A noção de panóptico foi criada, já no último quarto do século XVIII, pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham. A sua intenção foi estabelecer um novo modo para a vigilância em prisões, mas que não deixava de trazer consigo uma preocupação econômica. Desejava-se um sistema de vigilância de baixo custo e eficiente. Foi assim que Bentham criou o panóptico. Nele havia apenas um vigilante para um grande contingente de prisioneiros. O projeto de prisão criado por Bentham era circular, havendo um observador central, ao alto de uma torre, que poderia ver todos os ambientes onde estavam os presos. Era necessária uma grande iluminação, como se tudo estive ao alcance dos olhos do vigia. Não para por aí: o seu objetivo era levar esse novo sistema de vigilância para outros lugares, tais como escolas, hospitais psiquiátricos e fábricas. O foco era, assim, a implementação de sistemas disciplinares e, consequentemente, de controle.
Panóptico de Bentham.
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Com o panóptico se criava a ilusão, a partir da sua estrutura arquitetônica, que a vigilância dos presos se exerceria de modo completo. O seu alcance era mais profundo: tornar subjetivado o estado de controle. Na verdade, os prisioneiros não sabiam se estavam, ou não, sendo observados. Esta era a ambição do vigilante: fazer com que eles incorporassem a autovigilância. Esse modelo visava toda uma forma de interferir nos modos de subjetividade das pessoas. Michel Foucault foi preciso em sua definição: não estava mais em jogo a vigilância em si, concreta, mas a criação de uma técnica de controle, isto é, a criação de uma sensação que se interiorizaria, modelando corpos e mentes, de que aquela vigilância estaria presente e, logo, em pleno curso. Por conta disso, “o essencial é que ele se saiba vigiado”, não havendo, de todo modo, a “necessidade de sê-lo efetivamente” (FOUCAULT, 2011, p. 191). Essa sensação de vigilância se interiorizava por conta de os prisioneiros acreditarem que estavam sendo monitorados.
As sociedades de panoptismo são próprias aos séculos XIX e XX. Estamos ante os modelos disciplinares, sendo as técnicas panópticas importantes para a sua perfeita consecução. Existiriam, na modernidade, ilhas disciplinares, cada qual com os seus carcereiros. Os indivíduos moviam-se por confinamentos: prisões, escolas, exércitos, hospitais psiquiátricos, fábricas, famílias nucleares. O panoptismo seria o dispositivo de poder necessário para a biopolítica, com suas tendências de estimativas, de medições e de seriações, cujo intuito era agir sobre os corpos, bem como estabelecer o “equilíbrio” populacional desejado. O panoptismo de vigilância controlada agiu ao lado das estatísticas, da demografia, da medicina sanitária, do planejamento urbano. Todos eles imbuídos de controle e repressão disciplinares. O intuito passava pelo enquadramento individual e pelo veto às multiplicidades, tornando os indivíduos dóceis e moldados.
Mas Foucault valeu-se do panoptismo como categoria de análise direcionada ao entendimento das formas de poder estabelecidas no decorrer da segunda modernidade, em que haveria uma verdadeira economia do controle e da punição. O panoptismo reforçaria o monitoramento disciplinar e biopolítico. A internalização da vigilância, e dos receios de punição, tornava essa técnica necessária para a fabricação de “indivíduos úteis” (FOUCAULT, 2011, p. 199). O panoptismo embaralhava as fronteiras entre o ver e o ser visto. Essa disposição pensada por Bentham projetou-se para a vida ordinária das pessoas, ao ponto de Foucault considerar o século XIX como o início da era do panoptismo. O alvo era a contenção comportamental. É uma face do biopoder. A sensação de vigilância resultaria em autovigilância e, também, em autopunição pelos próprios indivíduos.
Na modernidade o poder não é mais visto. Anteriormente ele se fazia visto pela existência do poder soberano. Após a descoberta do panoptismo, em escala expansiva, o poder passou a se capilarizar, dependendo de sistemas contínuos e permanentes de vigilância. O panoptismo se instou nas instituições modernas. Isso se deveu ao assinalado embaralhamento entre o ver e o ser visto. Ao não ter condições de esconderijo, as pessoas passaram a ser individualizadas: vistas, fichadas e rastreadas. As pessoas teriam os seus devidos lugares, interiorizados sob a ordem disciplinar. Houve, então, a distribuição dos indivíduos e o gerenciamento das suas funções sociais. A partir da espacialização, as formas disciplinares inclinaram a requer indivíduos, além de dóceis, produtivos. O poder tornava-se imperceptível, tendo algo de onipresença e de onipotência. O que estava em jogo era o princípio de Bentham: a internalização da vigilância, corporificada através da autodisciplina e do autocontrole, derivando, pois, na autovigilância e na autopunição.
