Sob os horizontes do dever de memória
A abertura da década de 2020 é impactada por grandes modificações em nossas vidas. O mundo é atingindo pela pandemia da COVID-19. A dinâmica e as relações sociais, as formas de agir no mundo, foram bruscamente alteradas, sendo que fomos colocados em isolamento e passamos a ter uma relação com a morte bastante modificada, pensando até mesmo no caso em que ela foi banalizada e tornada natural. Esta reflexão pretendente, então, provocar educadores de modo geral no que tange a necessidade do registro da pandemia e da preservação da sua memória. Por isso, Ian kisil Marino, Pedro Telles da Silveira e Thiago Nicodemo insistem na necessidade de refletir acerca do trânsito dialógico entre arquivo-memória-pandemia, fortalecendo o apelo em torno do dever de memória, condição para a democratização da democracia (KISIL; TELLES; SILVEIRA, 2021). A preservação da memória da pandemia é um ato em favor do futuro, pois saberão – e estivemos aqui enfrentando essa tragédia, a despeito de todo negacionismo circulante, dos ataques da pós verdade e de toda a desumanidade operadas por ações de Estados irresponsáveis – que no Brasil o número de mortes chegou, isso em 16 de junho de 2023, a 703.399 pessoas em um espaço temporal tão curto.[1]
A memória aparece, nesse sentido, como elemento de conservação e de modulação da identidade e da diferença. A rememoração, a lembrança, as formas de armazenamento e de arquivamento mostram-se, assim, essenciais para o estabelecimento de agenciamentos responsáveis provocadores de resistência, uma operação e uma conduta com interface com a justiça e com a transformação social e humana. É por isso, então, que nos voltamos para o dever de memória no que diz respeito ao evento da pandemia, pois acreditamos, enquanto educadores em ação, ser impossível que não nos sintamos tocados pelas temporalidades pandêmicas, trazendo consigo, de forma acentuada, o horror da morte de seres humanos em escala global. O dever de memória, fazendo Paul Ricoeur (2007) dialogar abertamente com Andreas Huyssen (2000), leva a sociedade a se portar identificada com a justiça em nível social, movendo-se em busca da gestão responsável dos arquivos, dos modos mesmo de arquivamento em si, pensando em sua operacionalidade, da preservação das memórias, ainda mais se percebidas em movimentos pluridimensionais pelo ciberespaço, e de denuncia e de responsabilização em busca de uma difícil reparação ante essa tragédia.
O dever de memória enredado a essa experiência traumática e sensível convoca as comunidades científicas e educadoras, além da sociedade civil de modo geral, a (salva)guardar, a armazenar, a organizar e a classificar as evidências, os rastros, os vestígios de memória dos vitimados pela COVID-19 e das (contra)ações do Estado brasileiro, diretamente envolvido com o ocorrido, posto que irresponsável, descuidado e negligente. De qualquer forma, já existem casos de dever de memória, operados no Brasil, aparecendo como sinalizações importantes para a nossa tarefa relacionada à experiência da pandemia, quais sejam, a atuação da Comissão de Anistia do Brasil e da Comissão da verdade. Em todas as situações, uma preocupação cambiante: o direito à verdade, à justiça e à reparação, todas elas atravessadas pela noção de dever de memória.
Como escrever a história da pandemia no futuro?
A pandemia é um evento que se apresenta disruptivo, trazendo consigo a carga de rompimento e de destruição, além de se movimentar pluridimensionalmente na duração. Os problemas colocados e decorrentes dessa situação, que atravessam o processo histórico em si, se direcionam, correlatamente, para as formas de narrativação do passado, a partir dos mais diferentes níveis e âmbitos de atuação, impactando as definições mais estabilizadas relacionadas à produção desse conhecimento (KISIL; NICODEMO, 2021). A pandemia, enquanto evento que se desloca nas temporalidades, desafia às formas de oferecer sentido ao(s) tempo(s), do arquivo à leitora e ao leitor. Valores epistêmicos, práticos e éticos, operados junto ao fazer histórico, disciplinarmente ou não, passam por um momento de reavaliação: dilemas referentes aos processos de arquivamento, digitais ou não, tecnologias ativas de aferição das fontes, padrões de criticidade, problematizações adequadas, proposições criativas de natureza meta, elaboração de enunciados responsavelmente conduzidos, entre outros. É, então, a atualização da fabricação do saber histórico, em suas variadas frentes, junto aos horizontes que nos cercam, o que requer, por exemplo, não o abandono do método crítico, ainda fundamental diante da pós-verdade e dos desafios dos eventos modernistas, como a pandemia, mas a sua adequação em face da paisagem tecnológica, midiática e (in)disciplinar que se apresenta, que se direciona, pois, através das interfaces da comunicação digital.
O que parece, em um primeiro momento, envolver tão somente a prática, os fundamentos e as virtudes de fundo epistemológico que se enredam ao fazer histórico, algo que deve, sim, ser urgentemente refletido, também traz consigo problemas éticos, como o da circulação social da memória e a difícil equalização da dialética da lembrança e do esquecimento. Chegamos ao ponto de nossa preocupação: a experiência da Covid-19. Temos, atualmente, em circulação milhares de memórias em disputa em estado de profusão, sobretudo, no ciberespaço. As formas de articulação das representações das experiências humanas no(s) tempo(s), a partir de ferramentas garantidoras para a sua preservação e ressignificação, convoca educadoras e educadores em geral, não apenas historiadoras(es), a participar ativamente e colaborativamente junto ao cuidado com o repertório memorial legado pela pandemia (KISIL; SILVEIRA; NICODEMO, 2021).
Reparação
Para tanto, lembrando que a nossa função é democrática, devemos nos empenhar em busca do princípio de responsabilidade, para dialogarmos com Hans Jonas, na medida em que as gerações futuras, em seu agir no mundo, lembrarão da nossa preocupação com a sobrevivência deste planeta. Luciana Heymann nos oferece um entendimento fundamental para a tarefa, pois sinaliza que o dever de memória “(…) remete à ideia de que memórias de sofrimento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em relação às comunidades portadoras dessas histórias” (HEYMANN, 2006, p.4). E não é por acaso que Paul Ricoeur (2007) salienta que o dever de memória é um acerto de contas: “somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam” (RICOEUR, 2007, p. 101). Ou seja, a nossa dívida vai para além, enfatizamos, da necessidade imperiosa da preservação das memórias, da conservação arquivística, digital ou não, de registros de memórias sensíveis ou traumáticas. Ela é, também, um sentimento, um agir político, um cuidado com mundo, um dever ante aquelas e aqueles que vieram antes de nós, ou que foram nossas(os) contemporâneas(os) nessa jornada junto à existência humana. Precisamos pagar essa dívida, fazer esse tributo e cobrar os responsáveis.
REFERÊNCIAS:
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2006.
HEYMANN, Luciana. O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre memorias, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
MARINO, Ian Kisil; SILVEIRA, Pedro Telles da; NICODEMO, Thiago Lima. Dever de memória e justiça no mundo digital. In: HADLER, Maria Silvia Duarte; André Luiz Paulilo (Org.). História, memória e territorialidades. Campinas: Editora da UNICAMP, 2021.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007
NOTAS:
[1] Dados presentes no portal CORONAVÍRUS/Brasil em 16 de junho de 2022. Ver: Coronavírus Brasil (saude.gov.br)
Créditos na imagem: Reprodução: Parentes e amigos de vítimas da covid participam de inauguração de memorial na avenida Paulista. Estadão.
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