“Antuán”

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Caracas, 21 de fevereiro de 19:

Hoje minha agenda está toda voltada para a universidade. Atualizar o meu status no seguro médico dxs professorxs da universidade (que a gente paga com parte do salário), incorporar o Ángel nele e marcar consulta no dentista; ir até a secretaria da pós de Filosofia para pegar, num pen-drive, os programas das disciplinas que eu cursei no mestrado, tirar cópias desses programas num xerox, voltar para a secretaria e entregá-los para serem introduzidos na engrenagem burocrático-administrativa da universidade; encontrar-me com uns professores amigos da Escola de Filosofia; matar saudades do relógio, da Praça Coberta, da Tierra de Nadie, da biblioteca, do contraste de luzes nos corredores, enfim…

Para poupar tempo, eu costumo cozinhar para vários dias. Dessa forma eu só preciso esquentar a comida e guardá-la nas marmitas para o almoço de cada dia, cujo cardápio vem sendo bem simples: arroz ou macarrão com feijão ou lentilha. Só que o arroz acabou ontem pela noite, logo tive que preparar mais um pouco para os nossos almoços. Tudo foi na correria, mas consegui arrumar a marmita do Aquiles antes dele ir para o colégio. Uff! Arrumei-me rapidinho, preparei minha marmita e fui embora para a universidade.

Para não me atrasar, mesmo sendo caótico, eu preferi ir pelo metrô. O metrô de Caracas, que havia sido um dos mais famosos na América Latina pelo sistema moderno, limpo e organizado, é hoje bem um reflexo do meu país. Na maioria das estações as escadas rolantes não funcionam, o chão está muito sujo, as instalações deterioradas, as catracas quebradas, vagões sem ventilação e com portas quebradas, atrasos longos, ausência de empregados na entrada…

Uns meninos descem correndo e fazendo barulho pelas escadas do metrô.

– Antuán, Antuán! – gritam na plataforma.

Mas o Antuán vai na sua, percorrendo a plataforma de lado a lado enquanto o trem chega. Eu o havia visto descer correndo as escadas quando entrei no metrô, e fiquei curiosa com seu modo de passar pelas pessoas.

Puxa! O trem chegou lotadíssimo depois de termos ficado 15 minutos esperando! As crianças voltaram a chamar Antuán e ele entrou junto delas, só que quando as portas do trem se fecharam, ele se afastou dos meninos e percorreu os vagões com total autonomia passando entre as pessoas.

Todos os passageiros saíram em desbandada dos vagões na estação Zona Rental para pegar a outra linha que vai até a Rinconada e que tem uma estação na entrada da universidade. Os meninos subiram as escadas rindo e brincando, esquecidos de Antuán, que havia saído quase de primeiro atropelando as pessoas. Ali, suando e na companhia apertada de uma multidão desanimada, tive que esperar mais ou menos uns vinte minutos, os quais aproveitei para pensar no Antuán e na reorganização das tarefas do dia.

Saí na estação literalmente correndo e arrependida de não ter vindo a pé. Só nas plataformas eu tive um atraso de 35 minutos! E mais algum tempo perdi nas longas esperas entre uma estação e outra. Bom, já era!

Por sorte, no serviço médico dxs professorxs da universidade não havia muita fila. Então eu consegui fazer todas as tarefas programadas ali, avisar para a Nowys e o Luis que ia me atrasar para o nosso encontro e chegar à secretaria da pós antes do meio-dia. Subi correndo as escadas até o quinto andar do prédio em que fica a pós da Faculdade de Humanidades. Ali estava a secretária da pós de Filosofia, que já havia preparado numa pasta os arquivos que eu precisava. Ela falou-me que se tivessem internet ela teria me enviado os arquivos para o meu e-mail, mas nem isso eles têm. Dei-lhe o pen drive para guardar os arquivos.

– Pegue aí Lívia e vai correndo para o xerox que está aqui embaixo. Vá lá rapidinho que é quase o meio-dia e a gente vai embora daqui a pouco. Agora já você entende porque não conseguimos te enviar os documentos assinados e carimbados enquanto você estava no Brasil? Aqui estamos trabalhando con las uñas.

Um pouco envergonhada pela minha incompreensão de outrora, peguei o pen drive, agradeci à secretária pela sua disposição e desci correndo as escadas. Cheguei ao xerox toda suada e quase sem fôlego. Abri a mochila para pegar a carteira onde tinha o cartão de débito… Puxa! Onde é que está a minha carteira? Pensa, pensa, Lívia… Coño de la madre! Deixei a carteira em casa! Mas, como assim que a esqueci e não reparei antes? Claro! Como não tem funcionários na entrada do metrô e as catracas não funcionam, não precisamos comprar o ticket. Todo mundo viaja de graça…

Que bosta! Pela hora não dava para ir e voltar à minha casa. Eu não poderia fazer as cópias dos programas para a secretária começar o trâmite administrativo. Já era. Perdi boa parte da viagem.

Caminhei até a Cidade Universitária para me encontrar com a Nowys e o Luis. Ah! Que benção percorrer de novo aqueles corredores e aquele chão em que caminhei, sentei, deitei, li, bati papo, cantei, chorei, beijei, bebi, fiz cartazes… Lembrei-me da vida que continham esses cantos… Viajei no tempo, sorri… Voltei meu olhar para o agora. Apenas vestígios arruinados daqueles dias. Portas destruídas, janelas quebradas, um maravilhoso jogo de luzes e sombras sem testemunhas nem movimento e um corredor e umas aulas invadidos pela solidão.

Cheguei à Direção da Escola de Filosofia e perguntei pela diretora. Aguardei. Quase de imediato, a Nowys saiu a me receber com um abraço forte e longo. Nós duas saímos da Direção e fomos buscar o Luis, que estava nos esperando na sala do departamento de História da Filosofia. Que alegria saber deles e de sua batalha para não deixar à escola cair nas trevas e na resignação e para manter animados os poucos estudantes que ainda ficam.

Em três horas conseguimos nos atualizar e nos dar ânimo, tão preciso neste momento. Despedi-me deles levando comigo um acúmulo de emoções encontradas. Caminhei até a Praça Coberta para descansar e almoçar sentada naquele cantinho maravilhoso da praça que dá para a Tierra de Nadie. Com a minha marmita nas mãos, fiquei contemplando a universidade e, nessa contemplação, as minhas lembranças entremeavam.

Um cachorro aproximou-se e compartilhei com ele a comida que ainda eu tinha. Guardei a marmita na mochila e levantei-me para ir embora para casa, desta vez a pé. Já na saída da universidade, escuto alguém me chamando. Era a Danyela! Meu Deus! Que surpresa linda! Depois de um abraço cheio de alegria, decidimos nos acompanhar no trajeto para matar saudades e falarmos das nossas vidas. Foram 45 minutos fantásticos de caminhada, batendo papo e testemunhando do tapete ocre das folhas no chão num período em que o Pacheco[1] se despede da cidade.

Perto de casa, um cachorro percorre a calçada de um lado para outro acompanhando a jornada dos artesãos.

– Antuán, Antuán!

E o cachorro vai, com o seu passo tranquilo, atendendo ao chamado.

 

 

 


NOTAS

[1] Personagem da tradição oral caraquenha que representa a chegada do frio natalino.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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