Vida

Final da tarde e um filhotinho de beija flor pousou perto de mim. Peguei na mão e vi que estava sôfrego. Peguei não sem medo, apesar da descomunal diferença entre nós, em tamanho e força. Não a força da beleza, mas a força mesmo, força relacionada a massa, peso e dinâmica dos corpos, força elaborada nas três leis de Newton. Ao superar o meu medo desproposital diante de uma criatura tão frágil resolvi que deveria pegar-sem-pegar, tamanhinho do corpo. Pegar como se eu oferece um espaço de proteção e pudesse encaixar na concha das mãos.

Fui até fora da casa, no terraço, tentando oferecer a possibilidade de voo. Parado estava, parado ficou. Sua respiração acelerada, mas nem tanto quando parece ser quando voa e colhe néctares.  Asas sem ação.

Oferto água, néctar oficial, alguma coisa que pudesse renovar a vida. O néctar da vida, a água, o amor, a promessa. Parece que provou. Não sei. Às vezes a sede se sacia de modos tão diversos que o óbvio parece não ser mais suficiente. Às vezes parece que precisamos de mais que água, mais que mel.

Procurei um espaço mais parecido com natureza, uma caixa de vime. Tombava. Parece que tomou água e um dos olhos fechou. Morrendo, será? Morreu? Mais não.

Achei um ninho (eu guardo ninhos, como as bizarras coleções de Neruda por besouros e insetos). Mas dessa vez, não por coleção, pela primeira vez aquela arquitetura parecia ter utilidade prática. Guardo essas palhas em formas de cone, arquiteturas  não sei o porquê. E dessa vez achei que poderia ser uma forma de aconchego, se morrendo estava o passarinho. Ficou no ninho, encaixado, mas parecia mesmo que o inevitável estava para acontecer. Aconcheguei no peito, encaixado no ninho. Pensei em como eu gostaria de estar se tivesse morrendo. Pouco piava. Mas ainda piava, fraco, como vida esvaziando aos poucos de dentro do minúsculo corpinho.

O som inicialmente me pareceu que era piado de dentro, do passarinho, do ninho, mas é piado de fora, de outros, do quintal. Será sua mãe? E da mãe que se lembra na hora da morte? Qual é a última fagulha de lembrança que nos chega antes do último suspiro?

Acomodei o micro passarinho, de corpo frágil e penas coloridas como um pavaozinho de modo que nem sequer o segurava, e no ninho deixei, recostado aos livros. Ainda com respiração, seguiu ritmado. Segue. Não posso deixar lá fora perante o risco de ser tragado pelos gatos. Não posso acelerar o momento: as coisas acontecem quando tem que acontecer. É natureza. Não posso nada e nada faço. Ofereço o ninho, tão somente isso e mais nada, o ninho e a segurança da minha biblioteca, o ninho e minha dor. O ninho e minha frustração de não poder ser mais. O ninho e minha incompetência.

Ainda respira, até quando? Os meninos naturalizam, dizem que dá vontade de chorar. Vai morrer? Perguntam…e eu não sei. Não sei o tanto de ar que ainda vai colocar nos pulmões, enquanto coloca, ainda vive. Enquanto respira, quer a vida. Mas a vida lhe escapa, é transitória, é fugidia. O que não é mais é morte.

Ainda respira, uma agonia! Terá sido a melhor decisão o ninho oferecido? Não poderei ver a agonia inevitável de um ser que espera a morte. Decidi! Retirei os olhos dele. Deixei-o sozinho na sua sofreguidão. Pouco tempo, voltei. Voou. Tinha vida.

Não se pode duvidar de nada enquanto ainda respira.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://vidanimal.com.br/beija-flor/

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva

Professora Associada da Universidade Federal de Goiás onde exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão. Coordena o VEREDAS, grupo de estudos, pesquisa e extensão, vinculado ao LAGICRIARTE - Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte.

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