A docência entre o cale-se e o cárcere

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Ter e ser voz são prerrogativas na definição do lugar que nós, professoras e professores, ocupamos nas sociedades. Para ser demanda coragem, diálogo e empatia. Construir o conhecimento com alunas e alunos, estar ciente das suas limitações (pessoais, escolares, acadêmicas), estar aberto à escuta, ao acolhimento, a ser gerador de expectativas e transformações concretas em vidas. Para ter, em nosso país, precisamos – em ato contínuo – resistir.

Pouco tempo após 1822, surgiram propostas delimitativas sobre o ensino de História, marcadas pelo projeto de formação nacional e, consequentemente, de exaltação do império. Em 1826, Januário da Cunha Barbosa, que participava da primeira Assembleia Geral como deputado por Minas Gerais, lançou seu projeto para o ensino de História, que estipulava diretivas claras quanto ao conteúdo fornecido pelo professor ser voltado a “uma história civil e cronológica, depois de dar uma noção das ideias morais e religiosas dos povos antigos e de expor os diversos modos porque marcavam e exprimiam a ordem sucessiva dos tempos” (BRASIL, 1826, p.152 Apud BITTENCOURT, 2018). Nesse mesmo período estavam sendo discutidas as disposições das salas de aulas, de forma a evitar distrações e direcionar a relação hierárquica entre docente e discentes. Esta normatização dos corpos e do ensino foi ainda orientada pelo professor e um dos membros fundadores do IHGB, Joaquim Manuel Macedo, desde a postura ereta até as “exigências da decoreba por parte de seus alunos, mas sempre utilizando-se da história para legitimar um modelo político” (PERES; SCHIRMER; RITTER, 2015, p. 200).

O fato é que essa normatização implicava toda a estrutura de um projeto de nação, a ser firmado pela história que unifica e pela expectativa de alinhamento do Brasil aos moldes civilizacionais das sociedades europeias. Algo que trazia intrinsecamente a ideia de legitimação política do Estado recém independente. Acredito que a ideia de legitimação política que, particularmente, precisa ser colocada em foco.

Se pensarmos na história da república, as grandes transformações na educação foram realizadas por regimes autoritários. Durante a ditadura varguista, a reforma no ensino protagonizada por Francisco Sales e Gustavo Capanema era orientada pela defesa (e propagação) do sentimento nacional-patriótico no ensino de História, mas também pelo silenciamento daquilo que era considerado seu oposto: os ideais e experiências de internacionalismo promovidas pelas revoluções socialistas contemporâneas. Após o golpe de 1964, a proposta de reforma universitária mobilizada pelos movimentos estudantil e encampada pelo governo João Goulart nos anos anteriores, foi incorporada de forma deturpada pelas autoridades da ditadura. Entre 1966 e 1967, foram editados os decretos que reorganizariam as universidades brasileiras, no bojo da “modernização autoritária”. No campo das ciências sociais, essas reformas seriam enquadradas nas práticas repressivas, pois “entre pessoas de formação conservadora, eram comuns os preconceitos contra essa área, tida por muitos como ‘coisa de comunista’” (MOTTA, 2014). Expurgos de professoras e professores, perseguição a estudantes e vigilância contínua nas salas de aula eram mais acentuadas nesse campo, devido à aproximação da intelectualidade com ideias socialistas e comunistas.

Era especialmente nesse ambiente universitário que os militares acreditavam pulular o que, caricatamente, o general Ferdinando de Carvalho caracterizou como “homens cor-de-rosa”, auxiliares do comunismo internacional escondidos nas principais instituições da sociedade. Nas universidades, seriam encontrados os “criptocomunistas” e os “inocentes úteis”, especialmente. Os primeiros, identificados na carreira docente, seriam militantes comunistas ocultos, que se utilizavam dos seus cargos para manipular e arregimentar estudantes, além de dificultarem a repressão ao comunismo nas universidades. Os “inocentes úteis” eram seus alvos fáceis ou, nas palavras de Carvalho, “indivíduos que se presta[va]m às manipulações dos comunistas por ingenuidade, vaidade, desconhecimento ou incoerência” (CARVALHO, 1978, p. 74).

Quando da escrita desse livro (manual) no final da década de 1970 um dispositivo[1] já estava mais do que bem estabelecido no Brasil. O dispositivo da ameaça comunista é algo que tenho considerado como posterior ao surgimento do “imaginário do perigo vermelho”, tão bem analisado por Rodrigo Patto Sá Motta nos últimos anos. Parece-me que, a instabilidade, a dissonância pública e as cisões dentro do Partido Comunista do Brasil (PCB) causadas pelo relatório Khruschev foram decisivas para a exploração de possíveis falhas, desorientações e embates pelo movimento anticomunista. O que foi acentuado na década de 1960 e, em especial, após o golpe de 1964, pois

 

a execução da Doutrina de Segurança Nacional e a extensão dos braços da repressão gestaram uma realidade alternativa. Nessa realidade, o combate à ameaça comunista passou a ser acionado como prática sistemática de regulação política e social. Não mais importava se o perigo existia ou não, ele foi codificado em fato histórico. A força da sua inscrição nas relações sociais e políticas brasileiras configurou a ameaça comunista como uma engrenagem automática dos conflitos e ressentimentos, que vem sendo obstinadamente requerida da ditadura à democracia, ainda que com peso diferente (SILVA, 2020, p. 24).