Algumas distopias clássicas, como 1984 de George Orwell (1949), ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932), tematizaram o problema. No primeiro, encontramos uma situação na qual o Estado seria capaz de vigiar e de monitorar os comportamentos das pessoas, algo que incluía pensamentos e afetos. Foucault nos faz entender o enredo da distopia de Orwell: um exercício do poder não efetivado a partir de uma exterioridade visível, impondo-se como um constrangimento rígido, mas a partir da técnica do embotamento do ver e do ser visto. O panoptismo tornava, em 1984, funcionais as relações de poder, compreendidas como centros de transmissão e não a partir de uma localização central. Deixava-se de pensar em alvos inertes e consentidos. O poder não se aplicaria aos indivíduos, mas passaria por eles, o que levaria, portanto, corpos, gestos, discursos, comportamentos e desejos a serem assimilados a partir dos seus efeitos.
Cartaz do filme 1984: “O grande irmão está te vigiando”.
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Já em Admirável mundo novo percebemos os modos de manipulação, em um Estado autoritário, com vistas, também, ao controle, só que se direcionando para a engenharia genética e para a educação hipnopédica (durante o sono). Parece haver nessa distopia a passagem (ou a concomitância) da sociedade disciplinar, como teorizada por Foucault, para a sociedade do controle, conforme pensada por Gilles Deleuze (1992). Na sociedade disciplinar de Orwell temos a vigilância operada através da Grande Tela ou do Grande Irmão. Porém, vemos na obra de Huxley a produção massificada e uniforme da felicidade tecnológica, onde encontramos um diferente modo de controle e de vigilância, acionado não a partir de uma negatividade, mas da positividade acentuada. No livro de Huxley, as pessoas deixam, desde a infância, de ter afetos negativos. O uso da droga SOMA as deixava, por exemplo, sempre muito felizes, dado o seu efeito combinado entre álcool e religião. O Estado se valeu da droga SOMA para conformar e docilizar as pessoas. A disciplina não era de modo direta, havendo um controle mais sutil e eficiente.
Em O show de Truman (1998), dirigido por Peter Weir e estrelado por Jim Carrey, encontramos outra sinalização para os efeitos do panoptismo – mais próxima de Deleuze. O enredo é conhecido: a história de Truman Burbank, um vendedor de seguros, que desde o nascimento foi escolhido para protagonizar um reality show mundial. A sua vida, televisionada para 1,5 bilhão de pessoas, é vigiada por cerca de 5 mil câmeras, 24 horas por dia, em sua suposta cidade de origem: Seahaven. Truman representa o indivíduo controlado e vigiado por todo um sistema de panoptismo, mas dirigindo-se por meio de uma lógica já diferente. Vejamos esse contraponto a partir de Deleuze: “Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto ao outro (DELEUZE, 1992, p. 221).
Jim Carrey em O show de Truman
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Na cidade de Seahaven há a sobreposição dos espaços, não há limites rígidos, além de um tempo continuum em que as pessoas estão num estado de atualização constante e repetitiva. Há a passagem dos espaços disciplinares para o controle em aberto e continuado. O panoptismo é reinventado. Assim como nas sociedades atuais, Truman torna-se uma amostra, um dado, um potencial de mercado, que precisa ser rastreado, cartografado e transmitido para que padrões comportamentais possam ser atualizados.
É sob esse horizonte que Byung-Chul Han entrou em diálogo com Deleuze. Ele reflete sobre as formas de controle no ciberespaço, o que o fez pensar o panoptismo digital. O filósofo descreve os modos como as tecnologias digitais invocam e perpetram o controle, que se operaria por uma forma diferente de rastreamento e de monitoramento comportamental, que se daria, agora, voluntariamente. As redes sociais seriam os novos vigias da atualidade – da sociedade do controle que Deleuze previu nos anos 1990. Há, nesses ambientes, a sensação de individualização, mas que não seria outra coisa do que um modo mais eficiente de controle, não pautado pela coerção, mas pela deturpação da ideia de liberdade, transformada em libertarismo, sendo uma engrenagem neoliberal.
