Cadê o Caracaço?

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À amizade.

 

Caracas, 27 de fevereiro de 19: Hoje se fazem trinta anos do Caracaço. Nestes meses tenho reparado o quão errado é chamar desse jeito àquela rebelião popular acontecida em 27 de Fevereiro do ano 1989. Eu acho certo, contudo, resgatar o termo Sacudón[1], que é a outra forma de nomear o que aconteceu naqueles dias no meu país.

A instabilidade e a incerteza dos últimos dias têm contribuído com o apagamento da comemoração destes 30 anos do Sacudón. Alguns grupos sociais, além de algumas organizações universitárias, de esquerda e de direitos humanos, foram oprimidas por fazerem palestras, eventos ou manifestações para lembrar e refletir sobre essa data. A conjuntura política do país concentrou os debates e as ações na urgência da nossa realidade atual. Aliás, o governo adiantou o feriado de Carnaval a partir do dia de amanhã, quarta-feira, com o propósito de descomprimir a tensão na rua; então muitas pessoas – me incluindo – tiveram que aproveitar o dia de hoje para resolver diligências burocráticas, bancárias ou do trabalho de último minuto.

Saí de casa para a universidade. Eu estou há aproximadamente três semanas tramitando uns documentos do meu mestrado e ainda hoje não estão prontos. Lá na universidade estão trabalhando con las uñas! Há meses que a internet não funciona, os professores não têm dinheiro para comprarem um marcador, as impressoras não têm tinta ou estão quebradas, e nem vou falar sobre papel! Então a gente tem que ir até a secretaria para pegar a informação e guardá-la num pen drive, ir logo depois imprimir os documentos num xerox e voltar com eles impressos para depois serem firmados e carimbados. Tudo isso num contexto muito precário e difícil: falta de luz e de água, paralizações dos funcionários, dificuldades de transporte… Bom, e eu só posso adiantar o que fica em minhas mãos.

As ruas estavam movimentadas. Só saindo de casa vi muitas pessoas levando sacolas de comida das que oferece o governo para conter a catástrofe alimentar. Grupos de pessoas iam e viam levando bandeiras, bonés e roupas com propaganda institucional do governo, quadro característico da Caracas de hoje, especialmente nos dias de manifestações políticas ou de comemorações “épicas”.

Enquanto caminhava para o metrô e via toda essa movimentação, eu pensava no Sacudón e imaginava todo esse pessoal indo para alguma concentração comemorativa convocada pelo governo. O som de Woman del Callao começou-se a escutar já na altura do urbanismo da “Misión Vivienda” que fica em Belas Artes. Uma senhora transeunte cantarolava a música, umas crianças dançavam e riam na rua… E eu só pensava na forma em que a nossa memória e as nossas lutas eram apagadas e esvaziadas de conteúdo pela cultura do espetáculo que já há uns anos vem se impondo nos eventos “políticos”.

No horizonte, a Av. México ia mostrando o seu movimento matutino. Uns policiais de moto obstruíam o trânsito dos carros, o qual me fazia inferir que em breve passaria a “manifestação comemorativa” do Sacudón. Decidi parar na entrada do metrô para dar uma olhada na avenida. Um grupo de crianças coordenadas por suas professoras – vestindo fantasias alusivas ao Carnaval – dançava no ritmo de Woman del Callao. Fiquei paralisada, meu olhar só mergulhava na minha memória, os olhos perdidos no horizonte. A tristeza e a raiva invadiram-me. Nada de comemorações, só festa e Carnaval. Nesse momento eu só pensava na Robzaida, no José Luis, na Guara, no Froilán, na Linda, no senhor Freddy… Pensava nos seus relatos, nas suas lembranças, nos seus mortos, nas suas dores e na sua luta incansável para não serem mais silenciados e ocultos e para obterem a justiça que ainda hoje não têm conseguido. Quanta indignação!

Mas eu precisava resolver as diligências na universidade, então desci na estação do metrô. Estava lotado. Havia mais atraso do que o habitual. As pessoas estavam tensas. Insultos, empurrões…Eu só respirava e esperava em atitude de ascética paciência: o meu turno para pegar o trem, os períodos de detenção do serviço entre estações, o calor, o desespero das pessoas… Impossível chegar na hora marcada. Parada e me segurando nuns corrimãos, respirei profundamente e mantive o meu olhar para baixo o trajeto todo.

Cheguei à secretaria da pós-graduação da Faculdade de Humanidades. A Romina – a que salva os estudantes da burocracia universitária – falou-me que a Diretora ainda não havia assinado os documentos. Era quase meio-dia, então eu deveria esperar até depois da hora do almoço para ter notícias dos trâmites. Puxa! Deixei o meu almoço em casa e às 14hs vou me encontrar com Carlos para entrevistá-lo. Vou ter que aguentar até o final da tarde para comer alguma coisa apôs chegar em casa. Neste período, ninguém tem dinheiro para comer na rua. Isso é simplesmente um luxo!

Lembrei-me do Adrián, um desses amigos com os que eu tenho construído irmandade filosófica, existencial e militante. Como ele é professor na UCV[2] e funcionário administrativo na UBV[3] – muito perto do prédio em que se encontra a pós –, quis aproveitar o tempinho na hora do almoço para lhe convidar para um café e termos um bom bate papo. Liguei para ele e foi até o prédio para me encontrar. Em momentos de tanta orfandade política e humana, a gente precisa destes instantes de oxigênio afetivo. Reunimos o nosso afeto num abraço forte e, com a alegria de estarmos juntos, fomos para a padaria que fica perto do prédio. Ali pedi dois “marroncitos”[4] para acompanhar a conversa.

Ali compartilhamos as nossas dores, as nossas ideias, as nossas vivências, as nossas alegrias. O Adrián falou-me do seu luto político e existencial, um luto que começou há vários anos e que ainda hoje não consegue resolver. Falou-me da necessidade de construir outra narrativa, uma narrativa do que foi forcluído, um discurso de nós. Falamos muito da tarefa teórico política que alguns amigos vêm fazendo nessa tentativa narrativa: do Jeudiel, do Keymer, das minhas crônicas como veículo para registrar o nosso acontecer. Falamos do esquecimento, da memória oculta, das vítimas do Caracaço e da sua resistência histórica. Chorei com ele. Isso fazem xs amigxs!

 

 

 


NOTAS

[1] Em português solavanco.

[2] Universidade Central da Venezuela.

[3] Universidade Bolivariana da Venezuela.

[4] É um café pequeno, mais escuro do que o café com leite.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

 

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