Dados não são apenas dados. Na realidade histórica, dados são pessoas. São sujeitos com vida, que agiram/agem em seus contextos, redesenhando constantemente o espaço e o tempo que habitam. Em última instância, dados são histórias. As vítimas do novo corona (e da velha política), são histórias. O vírus, ser vivo ou não, é incapaz de se mover por si só e precisa do vetor humano para se locomover. No entanto, sob risco de soar repetitivo, o movimento de corpos é condicionado historicamente. A disciplinarização e a alocação espacial da população é fruto de anos passados e demandas presentes que são historicamente descritas.
Através dos meus olhos, na periferia do Rio de Janeiro, vejo o movimento pendular dos empregos: o sol se levanta cedo, assim como um trabalhador comum, ele vai para seu ofício na Barra da Tijuca (bairro do estado que tinha a maior concentração de casos de COVID-19 no início da epidemia) em um transporte público lotado. Às 18h, volta, não sabe se saudável. Ele não é a exceção, é a regra. Qualquer sujeito é um potencial transporte para a movimentação do vírus e para a infecção de seu bairro de habitação. Tendo em vista esse panorama, a epidemia já era uma bomba relógio na periferia antes mesmo do primeiro infectado aparecer por aqui.
A descrição do vírus pura e simples não pode abarcar as situações de vida, trabalho e locomoção de parte da população. O comportamento do patógeno é condicionado pelo comportamento humano. Como bem colocou o Professor Sidney Chalhoub, convidado à live do Dr. Átila Iamarino, “a morte é uma doença social”.[1] O Imperial College estimou uma taxa de fatalidade deveras heterogênea nos estados brasileiros, indo de 3,3%, em São Paulo, até 10,6%, no Amazonas (MELLAN, 2020). Tal heterogeneidade não se dá porque o vírus em um estado é diferente do outro, mas por consequência dos distintos cenários sócio-históricos desses locais – em uma escala que vai de 0 a 1, Amazonas possui um IDH de 0,674 (tendo Manaus 0,737 e Atalaia do Norte 0,450), e o estado de São Paulo de 0,783 (indo de 0,862 com São Caetano do Sul e 0,639 em Ribeirão Branco), dados retirados do IBGE. O IDH dos locais é um fator essencial para a compreensão da situação das pessoas e para podemos estabelecer cenários da epidemia de forma satisfatória. Através desse e outros indicadores é que prognósticos podem ser realizados.
Um prognóstico é, diferentemente de uma profecia, algo que faz previsão ou conjectura, baseado nos dados da realidade – geralmente a palavra está ligada, no português, à medicina e seus resultados. Ademais, como afirmou Reinhart Koselleck: o “prognóstico produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta […]” (KOSELELCK, 2006, p. 32). Portanto, implica em uma análise presente, na qual, a partir dela, um futuro é delineado; dando movimento ao tempo e significância para os acontecimentos da vida cotidiana. O atual futuro, com os prognósticos presentes, torna-se progressivamente mais catastrófico conforme a especificidade brasileira é analisada: as desigualdades latentes do tecido social estão escancaradas no número, locais e subnotificação dos mortos pela epidemia. A história, como disciplina fundamentalmente dependente do tempo, precisa ser contribuinte com uma interpretação não imediata da situação.
Ao olharmos o número de casos e óbitos confirmados no Rio de Janeiro, no dia 15/05/2020, vemos: Copacabana com 443 casos e 88 óbitos (taxa de morte de 19,8%), Barra da Tijuca com 375 casos e 46 óbitos (taxa de morte de 12,2%) e Campo Grande com 329 casos e 83 óbitos (taxa de morte de 25,2%) – Santa Cruz e Sepetiba, local em que vivo, possuem, respectivamente, 132 casos e 40 óbitos (taxa de morte de 30,3%), e 25 casos e 8 óbitos (taxa de morte de 32%).
Pontuo novamente: o vírus da COVID-19 não muda nesses locais, apenas a distribuição de mortes. Ressalto que não cabe a mim dizer o motivo real dessas proporções, nem possuo competência para isso, contudo, alguns fatos precisam ser levantados: 1. A estrutura hospitalar na Zona Oeste do Rio de Janeiro é demasiadamente inferior a de locais como Barra da Tijuca (que, apesar de nominalmente ser Zona Oeste da cidade, é a parte rica, que busca se conectar com a Zona Sul) e Copacabana. O que significa que há a dificuldade do acesso a leitos e respiradores para os habitantes das zonas mais carentes (Sepetiba não possui hospital, apenas clínicas). 2. Parte da população desses locais de maior taxa de fatalidade fazem parte dos serviços essenciais e se expõem mais ao vírus, não podendo se dar ao luxo do isolamento em suas casas. 3. O saneamento básico em muitas regiões mais “ao interior” desses bairros é precário, o que dificulta, por exemplo, o acesso a água e comida, afetando também a permanência em isolamento. Diversos outras precariedades dificultam a vida dos que aqui vivem e facilitam a circulação do vírus.