 

Dispositivo que não deixou de atuar após a mudança de regime político. Pelo contrário, o projeto de reconciliação nacional sustentado pela Lei de Anistia nada mais foi do que uma reafirmação dele. Começava por excluir os “terroristas” (condenados pela justiça de exceção) do âmbito da lei, autoanistiar torturadores, fechar aquele passado considerado “conflituoso” e terminava por dar continuidade aos crimes dos agentes da ditadura, seja pela obstrução de informações e inexistência de corpos ou pela manutenção de estruturas de violência do Estado na democracia e pela ausência de justiça.

Na contemporaneidade, temos enfrentado no Brasil – de forma ainda mais acentuada nos últimos quatro anos – dois empreendimentos, que se intercalam e até mesmo se dissipam um no outro, em alguns espaços: um processo de legitimação política, de cunho conservador e reacionário e um momento em que o pêndulo da ameaça ideológica de esquerda (que na maioria das vezes se equivale a comunista) está em sua oscilação mais alta.

Ainda que seja um movimento mais antigo, pelo menos desde 2014 há uma decisão política clara em restringir e penalizar a atuação docente no país, na defesa do projeto “Escola sem Partido”[2]. Como bem vem salientando Fernando Penna em suas escritas e falas, trata-se de um projeto “antipolítico e antidemocrático”, por encerrar o debate através de argumentos de autoridade e enquadrar os opositores do projeto como inimigos, adeptos do “marxismo cultural” e, portanto, excluídos da discussão (PENNA, 2018).

Representar os que se opõe a um movimento que chega a comparar professoras e professores com estupradores e significa, na prática, restrição, vigilância, opressão, punição e até mesmo autocensura à atividade docente – diante da representação de docentes como membros infiltrados da esquerda internacional – é obviamente algo que recorre à inscrição forte do medo comunista. E, às vezes, quando nos deparamos com documentos e discursos do tipo até parece que entramos em uma máquina do tempo e descemos nos anos 1960, em plena gravação de The Invaders[3], prontos para sermos os alienígenas (que equivaliam aos comunistas) ou encará-los como os destruidores da humanidade.

O que tem significado, na prática, é o que Fernando Penna salientou em recente entrevista a Caetano Veloso, como o empobrecimento do espaço da escola como local de construção do conhecimento, seja pela autocensura da/do docente sobre os temas a serem trabalhados – pelo medo de rechaçamentos, de demissões ou de exposição nas mídias – e pela cultura da vigilância constante, estampada nas orientações sobre como “flagrar um doutrinador”[4]. Ao fim, o projeto de “Escola sem Partido” é uma muralha ao trabalho livre, científico e ético do ter e ser voz.

Foi dentro deste contexto, e da instalação do processo do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que o deputado federal Eduardo Bolsonaro apresentou seu primeiro projeto de lei para criminalizar o que chama de “apologia ao comunismo”. Estava em alta a relação que equivalia anticomunismo e antipetismo, em um manuseio ardiloso do dispositivo, fácil de ser conduzido pelos símbolos próximos ou apenas por se tratar da ideia rudimentar do que seria a esquerda política. Para completar, a presidenta é encarada como grande estereótipo desse “mal”, devido à sua participação de resistência à ditadura militar. Cabe que, naquele momento, a principal revisão das leis sugeridas (Lei nº 7.716/1989 e Lei nº 13.260/2016) visava à inclusão de ações de “fomento ou embate de classes sociais” como ato de terrorismo e prever punições para as mesmas. Na justificativa do projeto, a premissa principal era que os “meios acadêmicos, jornalísticos, sindicais, políticos e artísticos” foram apropriados por comunistas, que usavam da “mentira para iludir e manipular a boa-fé de inocentes úteis ao seu projeto de poder”.

Na proposta de lei estava especificamente citado o ensino de história como tomado por doutrinadores, professores entre aspas: “Quantos jovens já não se encantaram pelo discurso apaixonado do “professor” de história e entregaram seu vigor engajando-se na defesa de uma sociedade mais justa?” (BRASIL, 2016). Há muito mais nesse projeto[5], desde incoerência da proposição diante das matérias de que tratam as citadas leis à “revisionismos apologéticos” (MELO, 2014; BAUER, 2018) e negacionismos do nosso passado recente, mas essa conversa ficará para outra hora.

