A esquerda contra o desenvolvimento

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Na sede de um grupo de ativistas de esquerda nos Estados Unidos há um cartaz que propõe um slogan alternativo ao da campanha do ex-presidente Donald Trump; subvertendo o Make America Great Again, a frase proclama: Make America An Endless Expanse Of Old-Growth Forest With No Certain Borders Again, que em tradução livre diz algo como “Façamos da América, novamente, uma extensão sem fim de velhas florestas, sem fronteiras definidas”. Aqui se expressa, portanto, uma espécie de utopia primitivista, que se pretende moral e ambientalmente superior à civilização industrial, e que tem como ideal, em seu horizonte de expectativas, a desconstrução desta civilização, até ao ponto em que estejamos efetivamente restaurando o Novo Mundo, tal como teria sido encontrado pelos invasores europeus de cinco séculos atrás.

Enquanto utopia, esta aversão às realizações do mundo moderno e contemporâneo é historicamente muito recente. Como diz o historiador William Cronon, “a natureza selvagem foi outrora [considerada] a antítese de tudo que era bom e ordeiro”, mas, hoje, depois de um acúmulo significativo de conhecimento científico sobre os atributos e a história natural do planeta que habitamos, tornou-se possível adotar essa visão romântica da “natureza selvagem”. Neste texto, publicado ainda em 1995, e agora disponibilizado em seu site,[1] Cronon é peremptório: “não há nada de natural no conceito de natureza”. Ao contrário, a ideia que fazemos da natureza, do selvagem etc., são elaborações possíveis, a partir de nosso universo cultural, humano. Após ilustrar com alguns exemplos o surgimento das visões idealistas da natureza nos Estados Unidos dos séculos XVIII e XIX, Cronon conclui: “Não importa em que ângulo observemos, a [ideia de uma] natureza selvagem nos oferece a ilusão de que podemos escapar dos problemas do mundo no qual nosso passado nos enredou”.

Essa ilusão, segundo a qual seria possível superar nossos problemas civilizacionais a partir do retorno a um imaginado estado de natureza, tem sido amplamente publicizada e ganhado adesão por parte de um certo ativismo de esquerda, não só nos países desenvolvidos, mas, também, em países subdesenvolvidos, cujas classes médias creem viver em um mundo algo harmoniosamente globalizado, e que, portanto, seus problemas seriam análogos aos problemas enfrentados no Primeiro Mundo. Nesta visão dualista, a natureza — idealizada — e a humanidade — depreciada — são colocadas em polos opostos, e assim, segundo Cronon, “Nós nos deixamos poucas esperanças de descobrir qual realmente poderia ser o lugar mais ético, sustentável e digno, da humanidade na natureza”.

A atual idealização de um mundo natural primitivo, observada entre setores progressistas e de esquerda, é um desdobramento lógico do abandono, por parte destes mesmos setores, da ideia de Desenvolvimento. Neste texto, procuro argumentar que apesar de tal visão de mundo primitivista ser considerada como inerentemente universal — por isso a ampla adesão entre ativistas sediados tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos — nós, do Terceiro Mundo, somos profundamente prejudicados por este tipo de campanha perene pela superação da ideia de Desenvolvimento. A ingenuidade de um militante norte-americano, ou europeu, que sonha com florestas sem fim e com um mundo sem fronteiras, na melhor das hipóteses pode ser justamente apenas isso: ingenuidade. Mas em nossa América Latina, o primitivismo, enquanto afirma querer salvar o mundo de um colapso ambiental, pode acabar contribuindo para que apenas seja salvo o Primeiro Mundo, em detrimento do Terceiro, do qual fazemos parte.

Recorrendo mais uma vez ao texto de Cronon, já que ele também se dirige a essa nada desprezível diferença entre os terrenos onde floresce uma ideologia, concordamos plenamente com o autor, quando ele afirma:

O Terceiro Mundo enfrenta enormes problemas ambientais e profundos conflitos sociais, mas eles provavelmente não serão solucionados por um mito cultural que nos encoraja a “preservar” paisagens despovoadas, que por milênios já não existem nestes lugares. Na pior das hipóteses, como alguns ambientalistas estão começando a se dar conta, exportar a noção norte-americana de uma natureza selvagem, dessa maneira, pode se tornar uma forma irrefletida e derrotista de imperialismo cultural.

