Então o dia 31 de março, o temido 31 de março chegou. Estranho que ao longo da minha vida eu nunca me preocupei com essa data. Quando jovem, achava que a ditadura estava mais que enterrada. Achava que a nossa república fundada aos sobressaltos em 1988 era definitivamente o selo final para a nossa mais vergonhosa época. Como historiador, achava que ela estava morta também, achava que o único tratamento a ser dado era o da justiça e da memória, para que enfim pudéssemos, como já disse Paul Ricoeur, exercer o nosso direito ao esquecimento. Estava duplamente enganado, como jovem e como Historiador, infelizmente, a única coisa que se mantém é a surdez erguida entre mim e o meu público.
Reinhart Koselleck, o mais lido entre os historiadores de nossa época, escreveu em um artigo de sua velhice, que os eventos em sua lucidez fenomênica, em seu acontecimento no mundo da vida, geram e criam conflitos e que esses conflitos vão se desencadeando ao longo da história, por vezes eles são esquecidos e confundidos com outros fenômenos, mas que de modo muito direto, são o mesmo conflito inicial. O velho historiador alemão tinha razão ao dizer que o aparecimento de conflitos é visível, mas dificilmente veremos a sua resolução. E é nele em que tenho pensado nesses dias que antecede um dia de “comemorações” por todo o país. Como quem experimenta um prato já feito, podendo opinar sobre a sensação que me ele me desperta, como manda a regra dos historiadores, atribuí um sentido de fim, final e enterro para algo que ano após ano assombrava o 31 de março como um cadáver redivivo, como uma forma cadavérica e amaldiçoada que nos empalidece somente com a menção: Ditadura. Ditadura Militar. Ditadura Civil Militar. Tal cadáver animado, veio se alimentando de cada um que caia no canto fácil do autoritarismo.
Como em 1964 muitos encontram conforto no rompimento com todos os compromissos de bem comum, com todos os compromissos diversas vezes jurados, e jurados em vão, pela república, pela constituição e pelo Estado de Direito, por todas essas coisas vitais dessa empresa vital, que foi aos poucos sendo movido para o lado tão culpado dos discursos da esquerda (por sinal, a esquerda também é culpada, de certa forma, por esse movimento de destruição das coisas vitais da democracia), aliás, tudo o que se considera corrupto foi direcionado para o campo da esquerda. Muitos preferiram o conforto de um tipo de política, a mais suja de todas, que ignora valores básicos, dentre eles a liberdade e a verdade, que fabrica e tenta impor o seu discurso ao real, muitos preferem esse tipo de mentira a aceitar a realidade sobre seu presente e sobre seu passado.
Pensando nesses termos, me sinto mais estranho ainda, como estudante e estudioso do fenômeno literário, sei que o discurso da política não é o discurso da verdade, é o discurso do convencimento, do agrado, de falar o que o público deseja, daí a atualidade de Aristóteles soa cruel, como pensar em um país que está novamente cingido em um conflito interno, moral e ético, onde de um lado as forças progressistas em desarranjo por ter perdido uma eleição não conseguem sequer se opor ao outro lado, o que dizer mais do outro lado? O lado da massa sedenta por sangue, o lado para quem o senhor presidente da república (que não faço a menor questão de referenciar em letras maiúsculas devido a minha total falta de respeito) representa uma mudança e um acontecimento bom, é com eles que me preocupo. Se Aristóteles está correto, e creio que ele sempre está, a definição do agradável para essas pessoas é a violência em múltiplas formas contra os que eles elegeram como inimigos. O que se apresenta como agradável é apenas a destruição lenta e cruel do outro que se opõe em pensamento. Essa grande massa que elegeu o presidente é definitivamente a mais ignorante de todos os tempos, mesmo mais que as senhoras histéricas que conduziram no passado a Marcha da Família com Deus pela liberdade. Eles são piores, piores pois decidiram crer em uma farsa que se renova no Brasil. Eles preferiram crer na mesma piada de mal gosto, cair no mesmo truque, aceitar a reprise malfeita (e muito mais ignorante que a original), por fim, crer na farsa que é o fato ocorrido pela segunda vez (Aqui estou parafraseando Marx, para os que não entenderam – A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa).
Antes, me permiti ser muito otimista e crer que nós, as esquerdas, éramos apenas um retrato triste do Napoleão fechando o quadrado em torno de si e marchando derrotado para longe de Waterloo, mas não, esse breve momento de romantismo foi apenas uma sensação pessoal. O que temos é um completo escândalo ante o momento mais burro, sim, burro que o Brasil escolhe passar. O momento onde os mais pobres aplaudem os carrascos, os mais frágeis amam os brutos e onde a classe média, motor da história, se deita para servir de pista ante ao desfile de militares de pijama que marcharão, na menor das possibilidades, com prazer e lascívia por cima dos que lhes estendem o carpete de seus corpos.
Quanto a mim, como já disse entre os amigos, como já disse publicamente e como já pude escrever em outras ocasiões, nunca escolhi o lado mais fácil da história. Nunca. Terei medo? Sim, pelos meus, por mim mesmo e pelos meus animais. Mas seguirei. Seguirei na mais completa resistência, na mais reta compostura figural que minha área de atuação permite. Quando isso me for tirado, seguirei resistindo nos escombros de minha situação – De preto, pobre e periférico – E mesmo quando isso se tornar um pecado, resistirei, pois sempre terei em minha cabeça os versos musicados por Paco Ibañez:
Porque vivimos a golpes porque apenas sí nos dejan decir que somos quien somos. Nuestros cantares no pueden ser sin pecado un adorno; estamos tocando el fondo, estamos tocando el fondo.
Até e obrigado pelos peixes!
Créditos na Imagem: Reprodução. NIKIFOROS, Lytras. Antigone e Polynices. Wikimedia Commons/Domínio Público: 2013. Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lytras_nikiforos_antigone_polynices.jpeg
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Maycon da Silva Tannis
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