Foi David Lyon quem primeiro usou a expressão panóptico digital, em Vigilância depois de Snowden (2015). Han argumenta acerca do rastreamento total da vida a partir do digital. “Hoje, cada clique que damos e cada termo que pesquisamos ficam salvos. Cada passo na rede é observado e registrado. Nossa vida é completamente reproduzida na rede digital” (HAN, 2018, p. 90). Os hábitos digitais mostram-se mais exatos e precisos do que a própria imagem que temos de nós mesmos. A falsa ideia de liberdade impulsiona o registro de si. Nas redes, no movimento simultâneo de exposição/supervisão de si, carrega-se consigo um panóptico que, num só gesto, torna as pessoas guardas e prisioneiras. Se na biopolítica havia as fichas para a realização das punições disciplinares, ou a presença oculta do panoptismo benthamiano, no panóptico digital o que temos é a possibilidade da exploração do inconsciente. O Big Data torna possível a psicopolítica, tamanha a sua precisão de apreensão comportamental, alcançando a visão privada da psique das pessoas. A biopolítica não atingiria o inconsciente tal como a psicopolítica.
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A microfísica presente na prática do data-mining, de acordo com o filósofo Sul-coreano, “amplia as ações humanas e revelaria, por trás do espaço de ação estruturado pela consciência, um campo de ação estruturado de maneira inconsciente” (HAN, 2018, 94). Esse uso do Big Data implicaria, por conseguinte, a visualização de microações que escapariam à consciência. Essas operações produziriam, além disso, padrões comportamentais coletivos. Estamos ante a exploração do inconsciente coletivo digital. A psicopolítica proporcionaria, valendo-se desse panoptismo, o aproveitamento do comportamento das coletividades num nível que escaparia ao voluntário e ao consciente.
Sinaliza Han: “Nesse panóptico não se é torturado, se é tuitado e postado “(HAN, 2018, p. 60). A técnica da vigilância atual, amparada no fomento do libertarismo neoliberal, deixa de ser repressiva, mas permissiva. É gerado uma superabundância de positividade. As necessidades deixam de ser suprimidas, mas estimuladas. No âmbito da comunicação ilimitada das mídias digitais temos a exposição voluntária e a cessão de dados. Não seria necessária a extorsão através de confissões. A exposição é deliberada e livre. É ativado todo o motor psicopolítico, capacitado no rastreamento eficiente e preciso do inconsciente digital. “O Smartphone substitui a câmara de tortura. O Grande irmão tem agora um rosto amigável. A eficiência da sua vigilância está em sua amabilidade” (HAN, 2018, p. 61). A comunicação digital, onde há a possibilidade do rastreamento total, coincide com o controle. Voluntariamente as pessoas se tornam panópticos de si mesmas.
Essas questões trazem consequências políticas e econômicas bastante desafiadoras. O Big Brother transformado em big deal faz dos indivíduos dados pessoais passíveis de comercialização. As pesquisas sobre o colonialismo de dados são significativas sobre esse fenômeno do capitalismo tardio. As pessoas, diante do processo de digitalização do mundo, acabam tornando-se presas fáceis desse capitalismo, quer dizer, são percebidas como grandes pacotes de dados que podem, então, ser explorados economicamente. O que as converte, segundo Byung-Chul Han, em mercadorias. As alianças entre Big Brother e big deal são devastadoras, na medida em que fusiona o estado de monitoramento e o mercado – tornam-se uma única engrenagem.
Em termos de política, pensando nas democracias representativas, o problema é igualmente acentuado. Os candidatos passam a ter uma visão total dos eleitores – um 360º muito eficaz e preciso. Ao se comunicarem (não só politicamente) no ciberespaço, seus dados são coletados de diferentes maneiras, tornando praticável a criação de perfis de eleitorado. Se adquire, assim, a visão privada das posições políticas, isto é, se faz possível atingir o inconsciente político. A psique dos eleitores é rastreada e cartografada. O micro-targeting direciona, por exemplo, mensagens personalizadas para os eleitores, visando, então, persuadi-los. Estamos diante da prática da microfísica do poder instalada através do panoptismo digital, sendo, correlatamente, uma psicopolítica movida por dados. A democracia representativa estaria em risco, uma vez que votar e comprar, Estado e mercado, cidadão e consumidor, operariam sob a mesma lógica (HAN, 2018, 90-91).
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações (1972-1990). São Paulo: Editora 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2011.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.
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Gostei muito do texto, faz diálogos muito interessantes com questões atuais cotidianas e com as pontuadas na mídia. Uma análise e discussão necessária!
Parabéns pelo texto!! Excelente!! Nos esclarece sobre esse tema que é tão importante e atual!!