Estava eu assistindo o filme “Besouro Azul” em um cinema aleatório perto da minha casa, aproveitando a crocância de uma pipoca cara e desnecessária, quando, de repente, um personagem lança no meio da cena o seguinte argumento: “Blá, Blá, Blá, eu não gosto de Batman, porque ele é fascista. Ele é um rico privilegiado espancador de pobre”. Alguns meses depois desse filme, na época do barbenheimer (lembram?), uma personagem olha nos olhos de Margot Robbie e grita com desprezo na voz: “Barbie, você é uma fascista!!! Criou um padrão de beleza inalcançável”. Não ficou satisfeito com esses dois exemplos? Calma… aqui tem mais. Em um outro momento, conversando com um amigo sobre política e os seus rumos ao longo das décadas, ele disse que ficou indignado com um escândalo na sua cidade. Eu, curioso como sempre, perguntei o que tinha acontecido, qual era a fonte de tanta polêmica. Frustrado, com os olhos cheios de ódio e desprezo, ele respondeu: “Os vereadores da minha cidade votaram pelo aumento do próprio salário e isso foi uma decisão fascista”. Depois de ler o título chamativo desse ensaio, uma homenagem ao escritor grego Esopo, acompanhado desses três exemplos, provavelmente as peças começam a se organizar no tabuleiro da sua cabeça, certo?

Da mesma forma que “comunista” no final do século passado, e seu fantasma vermelho rondando os Estados Unidos de Nixon na década de 80, o adjetivo “fascista” parece ter se convertido também em um termo genérico, um significante vazio, um simples sinônimo oco de algo desagradável ou autoritário. Mas se conceitos são usados dessa forma, sem qualquer consistência ou cautela, por que as pessoas insistem nisso, por que não mudam? Não seria melhor palavras transparentes, com contornos claros, numa tentativa de evitar algum mal-entendido? Primeiro, é preciso entender os contornos da rotina lá fora, aquela vivida por você e eu quando caminhamos na rua ou entramos numa padaria. Seguindo intuições etnometodológicas e interacionistas, o mundo do padeiro, da atendente do banco, das conversas de elevador, das resenhas no churrasco de domingo, tem regras muito próprias, um ritmo único que merece atenção especial. Não sei se você percebeu, mas os humanos lá fora não agem no mundo porque carregam em suas cabeças definições claras, teorias consistentes, muito menos conceitos sofisticados. O parâmetro da vida cotidiana não é “a vigilância epistêmica”, papel esse reservado a nós, indivíduos estranhos especulando sobre coisas especuláveis, ou seja, os cientistas sociais. Como diria o filósofo Dreyfus sobre a maiêutica socrática, um dos problemas de Sócrates foi a sua surpresa diante da incapacidade das pessoas em definir palavras como “certo”, “errado”, “virtude”, “verdadeiro”, como no diálogo “Górgia” e sua preocupação com a “linguagem” e a “justiça”. “De onde vem a surpresa de Sócrates, por que tanto espanto?”, pergunta Dreyfus. Uma palavra no cotidiano é usada simplesmente porque funciona e não por uma suposta clareza metodológica ao seu redor ou algum suporte teórico bem costurado. Segundo Laclau, no ritmo pragmático do cotidiano palavras são significantes vazios, reservatórios ocos projetados com um único propósito: acolher nossa demanda imediata, organizando nossa vida prática dentro de um todo compreensível, o que alguns podem chamar de sistema. “Fascismo” é um exemplo perfeito disso, sem dúvida, mas outros termos também seguem o mesmo raciocínio: “cultura”, “democracia”, “povo”, “ética”, “mau”, “bom”, “belo”, “feio”, “verdadeiro” e “falso”.

Embora eu pessoalmente não concorde com o rótulo “fascista” estampado em Trump e Bolsonaro, o ponto desse ensaio não é esse, não é um debate sobre a classificação política dessas duas criaturas. Ainda que sejam fascistas, ainda que eu esteja errado na minha resistência em definir ambos dessa forma, isso não altera o núcleo do meu argumento: “o conceito foi esvaziado tanto de sentido que perdeu sua função explicativa”. Ou seja, quando um fascista de verdade aparecer no horizonte, ameaçando todas, todos e até todes, existe alguma chance de identificar sua presença? E a resposta é “Não”. Lembram da história do menino que gritava lobo, o clássico conto do escritor grego Esopo? Responsável por fiscalizar as ovelhas no alto de uma colina, o menino sempre incomodava o vilarejo com falsas acusações, numa mistura de mentira e gozação. Meses se passaram e tudo parecia normal naquela cidadezinha aleatória, até que uma tragédia surgiu no horizonte. Naquele exato momento, o menino mentiroso aprendeu uma lição importante, talvez a maior da sua vida. Em um belo dia ensolarado, bem no meio da tarde, uma silhueta esquisita surgiu entre as árvores… era o lobo. Com seus olhos vermelhos e dentes afiados, ele correu em direção às ovelhas, salivando. Quando o menino tentou alertar as pessoas da vila, suas palavras não tiveram qualquer efeito, ninguém as levou a sério. E se com o termo “fascismo” o resultado for o mesmo? Se Trump e Bolsonaro forem, de fato, lobos atacando nossa preciosa ovelha democrática e liberal, como eu posso acreditar? O menino não estaria mentindo novamente, depois de milhões de mentiras nas redes sociais, na TV, no Radio? É possível ter confiança em uma pessoa tão mentirosa?

