No último dia 25 de março, o presidente do México Andrés Manuel López Obrador (AMLO) divulgou um vídeo em suas redes sociais afirmando ter enviado cartas ao rei da Espanha e ao Papa Francisco instando-os a reconhecer e pedir perdão aos povos originários “pelas violações ao que hoje conhecemos como Direitos Humanos”[1]. Junto de sua esposa, a historiadora Beatriz Gutiérrez Müller, e diante do sítio arqueológico maia de Comalcalco, o governante mexicano afirmou que a “chamada conquista” teria ocorrido através da espada e da cruz, com igrejas construídas sobre os templos indígenas.
A data e o cenário escolhidos para a publicação remetem a uma série de eventos fundamentais não apenas para a história do México, mas do continente como um todo. Naquela região, 500 anos antes, ocorreu a batalha de Centla, na qual as forças lideradas pelo espanhol Hernán Cortés entraram em conflito com os índios chontales, marcando o início do processo que, em 1521, resultaria na tomada da cidade de México-Tenochtitlan, centro do poder asteca cujas ruínas se encontram atualmente sob a capital do país.
Nas palavras do político mexicano, as cartas fazem parte de um movimento mais amplo em defesa da “memória histórica”. Esses pedidos de perdão se somariam aos dele próprio (pela repressão aos indígenas após o período colonial) e culminariam, em 2021, com a celebração da “conciliação histórica” associada ao bicentenário da independência do México, aos 700 anos de fundação da principal cidade asteca e aos 500 anos de sua conquista pelos espanhóis.
Se a estratégia de comunicação da presidência ao publicar o vídeo mirava projetar a imagem de López Obrador e pautar assuntos nos debates públicos, seu objetivo foi alcançado. Um mês depois da postagem, o tweet e o post no Facebook do presidente já somavam mais de 700.000 visualizações e dezenas de milhares de curtidas, compartilhamentos e comentários com as mais diversas reações. A carta e o pedido de perdão geraram comentários em mesas redondas televisivas e discussões em redes sociais nos dois lados do Atlântico, deixando evidente se tratar de uma questão cujo interesse não se restringe aos pesquisadores dedicados aos temas envolvendo a Conquista.
Na Espanha, a reação foi imediata. Em nota oficial, o governo rechaçou veementemente as afirmações do líder mexicano, defendendo que a chegada dos espanhóis na região não deveria ser julgada a partir de “considerações contemporâneas”. Ainda segundo o comunicado, “nossos povos irmãos sempre souberam ler nosso passado compartilhado sem raiva e com uma perspectiva construtiva, como povos livres com uma herança comum”.
Para surpresa de ninguém, esse se tornou mais um debate no qual questões históricas fomentam um enfrentamento entre direita e esquerda. Continuando com o foco nas reações espanholas, podemos citar as postagens do presidente do Partido Popular, Pablo Casado, para quem as declarações do presidente mexicano seriam fruto de uma ignorância escandalosa por parte de uma “esquerda complexada por nossa contribuição histórica”[2]. Rafael Hernando, deputado pelo mesmo partido, propôs uma interpretação sobre o período colonial segundo a qual os espanhóis teriam sido responsáveis por acabarem com o poder de tribos que assassinavam cruelmente seus vizinhos, que, como reação, teriam auxiliado os espanhóis a conquistarem e civilizarem esta terra[3]. Por outro lado, Ione Belarra, do Podemos, defendeu que López Obrador tem razão, prometendo em um eventual futuro governo comandado por seu partido um processo de “recuperação da memória democrática e colonial” dedicado às vítimas[4].
Entre historiadores espanhóis, também surgiram críticas. Carlos Martínez Shaw e Carmen Sanz Ayán, ambos professores de História Moderna ouvidos pelo El País, classificaram como “ridículo” um eventual pedido de desculpas entre Estados neste contexto: “Pedir desculpa a um chefe de Estado por atos cometidos há 500 anos e que puseram em confronto sociedades que pouco têm a ver com as nossas é extemporâneo e anacrônico”[5].
