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A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Ciclos (5/5)
A Estação Primeira de Mangueira de Todos nós

A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Ciclos (5/5) 

No universo das escolas de samba do Rio de Janeiro, passada a Quarta-Feira de Cinzas, a comunidade amante do carnaval se debruça tanto em narrativas sobre o que foi apresentado, quanto no que está por vir no ano seguinte. O ciclo carnavalesco não para e a discussão dos seus temas aparentemente não tem limites. Da memória ainda podem emergir detalhes de desfiles ocorridos tempos atrás.

O culto ao passado da agremiação é recorrente e parece ser um impulsionador da escola ao longo do tempo. No documentário Fala Mangueira! (1983), gravado em 1981 e narrado por Grande Otelo, a tradição da escola é exaltada. Nele está registrado o pioneirismo da Mangueira, a linhagem dos sambistas, o espírito de comunidade do morro e a preocupação com a “descaracterização” dos desfiles devido à aparente desvalorização do “samba no pé” frente ao apelo visual de gigantescas e caras alegorias. Quarenta anos depois, a narrativa de Fala Mangueira! ainda parece atual.

A experiência que se tem com a escola é iluminada por essas memórias registradas por diversos personagens em variados formatos. Com o tempo, as lembranças coletivas vão se imiscuindo com as individuais, afinal, como afirma Maurice Halbwachs, muitas vezes estamos “tão bem afinados com aqueles que nos cercam, que vibramos em uníssono, e não sabemos mais onde está o ponto de partida das vibrações, em nós ou nos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 47). Compartilhar memórias mangueirenses de aspectos relacionados às várias etapas do carnaval é um impulsionador de uma sensação de pertencimento à comunidade.

Felizmente os fragmentos de memórias são muitos. Fragmentos que podem ser complementados pelas experiências de quem vivenciou algo semelhante. O ensaio de quadra, o ensaio de rua, o ensaio técnico, o desfile “oficial”, o desfile no sábado das campeãs, resultam normalmente em momento memoráveis. De minha parte, destaco algumas memórias, dentre tantas experiências vividas.

Nos ensaios de quadra, tanto no Palácio do Samba, quanto no seu entorno, pode-se encontrar e reencontrar amigos da comunidade mangueirense. A quadra comumente é lotada e repleta de participantes dos segmentos da escola. Já o entorno, seja sob o viaduto ou nos arredores, apresenta variadas opções musicais e gastronômicas. Não se sabe qual deles é mais vibrante, movimentado e sonoro.

No ensaio de rua, nas proximidades da quadra da escola, “nossos barracos são castelos, em nossa imaginação” (SEMPRE MANGUEIRA, 1986). A cada passo aparecem mais foliões, afinal cantar Mangueira estando em Mangueira é um privilégio que não se pode perder.

Os ensaios técnicos oficiais ocorrem no Sambódromo e por lá já tomei muitos banhos de chuva. Já ocorreu de a chuva apertar bem no momento da saída da escola. E com isso, em instantes, ter-se a experiência de desfilar em um… rio do samba. Já em outro ano, aliás em 2020, a escola se espremeu sob marquises esperando a chuva passar. O desfile-ensaio ocorreu animado e sem chuva.

O desfile “oficial”, acaba sendo o clímax de um longo ciclo de eventos pré-carnavalescos. A despeito da vibrante experiência em desfilar, há as emoções advindas dos bastidores do espetáculo. Retirar as normalmente volumosas fantasias requer toda uma logística e diferentes modais: metrô, carro e caminhada. No dia do desfile há todo um esforço para carregar as várias fantasias. Como carnaval é aglomeração, nada mais coerente que se reunir com outros foliões em um local para iniciar o deslocamento até o Sambódromo. No meu caso, o local de encontro é na casa de uma baiana de Mangueira, portanto envolve também o transporte de uma fantasia de grande porte, além de providências culinárias. Mesmo com o adiantado da hora, sempre há o cuidado de elaborar algum quitute. Para a pergunta “Tudo pronto?”, a resposta normalmente é “Acabei de colocar o bolo no forno”. Após o desfile há novamente a operação de carregar as fantasias na torcida para que sejam novamente usadas no Desfile das Campeãs.

