, Editora Martins Fontes, 2014.
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 1995.
WATCHEL, Nathan. A Aculturação. In.: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro – RJ, Livraria Francisco Alves Editora, 1979.
Créditos na imagem: O kumuã Manoel Dühpó Lima na janela do casarão que sedia o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus. Foto: Débora Menezes.
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