Aliás, o exemplo trazido por Cronon a respeito se refere a um ecossistema marcadamente latino-americano e brasileiro, quando é observado por ele que “proteger a floresta tropical, aos olhos dos ambientalistas do Primeiro Mundo, frequentemente significa protegê-la das pessoas que vivem lá [i.e. no Terceiro Mundo]”. Meu ponto, portanto, ao tentar trazer para o Brasil a crítica ao primitivismo e ao ativismo idealista das classes médias é, conforme já foi adiantado, o de apontar para o fato de que a obstrução ao debate mais amplo e consequente sobre qual deve ser o caráter do nosso Desenvolvimento é algo que vai contra o interesse popular e nacional, em um país que exporta milhões de toneladas de gêneros alimentícios, mas que tem enormes contingentes populacionais sofrendo com algum tipo de insegurança alimentar.

Convém observar ainda que, no caso brasileiro, o primitivismo se baseia em uma visão altamente idealizada dos povos indígenas, tidos como totalmente integrados, de maneira harmoniosa, à natureza, de tal modo que sequer transformavam-na ou nela interviam, vivendo idilicamente, quase como no Jardim do Éden. A referência bíblica não é casual. Os nossos ativistas por certo não se conformariam com este paralelo, mas essa sua visão idealizada guarda muito em comum com a imagem que os jesuítas catequizadores, dos séculos XVI ao XVIII, faziam dos povos nativos do Novo Mundo, com a sutil diferença de que, para os jesuítas, os principais atributos do indígena consistiriam em sua ingenuidade, sua pureza moral, e para o ativista contemporâneo, em sua harmonia com o mundo natural. Aqui cabe, então, ainda mais um questionamento feito por Cronon: “Por que, nos debates sobre áreas naturais preservadas, os povos ‘primitivos’ são idealizados, e até sentimentalizados, [apenas] até o momento em que eles fazem algo não primitivo, moderno, não natural, e assim perdem o encanto ambiental?”

O que pretendo salientar com tais provocações é o risco que se corre de trair às próprias convicções ao aderir a semelhantes imagens idealizadas; em parte, o destino trágico que tiveram os povos nativos do Brasil se explica, justamente, em função dessa representação que deles foi e é feita, como se fossem seres que vivem – ou, viviam – em um tempo natural, e não no nosso tempo histórico, humano. Se os jesuítas pretenderam retirá-los deste imaginado tempo natural para incluí-los no tempo histórico civilizacional cristão, os ativistas de hoje pretendem, ao contrário, mantê-los confinados ao tempo natural, garantindo-lhes apenas uma espécie de dignidade fossilizada. As intenções, portanto, são opostas, mas a idealização é a mesma.

A dignidade indígena deve ser cultivada entre nós a partir do reconhecimento da complexidade de sua História, enquanto povos que, como todos os outros, além de terem criado imaginários próprios, estabeleceram relações entre si, que envolviam a firmação de alianças, a demarcação de fronteiras, os acordos sobre os termos da guerra e da paz. Além disso, cultivaram e moldaram, com grande inventividade, o ambiente em que viviam. Como nos ensina Darcy Ribeiro, falando sobre os povos Tupi, da costa brasileira:

Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus machados de pedra e limpando o terreno com queimadas. A agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma grande variedade de matérias-primas, condimentos, venenos e estimulantes (1995, p. 32, grifo meu).