Quais os riscos quando um conceito é banalizado ao extremo? Ele perde a função explicativa e se torna uma arma vazia, uma carcaça de sons sem qualquer correspondência com o mundo. Sem dúvida, eu reconheço que sua condição oca tem eficácia no campo político, agregando demandas alternativas, numa espécie de convergência conveniente. De forma irônica, conceitos se tornam eficazes no campo político na exata medida que perdem solidez. Como diria Laclau, e até o próprio Habermas em seus escritos sobre democracia, quanto mais vago são as palavras, mais as pessoas podem instrumentalizar seus contornos. Pense em um protagonista de um filme de aventura como Harry Potter ou Neo de Matrix ou os milhares de doramas em plataformas de streaming. Qual a principal característica dos seus personagens? Todos são vagos, genéricos, permitindo uma identificação imediata entre público e filme. Não importa sua bagagem de experiências enquanto indivíduo de carne e osso, aquele personagem é um reservatório oco aguardando o seu depósito experiencial.

Até mesmo no campo acadêmico, supostamente protegido por filtros metodológicos sólidos, como revisões de pares e bancas de avaliação, o conceito de fascismo perdeu bastante da sua consistência nos últimos anos, como é evidente em artigos, palestras e aulas. Como sou sempre curioso, eu perguntei a um amigo da ciência política sobre o que tornava Trump (ou Bolsonaro) um fascista. Depois de ouvir minha pergunta estranha, ele respondeu com firmeza na voz: “simples, Thiago!!! Trump não defende a diversidade e reprime sua manifestação espontânea”. Claro que a recusa do diverso, em nossas democracias liberais, é um grande problema, ninguém diria o contrário, mas por que “fascista” é o melhor adjetivo aqui? Lembrem de um detalhe muito importante… todos os países do globo fora do eixo das democracias liberais não compram esse pacote de valores, não acreditam que “eu tenho meu deus e você tem o seu”, “eu tenho meu gênero e você tem o seu”, “eu tenho meu modelo de beleza e você tem o seu”, etc, etc. O mundo da diversidade depende do indivíduo enquanto instituição mais poderosa, caso contrário outras instâncias assumem o controle e sufocam essa mesma iniciativa individualizada. Em outras palavras, o pacote de valores da democracia liberal é raro, exclusivo a uma porção limitada no tempo e no espaço, ao invés de alguma universalidade autoevidente. Por isso, definir “fascismo” como tudo aquilo que não é democracia liberal, não esclarece muito as diferenças, por exemplo, entre Rússia, China, Venezuela, Estados Unidos, Catar, Mali, Sudão. Chamar todos esses países de fascistas, pelo simples fato de recusarem princípios da nossa democracia liberalizante, nos impede de perceber o quão específico é o fenômeno Trump (Bolsonaro), reflexo de um descentramento institucional profundo, um buraco no próprio tecido das democracias liberais.

Sem dúvida, o debate sobre se Trump e Bolsonaro são ou não são fascistas é divertido, eu gosto muito, não vou negar, mas lembro a você do meu verdadeiro objetivo nesse ensaio: o ponto não é a classificação política dessas duas criaturas, debate esse aberto a interpretações, mas o completo esvaziamento do conceito de fascismo na vida cotidiana e nas redes sociais. Em outras palavras, ainda que você me convença do fascismo de Trump e Bolsonaro, ainda assim o conceito continua sendo usado de forma imprecisa e confusa lá fora. Quando você gritar no meio da floresta: “Socorro, um fascista roubou minhas ovelhas”, ninguém vai acreditar em sua história. Por isso, não seja como o menino que gritou lobo, tenha cuidado com suas acusações, afinal, fascismo existe e tem olhos vermelhos e dentes afiados.

 

 

 


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