No último mês foram divulgadas várias matérias na imprensa sobre o novo projeto de lei para criminalizar a apologia ao comunismo (e ao nazismo, que já é criminalizado pela Lei de Segurança Nacional, mesmo que seja identificada sua forma inconsistente por juristas) proposto pelo mesmo deputado. Quais são as leis que esse projeto pretende alterar? A Lei nº 7.170/1983 (a citada como Lei de Segurança Nacional) e a Lei nº 9.394/1996, sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Além da eliminação de símbolos (desde a foice e o martelo, até a estrela pentagonal – símbolo do Partido dos Trabalhadores), propõe-se a extinção de qualquer traço de pessoa ou evento ligado ao comunismo (que aqui, minha amiga, pode ser enquadrada qualquer coisa que se entenda como progressista). Monumentos, homenagens, datas e comemorações que tenham traços comunistas seriam proibidos. A pena por descumprimento da lei é determinada de 9 a 15 anos de reclusão. Mas, caso a “propaganda” for feita em “escolas, universidades, local de trabalho ou por meio de rádio e televisão” essa pena poderá ser aumentada em um terço (BRASIL, 2020).

O que está no cerne desse projeto é uma proposta clara de legitimação política pautada no dispositivo. E onde a criminalização do nazismo entra nisso? É preciso ressaltar que o próprio conceito de nazismo vem secundarizado na justificativa da proposição de lei, sendo acentuada a presença de seu homônimo “nacional-socialista”. O que me parece ser (de forma muito clara, ainda que indireta) uma reafirmação dos discursos sobre o nazismo ser um movimento de esquerda. Algo que o pai do deputado e presidente da República diz não ter dúvida nenhuma. Não há fôlego para trazermos esse debate para essas linhas, mas é preciso salientar que não, nazismo não foi um movimento de esquerda, enquadrava como seus grandes inimigos comunistas e socialistas e se colocava como uma terceira via (também se opondo as ideias liberais) na Alemanha.

Ainda que o silenciamento se estenda a todas as estruturas sociais, há – como nas outras propostas aqui elencadas – um enredo específico articulado em torno da prática docente e do cerceamento do conhecimento histórico. Há a expressão do constructo do marxismo cultural como dominador das universidades, o que é tão defendido no Brasil por Olavo de Carvalho, inclusive uma das “referências” do projeto de lei. Se tornar-se lei restará a nós, educadoras e educadores da história, os caminhos do cale-se ou do cárcere. Ter e ser voz não será mais uma opção!

 

 

 


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. In: O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2005, p. 27-51.

BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história publica frente ao revisionismo histórico? in: BORGES, Viviane; MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo. Qual história pública queremos? What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz, 2018. p. 195-203.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Reflexões sobre o ensino de História. Estudos Avançados, v. 32, p. 127-149, 2018.

BRASIL. Câmara de Deputados. Projeto de Lei nº 7180/2014. Altera o art. 3º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606722. Acesso em 19 out 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 5358/2016. Altera a redação da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 e da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016, para criminalizar a apologia ao comunismo. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2085411. Acesso em 19 out 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4425/2020. Altera a redação da Lei nº 7.170, de 14 de Dezembro de 1983 e da Lei nº Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, criminalizando a apologia ao nazismo e comunismo, e dá outras providências. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2261904. Acesso em 19 out 2020.

CARVALHO, Ferdinando de. Os sete matizes do rosa. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1978.

MELO, Demian B. (org.) A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

PENNA, Fernando de Araújo. O discurso reacionário de defesa do projeto “Escola sem Partido”: analisando o caráter antipolítico e antidemocrático. Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 3, p. 567-581, dez. 2018.

PERES, Marilen Fagundes; SCHIRMER, J.; RITTER, T. S. O ensino de História no Brasil, suas funções e implicações políticas e sociais – Séc. XIX até a atualidade. Revista do Lhiste, v. 2, p. 193-209, 2015.

SILVA, Camilla Cristina. Paradoxos dos direitos humanos no Brasil [manuscrito]: da ditadura militar à democracia (1964-2019). Tese (Doutorado em história) – PPGHIS/UFOP, 2020.

 

 

 


NOTAS

[1] Dispositivo pode ser considerada “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2005, p. 13).

[2] O Projeto de Lei que solicita a inclusão nas diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido” foi proposto em 2015, pelo deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB/DF). No entanto, foi apensado (assim como outros projetos de mesmo teor ou de oposição) ao projeto de lei nº 7180/2014, que dispõe sobre a inclusão “entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” (BRASIL, 2014).

[3] Série norte-americana dos anos 1967 e 1968, criada por Larry Cohen. No contexto de Guerra Fria, a personagem principal, David Vicent, enfrentava uma invasão de alienígenas que, ao chegarem na Terra, conseguiam se transvestir de humanos. Como uma metáfora dos conflitos daqueles anos, essa invasão ao mundo ocidental pode ser interpretada pelo medo da ascensão e domínio pelos comunistas, que podiam ser qualquer um, o mal travestido de “gente normal”.

[4] A entrevista completa está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eRlebXDyhkA . Acesso em 18 out 2020.

[5] A última atualização que consta para o projeto no site da Câmara dos Deputados é de estar aguardando parecer do relator da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

 

 

 


Créditos na imagem: A Morte no Sábado – Homenagem a Vladimir Herzog. Antônio Henrique Amaral, 1975. Pintura In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 19 de Out. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

 

 

 

SOBRE A AUTOR

Camilla Cristina Silva

Doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professora no curso de História da UniProjeção/DF e da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Coordenadora do Publiciza História, página de divulgação de conhecimento histórico do passado recente.

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