A enorme heterogeneidade etnológica e a riqueza da vida material e simbólica no continente americano costuma ser obscurecida pelos simpatizantes do primitivismo em função de uma visão essencialista e biologizante daquelas populações ameríndias, como se elas possuíssem um gene de ligação à natureza, que nós, os outros, teríamos perdido em algum momento. Não será, portanto, uma forma de menosprezar a história e as realizações destes povos, o tratamento paternalista e homogeneizador a eles reservado por parte significativa das esquerdas?[2]

Mas o grande drama que os aflige neste século XXI, no entanto, é sem dúvida o mesmo das maiorias que compõem o povo brasileiro – o de viverem em um país que caminha para completar uma década perdida, e cujas aspirações vão se expressando com cada vez mais modéstia e limitação. O Brasil, tantas vezes representado como um país de pujança e generosidade, tem hoje estampadas nos jornais matérias do tipo “Quando é seguro comer pão, queijo e outros alimentos mofados”,[3] “Dá pra salvar alimentos infestados de caruncho? Faz mal comer o inseto?”[4] e “Governo avalia flexibilizar validade de alimentos em aceno a supermercados”,[5] o que revela uma gradual normalização da escassez e da miséria, que convive em harmonia com o ambientalismo importado do Primeiro Mundo. A nossa carestia, cada vez mais generalizada, ganha contornos ambientalmente corretos, enquanto é mantido na obscuridade o fato de que escoa justamente para o Primeiro Mundo a diferença no preço que estamos pagando, por exemplo, pelo óleo de soja – aqui produzido! – que até há pouco tempo nos custava em torno de R$ 3,00, e hoje sai pelo triplo.

A normalização da pobreza é um fenômeno que só pode ocorrer no contexto em que a ideia de Desenvolvimento perdeu a dinâmica e a força mobilizadora que já teve especialmente em países como o nosso. O ambientalismo primeiromundista exerce sua influência no sentido de que aqui o arcabouço desenvolvimentista não retorne ao vocabulário de nossa agenda comum, e em grande medida, é em função disso que a erradicação da pobreza é um tema cada vez mais tido como obsoleto entre a opinião pública. Tanto é assim que figuras progressistas, em geral, mal possuem repertório para abordar questões econômicas estruturais, como a profunda desindustrialização que o país atravessa,[6] a extrema tolerância com a evasão de capital[7] e os múltiplos pontos de estrangulamento da cadeia logística e de abastecimento. Assunto este, aliás, que tem como expressão de seu desapreço pelos agrupamentos de esquerda, por exemplo, o fato de que os caminhoneiros, uma classe de trabalhadores tão estrategicamente crucial para a nossa economia, serem, quando não desprezados, tidos como aprioristicamente reacionários e não-dialogáveis.

De fato, não é incomum que o pensamento primitivista incorra na culpabilização do próprio povo trabalhador pelas condições rigorosas de vida a que se encontra submetido. É difícil imaginar, portanto, que tipo de ganho a esquerda brasileira poderia almejar caso se dirigisse à população que mais sofre com a pobreza e propusesse seriamente que devêssemos abandonar as noções de progresso e desenvolvimento em nome de uma vida comunitária idílica, em que a natureza nos recompensaria com seus frutos por nossa eventual derrubada das indústrias. Qualquer um poderia perguntar, muito legitimamente, aliás: “Ora, nós mal temos desfrutado de alguns benefícios do progresso (como a erradicação de doenças outrora fatais, por exemplo…), e vocês querem que abandonemos o sonho da generalização destes benefícios?” Um posto de saúde mal equipado, afinal, certamente é um problema de política pública, mas ainda é melhor do que ter como único recurso disponível a erva medicinal colhida no próprio quintal.

Estamos diante de alguns paradoxos, portanto: a esquerda há décadas critica, com total razão, o mito direitista de uma natureza humana egoísta, que procura explicar nossas ações individuais enfatizando o interesse pessoal e o ganho imediato, mas hoje se vale de uma versão própria deste mesmo tipo de argumento falacioso, o da natureza humana primitiva, e busca a recuperação de um elo identitário perdido com os humanos do paleolítico. A pandemia já deveria ser vista como uma sólida evidência da necessidade de incrementar nossas capacidades estatais, não apenas pela urgência necessária na produção de insumos e na logística de aplicação dos imunizantes, mas sobretudo pela enorme diferença que faria se tivéssemos – ou, se pudermos ter no futuro… – um sistema verdadeiramente nacional de produção científica, tecnológica e de inovação, articulado aos setores produtivos industriais e agropecuários, por sua vez submetidos a uma estrutura de planejamento mais ou menos flexibilizada em função da sazonalidade da economia política mundial.