O que vale ser lembrado é que os dados, e as vidas, apontam para uma desigualdade na distribuição da morte. Mesmo que a pandemia afete a todos, colocando-nos no mesmo barco, não é o mesmo ficar “confinado ao porão, sendo os primeiros a afundar, ou poder acomodar-se na primeira classe, próximo aos botes salva-vidas” (TURIN, 2019, pp. 14-15). Ao longo de anos, houve o desmonte do SUS e o decaimento no investimento em ciência por parte dos governantes, e, agora, a conta está sendo paga. A crise pandêmica que vivemos expôs as fraturas no casco da nossa embarcação, e, infelizmente, os que estão nos porões (da história) são os primeiros a sentir o afogamento.
Proponho um retorno ao papel da história exposto Heródoto: evitar o esquecimento. Assim sendo, não esqueçamos dos feitos dos bárbaros de nossa história. A partir do momento em que fora sabido a epidemia que nos assolaria, todas as decisões tomadas dali em diante alterariam os dados, as vidas e os prognósticos, de modo que o vírus deixou de ser uma catástrofe impessoal para se tornar um crime.
A história (especialmente na atual pandemia), como expressou Helge Jordheim, tem como característica fundamental não a unidade, uniformidade e homogeneidade do tempo, mas sim a pluralidade, multiplicidade e heterogeneidade das temporalidades social e historicamente condicionadas – em outras palavras, a característica fundamental da história é a Ungleichzeitgkeit, não-sincronicidade (JORDHEUM, 2014, pp. 498-518). A não-sincronicidade da história brasileira representa a necropolítica presente em uma série de escolhas, práticas e decisões que implicam na mudança do perfil dos dados pelos quais fazemos nossos prognósticos – mortes, adoecimento e pobreza de vidas periféricas. Uma não-sincronicidade política que se expressa no combate entre diferentes poderes públicos (regionais, nacionais, judiciários, etc.) e na fraqueza de uma autoridade central, com seu negacionismo da realidade e na confecção de esdrúxulas, porém perigosas, teorias conspiratórias.
Não deixamos esquecer que, em contextos sombrios, “a função política do contador de história – historiador ou novelista – é ensinar a aceitação das coisas tais como são” (ARENDT, 1997, pp. 323). Talvez isso signifique atestar, por um lado, para os não acadêmicos a ideia de que a realidade é mais complexa do que aparenta, que o mundo não é intuitivo. Por outro, também é dever historiográfico auxiliar os companheiros de áreas diferentes a enxergar os nuances da realidade e do arranjo das vidas dos sujeitos históricos. Essa não é uma função memorialística, romântica, mas sim rigorosamente historiográfica.
As ciências naturais possuem a louvável capacidade de emitir prognósticos precisos, contudo, é apenas no ofício da historiografia que se temporaliza as bases metodológicas do próprio prognóstico. Não na forma de um “saber auxiliar”, de uma muleta, mas no estabelecimento de um diálogo indispensável a fim de uma compreensão mais acurada quanto possível do mundo. O cemitério dos perdedores sempre é silencioso, e o silêncio “é a gente mesmo, demais” (ROSA, 1994, p. 601). O silêncio dos mortos sem rosto, reduzidos à mera estatística, revela tanto à história quanto os vivos que ficam para testemunhar.
Nós produzimos ciência não só para conhecer o mundo, mas para que a existência seja, cada vez mais um lugar melhor. Nascemos bem com a ciência, vivemos bem com a ciência, vamos ao espaço com a ciência e evitamos mortes com a ciência. Nós produzimos história porque somos capazes de enxergar uma contemporaneidade nos que aqui não mais vivem. Dos milhões que morreram, somos nós que carregamos o fardo de suas ações, boas ou ruins, pois, inevitavelmente, o agora é o filho do anterior; existindo apenas “um único lugar onde o ontem e o hoje se encontram e se reconhecem e se abraçam, e este lugar é o amanhã” (GALEANO, 2019, p. 133). Fazemos ciência para que haja um amanhã: faz-se ciência, a fim de que haja História para ser contada.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. In: Entre o Passado e o Futuro. Editora Perspectiva. São Paulo, SP, 1997.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre, L&PM Pocket, 2019.
JORDHEIM, Helge. Introduction: multiple times and the work of synchronization. History & Theory, v. 53, pp. 498-518, Dezembro, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora/PUC-Rio, 2006.
MELLAN, Thomas A. et al. Report 21 – estimating COVID-19 cases abd reproduction number in Brazil. Imperial College COVID-19 Response Team. Londres: 8 mai. 2020. Disponível em: < shorturl.at/dzH05>. Último acesso em: 18/05/2020.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Biblioteca Luso-Brasileira,1994.
TURIN, Rodrigo. Tempos Precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Zazie Edições: pequena biblioteca de ensaios (online), 2019, pp. 14-15. Disponível em: < shorturl.at/irJRV >. Último acesso em: 18/05/2020.
NOTAS
[1] Live 28/04 – Por que o Brasil não aprende com o passado?. Apresentado Átila Iamarino. 2020. 1 vídeo (1h 19min e 46seg). Minuto: 1h16:45. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=dhDH8hCz2pA>. Último acesso: 18/05/2020.
Créditos na imagem: A Seop fez fiscalização em bairros da Zona Oeste no fim de semana – Seop / Divulgação.
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