A arte de partejar

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Hoje as crianças nascem nos hospitais, cercadas de enfermeiras e médicos. Mas dantes a realidade era bem outra: nascia-se em casa, aos cuidados de uma boa parteira.

Cada parto era um batismo. A criança mal nascia e, ali mesmo na casa, já iniciavam o ritual do batizado. E claro, a parteira já virava madrinha. Por isso, onde elas iam, sempre ecoava alguma voz:

– Bença, madinha!

– Deus te abençoe, meu fio!

Era tanto serviço prestado, tanto laços afetivos construídos, que não tardava para que elas se tornassem importantes figuras nas comunidades onde viviam, atuando como lideranças e conselheiras locais.

E não havia hora para serem chamadas. Às vezes, ainda de madrugada, alguém bradava:

– Ô de casa!

E bastava alguns “ô de casas” e outro tanto de palmas para que a parteira se colocasse em pé. E, mesmo que ela botasse o rosto na porta com olhos entreabertos e sonolentos, não tardava para que sua face fosse tomada por um belo sorriso. Ela sorria por saber que era o chamado de uma parturiente, de mais uma vidinha que ensaiava saltar para o mundo. E para ela, uma criança era sempre uma alegria, uma esperança, de um mundo novo…

Ah, então, já pronta para seguir viagem, ela somente dizia:

– Vosmecê espera só um pouco. Vou pegar as ervas e meus apetrechos e já vamo.

E assim, a parteira reunia suas coisinhas – uma tesoura, um pouco de azeite doce pra passar nas mãos e uma a pinga pro fervido – e seguia ao encontro da parturiente: algumas vezes a pé, algumas vezes a cavalo e outras tantas de carroça; às vezes elas seguiam acompanhadas e outras sozinhas. Fosse noite ou dia, essas mulheres seguiram sua jornada, tomando estradas, estreitos carreiros e perigosos atalhos.

Ah, e vale acrescentar: para que o parto fosse realizado, seus maridos deveriam assumir os afazeres da casa. E eles assumiam… mas não sem antes realizarem uma série de objeções, de caras e de resmungos… mas no final, eram vencidos pela fé:

– É um dom que Deus deu a elas. Não se questiona a Deus!

Podemos dizer que a arte de partejar, além de tudo, também foi uma arte de sacudir valores, pois quando elas saíam, tudo parecia ficar de pernas para o ar: se as mulheres não podiam sair fora do lar, ainda mais a noite, as parteiras saíam. E mais, se os afazeres domésticos eram coisas de mulheres, quando as parteiras eram chamadas, seus maridos tinham que assumir a cozinha, a limpeza da casa e cuidar dos filhos… e elas, se necessário fosse, percorriam sozinhas, longas jornadas. Ah, e seguiam com bravura e atitude, caminhando pelos ventos, abaixo de raios, das tempestades e trilhando pelas velhas estradas e estreitos carreiros, enfrentando os medos das “visage”, do lobisomem, da mula-sem-cabeça, do boitatá, da caipora e do perigo real da onça e do bandido das redondezas.

Assim, essas mulheres, que ajudaram a botar um sem-número de criança ao mundo, não pariram somente crianças, outrossim, pariram novos valores, novas concepções de mundo, novas relações.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história das curandeiras por Barbara Ehrenreich e Deirdre English, Peita.me

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Jeferson do Nascimento Machado

Possuo graduação (2016) e mestrado (2019) em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. Minha pesquisa de mestrado concentrou-se na "História da Capoeira na Região de Ponta Grossa", explorando espaços de práticas e resgatando aspectos culturais significativos. Fui colunista da Revista África e Africanidades, onde abordei temas relacionados à Capoeira e, atualmente, sou professor PSS no Estado do Paraná.

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