Este é um horizonte que deveria levar as esquerdas a articularem entre si e com outras forças políticas dialogáveis um programa mínimo, tendo sempre como prioridade a erradicação da pobreza e a garantia de condições mínimas de bem estar e de dignidade generalizáveis à população nacional como um todo. Para isso, é preciso deixar de ignorar que a questão nacional e a questão ambiental se entrecruzam na geopolítica do mundo, e passar a encarar mais seriamente certos temas urgentes, como a enorme deficiência de nossa infraestrutura produtiva e logística, recolocando na agenda questões estruturais, como por exemplo, “por que o Brasil não investe seriamente em uma ampla e moderna malha ferroviária, dadas as nossas consideráveis vantagens topográficas?” Enfim, se a esquerda viesse se envolvendo com propriedade nestes temas nos últimos anos, talvez o atual presidente não se sentisse tão à vontade para ser quem ele é.

 

 

 


REFERÊNCIA

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

 

 


NOTAS

[1] CRONON, William. The Trouble With Wilderness; or, Getting Back To The Wrong Nature. William Cronon, s/d. Disponível em: <<https://www.williamcronon.net/writing/Trouble_with_Wilderness_Main.html>>. Acesso em 10 mai. 2022.

[2] Em Caminhos e Fronteiras, ao comentar sobre o próprio título da obra, Sérgio Buarque de Holanda tece uma passagem que bem ilustra a ideia à qual recorro: “Se o aceno ao caminho, ‘que convida ao movimento’, quer apontar exatamente para a mobilidade característica, sobretudo nos séculos iniciais, das populações do planalto paulista […], o fato é que essa própria mobilidade é condicionada entre elas e irá, por sua vez, condicionar a situação implicada na ideia de ‘fronteira’. Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados” (1994, p. 12-13).

[3] QUANDO é seguro comer pão, queijo e outros alimentos mofados. Folha de S.Paulo, São Paulo, 26 set. 2020. Disponível em <<https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/quando-e-seguro-comer-pao-queijo-e-outros-alimentos-mofados.shtml>>. Acesso em 10 mai. 2022.

[4] DÁ PARA SALVAR alimentos infestados de caruncho? Faz mal comer o inseto? Uol, 15 mar. 2021. Caderno Viva Bem. Disponível em: <<https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/03/15/da-para-salvar-alimentos-infestados-de-carunchos.htm>>. Acesso em 10 mai. 2022.

[5] GOVERNO avalia flexibilizar validade de alimentos em aceno a supermercados. Folha de S.Paulo, São Paulo, 17 jun. 2021. Disponível em: <<https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/06/governo-acena-a-supermercados-e-vai-avaliar-flexibilizacao-da-validade-de-alimentos.shtml>>. Acesso em 10 mai. 2011

[6] “O BRASIL está experimentando uma das maiores desindustrializações da história da economia”. El País, 15 jan. 2018, entrevista com Ha-Joon Chang. Disponível em: <<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/05/economia/1515177346_780498.html?ssm=FB_CC>>. Acesso em 10 mai. 2022.

[7] NEW REPORT on unrecorded capital flight finds developing countries are net-creditors to the rest of the world. Global Financial Integrity, Washington, DC, 5 dez. 2016. Disponível em: <<https://gfintegrity.org/press-release/new-report-on-unrecorded-capital-flight-finds-developing-countries-are-net-creditors-to-the-rest-of-the-world/>>. Acesso em 10 mai. 2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Protestos contra o governo de Bolsonaro em New York.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Bernardo Rocha Carvalho

Doutorando em História pela UFMG; pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/UNESP).

1 comment

  1. João Victor 30 maio, 2022 at 01:15 Responder

    Você usou conceitos que ficaram abstratos como, classe media, primitivismo , selvagem. São conceitos que precisam de explicação, já que estão em disputa de narrativas a todo tempo. Povos tradicionais tem saberes valiosos sobre todas as questões de urgencia que voce disse. É preciso radicalizar a ciencia moderna que foi criada também para colonizar e para isso saberes tradicionais podem ser ótimos guias. Atacar o capitalismo só por dentro não funciona mais.

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