Antes de prosseguirmos com a análise deste caso específico, é importante observarmos que pedidos de perdão em relação a eventos do passado estão longe de ser algo inédito. Entre outros exemplos, podemos citar o pedido de desculpas feito pelo primeiro-ministro Tomiichi Murayama em 1995 pela atuação das forças japonesas em território chinês durante a 2ª Guerra Mundial. Em 2015, durante as cerimônias envolvendo os 100 anos do massacre armênio realizado pelo Império Otomano, descendentes dos sobreviventes pressionaram o governo alemão a reconhecer a existência de um genocídio e a pedir desculpas por seu envolvimento. O Brasil também já esteve envolto em ações do gênero. Em discurso realizado durante viagem ao Senegal em 2005, o então presidente Lula discursou: “Queria dizer ao presidente Wade e ao povo do Senegal e da África que não tenho nenhuma responsabilidade com o que aconteceu no século 18, nos séculos 16 e 17. Mas penso que é uma boa política dizer ao povo do Senegal e ao povo da África: perdão pelo que fizemos aos negros”[6].
Assim como no caso mexicano, esses pedidos geraram – e continuam gerando – diferentes reações. Ainda hoje, os debates em torno da relação do Brasil com a escravidão africana e a utilização do termo “genocídio” para se definir ao assassinato de mais de um milhão de armênios continuam suscitando reações inflamadas. Retomando o caso japonês, é interessante observamos que o atual primeiro-ministro Shinzo Abe defendeu em evento relacionado aos 70 anos da rendição japonesa na 2ª Guerra Mundial que: “Não podemos deixar que os nossos filhos, netos e próximas gerações, que não têm nada a ver com aquela guerra, fiquem predestinados a pedir desculpa”[7].
No que se refere à questão envolvendo a Conquista na região do México, o outro destinatário do pedido de perdão também reagiu. Em nota, o porta-voz do Vaticano ressaltou que o papa Francisco já havia feito referência ao tema em 2015, durante viagem a Bolívia: “Digo-lhes com pesar: foram cometidos muitos e graves pecados contra os povos originários da América em nome de Deus […] E quero dizer-lhes, quero ser muito claro, como foi são João Paulo 2°: peço humildemente perdão, não apenas pelas ofensas da própria Igreja como pelos crimes contra os povos originários durante a chamada Conquista da América”[8].
Quando observado do ponto de vista da política mexicana, o vídeo de Comalcalco nos leva a importantes considerações sobre a forma como López Obrador usa referências históricas no ambiente digital. Em primeiro lugar, devemos considerar que a publicação de vídeos nas redes do presidente faz parte de uma estratégia midiática mais ampla que conta, por exemplo, com conferências matutinas diárias disponibilizadas posteriormente em suas redes sociais no formato de podcasts nas quais López Obrador expõe e debate com a imprensa seus projetos. A preocupação com a utilização da mídia já aparecia em 2014 na declaração de princípios de seu partido (MORENA – Movimento Regeneración Nacional), que afirma a necessidade dos filiados de gerar conteúdos para combater manipulações[9].
López Obrador iniciou sua movimentada carreira política nos anos 1970 e, nos intervalos entre os cargos públicos e processos eleitorais que participou, dedicou seu tempo a publicar livros sobre a história mexicana[10]. A importância que o presidente confere à história ficou explicitada em outra gravação postada em suas redes sociais. Em vídeo publicado em março deste ano, o presidente aparece em um elevador antigo da sede da presidência na capital mexicana e, com sua característica fala pausada e tranquila, elogia em tom saudosista um livro didático mexicano da década de 1970 que mantinha em suas mãos. O presidente concluiu sua postagem afirmando que o civismo típico dos livros didáticos daquela época iria retornar[11].