Um dos desfiles no sábado das campeãs me marcou em especial. Como estava em uma das primeiras alas e algumas pessoas do carro abre-alas não compareceram, a harmonia da escola convidou componentes para completar a composição. Em um primeiro momento recusei, afinal a altura das alegorias parece assustadora para quem não está preparado ou acostumado. Depois percebi que era uma oportunidade que não poderia perder. Nisso a última vaga que restava era uma das mais altas e acabei subindo já com o carro virando a famosa curva. “Sou trapezista, num céu de lona verde e rosa, que hoje brinca de viver a emoção/Explode coração” (MARIA BETHÂNIA: A MENINA DOS OLHOS DE OYÁ, 2016) foi a trilha sonora do meu primeiro – e até hoje único – desfile nas alturas. Em 2019 a emoção foi voltar no sábado das campeãs observando à minha frente o mar de tradições que é a ala das baianas. A simples mudança de posição dentro de uma mesma ala já muda a experiência de desfilar. Aliás é do desfile 2019 a bela imagem de Fernando Grilli presente neste texto.

Com o compartilhamento de histórias e memórias mangueirenses, como essas, vai se consolidando uma afinidade entre os admiradores da escola. O relato de um complementa e é complementado pelo de outros.

Há o tempo de viver e o de recordar, de festejar e de se recolher. Para os sambistas esses momentos se embaralham. “E onde é que se junta, o passado o futuro e o presente?/Onde o samba é permanente?/Na mangueira minha gente” (OS MENINOS DA MANGUEIRA, 2015). O culto ao passado é alternado com a expectativa de algo arrebatador que poderá ocorrer na apresentação do próximo ano.

Após o carnaval de 2020 surgiu uma questão de difícil resposta. Quando haverá o próximo desfile? O carnaval de 2021 foi cancelado devido à pandemia que ceifa vidas e tumultua cotidianos em todo o planeta. As escolas de samba, que já enfrentaram tantas vicissitudes ao longo da sua existência, têm se deparado com desafios inéditos. O Palácio do Samba está sem samba, sem o movimento dos corpos e sem o som da bateria. Se Nara Leão canta o samba de Padeirinho “Como será daqui para o ano 2000?/Como será o nosso querido Brasil?/Como será o morro sem os barracões?/Como será o Rio sem as tradições?” (COMO SERÁ O ANO 2000?, 1983), podemos pensar – apreensivos – em como será o ano de 2022, de 2023, de 2024…

No próximo desfile a Estação Primeira de Mangueira apresentará “Angenor, José e Laurindo”. O carnavalesco Leandro Vieira idealiza um enredo em homenagem ao poeta, compositor e cantor Cartola; ao cantor e intérprete maior da escola, Jamelão; e a Delegado, referência da dança de mestre-sala. Será uma oportunidade de exaltar a comunidade do morro que, mesmo subestimada, é capaz de gerar talentos que impactam na cultura de toda a sociedade. E para cada personalidade que se destaca há vários meninos e meninas da Mangueira que seguem suas vidas anônimas, mas representam o “jovem de grande valor, com o mesmo sangue na veia” (TODO O TEMPO QUE EU VIVER, 2015).

As escolas de samba geram narrativas acerca dos enredos, que por sua vez repercutem em informações a respeito das pessoas, dos saberes e dos espaços que envolvem cada desfile. As fragmentárias percepções sobre o espetáculo geram narrativas fadadas à incompletude. Mas, como afirma Paola Berenstein Jacques, abordando o assunto por meio de um pensamento por montagem, “o importante não seria qualquer tipo de resultado final fixo, mas sim o próprio processo aberto, uma renúncia do fixar” (JACQUES, 2015, p. 69). Cada ciclo instiga a (re)descoberta do que está na história e na memória individual e coletiva, portanto é um indutor de lembranças, redescobertas, ressignificações.

No rastro da pandemia muitos pereceram. Passaram a se chamar saudade, como o baluarte e presidente de honra da Estação Primeira, Nelson Sargento. Mas carnaval é movimento, é resistência, é superação, é reinvenção. E o melhor desfile sempre está por vir, pois, o “samba, agoniza mas não morre, alguém sempre te socorre, antes do suspiro derradeiro…” (AGONIZA MAS NÃO MORRE, 1978). No morro de Mangueira há jovens Nelsons, Angenores, Josés e Laurindos. E, também, Neides, Mocinhas, Zicas e Neumas, cientes da importância de manter a tradição verde e rosa da Estação Primeira de Mangueira de todos nós.

 

 

 


Créditos na imagem: Desfile da Mangueira, 2019, “História para ninar gente grande”. Fotografia: Fernando Grilli.

 

 

 

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