Embora a simplicidade do vídeo e da fala do presidente tragam a impressão de uma produção improvisada, a gravação em Comalcalco guarda relações com o projeto político de López Obrador e demonstra como a História é central para a compreensão desse projeto. Situar-se como parte de uma linhagem de lideranças que remontam ao passado indígena visa conferir legitimidade ao ousado projeto político de AMLO. Ao se colocar diante de um monumento pré-colombiano e reivindicar o passado indígena em seu discurso, assim como quando fala em uma “quarta transformação”[12], López Obrador remete a leituras patrióticas sobre o passado mexicano que remontam ao século XIX e que continuam tendo ampla ressonância (KALIL; SILVA, 2015). Essa tradição identifica o passado indígena como locus originário da nação, de modo que os mexicanos do presente seriam herdeiros dos derrotados da Conquista – mas vencedores na Independência, Reforma e Revolução.
Historiadores mexicanos não demoraram a notar ressonâncias dessa narrativa nacionalista no vídeo de Comalcalco. Embora, assim como os colegas espanhóis, tenham apontado o anacronismo contido no pedido de perdão, autores como Alfredo Ávila ressaltaram não se tratar de algo vazio e despropositado. Para o professor do Instituto de Investigações Históricas da UNAM, o pedido de desculpas seria um gesto de boa vontade. Mais importante do que as próprias desculpas, no entanto, seria encerrar os processos de despojo vividos pelas populações indígenas ainda hoje. Ou seja, para ele, embora o simbolismo do pedido não seja descartado, o debate deveria levar em conta a questão do indígena do presente[13]. Nesse sentido, é relevante destacar que as poucas vozes associadas a grupos nativos que participaram do debate seguiram caminho semelhante. A líder indígena mexicana María de Jesús Patricio Martínez, por exemplo, criticou a atitude do presidente afirmando que o importante seria interromper os ataques às terras das comunidades nativas.
As referências aos índios do presente como parte fundamental das reflexões sobre a Conquista bem como a efervescência das discussões decorrentes do pedido mexicano, que transbordaram em muito os limites das análises acadêmicas, destacam aspectos importantes que gostaríamos de ressaltar. A despeito de algumas posturas que buscam enfatizar a distância temporal dos eventos como forma de desqualificar não só o pedido de perdão mas a própria relevância dos debates atuais em torno do tema, fica evidente a “atualidade” da Conquista. Como consequência, algumas interrogações ganham corpo: Até que ponto as críticas aos colonizadores espanhóis por parte dos mexicanos não restringem ao passado e a um elemento “externo” a violência aos povos nativos? Por sua vez, em relação à Espanha, qual seria a linha que separa a celebração de um marco do que viria a ser o auge do Império Espanhol do massacre de dezenas de milhares de indígenas em poucos anos?
Para além destas, e de várias outras questões que o tema desperta, gostaríamos de chamar a atenção para o papel dos historiadores diante dos debates que seguiram o pedido de perdão feito pelo governante mexicano. Em geral, podemos observar a ênfase dada por vários deles aos anacronismos presentes em muitas posturas e interpretações. É evidente a importância de se destacar este aspecto, presente, por exemplo, nas recorrentes associações feitas entre os eventos ocorridos na cidade asteca de México-Tenochitlan não apenas com a atual Cidade do México, mas com o país como um todo[14]. Contudo, acreditamos que os historiadores poderiam contribuir de outras maneiras, buscando estabelecer pontes entre as pesquisas acadêmicas sobre o tema e a efervescência do debate travado através de tweets, posts, likes etc. É evidente que questões como o papel dos historiadores, a importância da história pública e os usos do passado extrapolam as limitações deste texto. Dessa forma, gostaríamos de encerrar apenas citando o exemplo de um projeto de historiadores que busca uma forma alternativa de participação nesse debate.
O projeto de história pública chamada Noticonquista, encabeçado por Federico Navarrete e outros historiadores do Instituto de Investigações Históricas da UNAM, foi lançado justamente quando se desenrolava a polêmica em torno do pedido feito por López Obrador. A iniciativa, que engloba um site e contas em redes sociais, tem como objetivo acompanhar os eventos da Conquista entre 1519 e 1521 na forma de notícias nos aniversários de 500 anos de eventos importantes do processo. Os fatos relatados são acompanhados de referências a documentos e produção acadêmica e alguns deles são comentados em contas no Twitter que representam conquistadores e indígenas[15]. Uma iniciativa interessante do projeto foi a criação de um perfil de Malinche[16], que pretende ser uma voz contemporânea desenvolvida por escritoras indígenas para esta escrava nativa de origem maia que atuou como intérprete e também amante de Cortés (com quem teve um filho) e que, em certa tradição da narrativa histórica mexicana, é vista como “traidora” da pátria. Sem pretender sobrepor um discurso de autoridade às polêmicas, o projeto parte de uma visão plural da história e aproxima o público de fontes e debates da historiografia.
REFERÊNCIAS
KALIL, Luís Guilherme Assis; SILVA, Caio Pedrosa da. Patria Suave: uma análise das obras de divulgação sobre a história do México publicadas durante as comemorações do Bicentenário. História da Historiografia, v. 8, n. 17, 69-85, 2015
SANTOS, Eduardo Natalino dos. As conquistas de México-Tenochtitlan e da Nova Espanha; guerras e alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas. História Unisinos, v. 18, n. 2, 218-232, 2014.
NOTAS
[1] https://pt-br.facebook.com/lopezobrador.org.mx/ Acesso em: 09/06/2019.
[2] https://twitter.com/pablocasado_/status/1110537473153748994/video/1 Acesso em: 09/06/2019.
[3] https://twitter.com/rafa_hernando/status/1110320568006520837 Acesso em: 09/06/2019.
[4] https://twitter.com/ionebelarra/status/1110467349944111105 Acesso em: 09/06/2019.
[5] https://elpais.com/internacional/2019/03/26/mexico/1553566159_533541.html Acesso em: 09/06/2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1504200508.htm Acesso em: 10/06/2019.
[7] https://www.publico.pt/2015/08/14/mundo/noticia/japao-nao-pode-pedir-para-sempre-perdao-pela-ii-guerra-diz-shinzo-abe-1705031 Acesso em: 10/06/2019.
[8] https://www.valor.com.br/internacional/4129134/em-discurso-anticapitalista-papa-prega-mudanca-de-estruturas Acesso em: 10/06/2019.
[9] https://morena.si/wp-content/uploads/2014/12/declaracion-de-principios-de-morena1.pdf Acesso em: 06/06/2019.
[10] Em um polêmico texto publicado na revista Letras Libres, o historiador e adversário político do governo de López Obrador, Enrique Krauze, analisou as concepções de história contidas nas obras do presidente. https://www.letraslibres.com/mexico/revista/el-presidente-historiador Acesso em: 10/06/2019.
[11] https://twitter.com/lopezobrador_/status/1111683077921738755 Acesso em: 10/06/2019.
[12] A “4T” seria uma continuação das três transformações anteriores: a Independência iniciada em 1810, a Reforma Liberal que teve início em 1854 e a Revolução mexicana de 1910
[13] https://twitter.com/elpais_america/status/1111692720706215936 Acesso em: 10/06/2019.
[14] Para uma análise acadêmica recente sobre o tema que enfatiza as diferenças entre a conquista “de” México e “do” México além de traçar as características do que alguns autores denominam como “Nova história da Conquista”, Cf: SANTOS, 2014.
[15] https://www.noticonquista.unam.mx/ Acesso em: 09/06/2019.
[16] https://twitter.com/Malintzin_NC Acesso em: 09/06/2019.
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