Em sua análise sobre as obras do pintor espanhol Francisco de Goya (1746-1828), Luís Francisco Fianco Dias busca demonstrar uma relação entre a melancolia, a decepção, o vazio provocado pelo humanismo do fim da Idade Média e as transformações do tempo, vivenciadas pelo artista no século XIX. Fianco ressalta o legado do pensamento protestante, no qual a Doutrina da Vacuidade das Obras, defendida por Lutero, provoca o ideário de que as “ações humanas foram privadas de seu valor”, sendo a redenção fruto da fé sincera da salvação em Cristo. Em seu trabalho, Fianco Dias, lança mão essencialmente de dois autores que pensam sobre a experiência desse período, Walter Benjamim e Claude-Gilbert Dubois. O primeiro, segundo Fianco, percebe a melancolia no mundo moderno e contemporâneo “como fruto das modificações e revoluções de perspectiva ocasionadas pelo Renascimento no campo cultural, artístico e científico” (BENJAMIM apud FIANCO, p. 161); o último identifica que com o afastamento da Providência e do Destino, o homem é posto como sujeito central na história, não sendo mais necessário – segundo a tradição luterana – intermediários entre Deus e os homens. Sem a mediação direta de uma instituição e de outros seres – sacerdote, anjos e santos –, instalou-se um vazio que deveria ser preenchido pelo divino. Portanto, em nota, Francisco Fianco afirma que
“uma vez que não o consiga, por diversos fatores, como o humanismo e o racionalismo, a melancolia se instaurará através da noção de perda deste sentido que se faz ausente, como se Deus tivesse abandonado o mundo. Este contexto onde o homem se vê sem interlocutor instaura uma introspecção frente a um universo vazio e insensato concentrando no sujeito as paixões e violências que se retiram do mundano, ampliando a tensão interna a tal ponto que este sujeito não aspire outra coisa senão a explosão, o desejo de destruir-se.” (FIANCO, p. 45).
Em sua abordagem sobre a melancolia nas Artes Visuais, Susana Kampff Lages destaca em Walter Benjamin: tradução e melancolia (2002) a gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer. Baseando-se no estudo clássico presente em Saturn and Melancholy (1964)1 e em outros estudos do crítico e historiador da arte alemão Erwin Panofsky, a autora afirma ser esta “uma das obras que melhor ilustram o caráter fundamentalmente enigmático do humor melancólico” (LAGES, S. K, 2002, p. 38). Segundo Lages, a gravura de Dürer, com outras duas intituladas São Jerônimo em seu Gabinete (1514) e O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (1513) fazem referência a uma divisão tripartite da melancolia
“de acordo com as mais altas faculdades humanas: a melancolia imaginativa (imaginatio), a própria de artistas que, de alguma forma, se ligam a atividades artesanais, como pintores e arquitetos; a melancolia que se concentra na razão (ratio), própria daqueles que se interessam em obter conhecimento sobre o ser humano e a natureza, ou seja, filósofos e cientistas; e, finalmente, o grau mais alto que a disposição melancólica pode alcançar, a melancolia que se concentra na mente (mens), que é instruída por “demônios”, espíritos, superiores quanto a questões referentes à lei divina e ao conhecimento de realidades eternas e da salvação da alma.” (LAGES, 2002, p. 42).
Conforme afirma Francisco Fianco Dias, traçando uma breve história da melancolia, na origem do termo – da união em grego de melas, que significa negro, com chole, bile – há uma associação com elementos sombrios como a morte, a escuridão, o luto, dentre outras características e comportamentos. Segundo a Teoria Hormonal, haveria quatro diferentes tipos de humor que incidiriam sobre o comportamento das pessoas. Como Fianco Dias traz em nota, ancorando-se também no já citado trabalho Saturn and Melancholy[1],
“o sangue era o primeiro humor, de cor vermelha, correspondente à primavera e predominante na adolescência. O segundo humor era a bílis, de coloração amarela e correspondente ao verão e predominante na adolescência, seguido pela bile negra, de correspondência com o outono e determinante na idade adulta. Por fim haveria a fleuma, correspondente ao inverno e predominantemente durante a velhice.” (FIANCO, 2004, p. 92).
O comportamento melancólico, causado pela bile negra, levaria a comportamentos ambíguos e antagônicos. Na Idade Média, a incidência dos humores corporais perdeu sua centralidade com a inclusão da influência de Saturno. Este planeta, que na época era considerado o mais distante, passou a ser visto como regente do melancólico e responsável pela contemplação profunda, “impulsionando a alma à reflexão interna, afastando-a das exterioridades, inspirando-lhe, muitas vezes, uma tendência à sabedoria e à erudição” (FIANCO, 2004, p. 98). Kronos, seu correspondente na mitologia grega, identificado com o tempo, carregava também a ambiguidade e a contradição, sendo “ora criador de tudo, na figura do deus, ora a força que faz com que tudo se corrompa e pereça, na figura do tempo.” (idem).
Susana Lages, concordando com Panofsky, afirma que a melancolia em Dürer apresenta-se por meio de uma representação simbólica, harmonizando o plano concreto do abstrato, sendo, portanto, uma tradução de algo abstrato para o concreto da representação. Lages ressalta que o conceito renascentista de “originalidade e inventividade” não constituem os elementos representados pelo artista, uma vez que este em suas produções realizou releituras baseadas na tradição pictórica de representação do humor melancólico, assim como
“do conhecimento astrológico que tem, em Saturno, o planeta que rege os seres com disposição melancólica, e da geometria e da matemática como divinas ciências da criação e da representação do mundo” (LAGES, 2002, p. 50).
Lançada inicialmente em 22 de outubro de 2007 pela Pacemaker Recordings e posteriormente relançada pela XL Recordings, em 2008, Hometown Glory é o single de estreia da cantora, compositora e multi-instrumentista britânica Adele. A canção escrita pela artista aos seus 16 anos compõe o álbum 19, lançado oficialmente em 28 de janeiro de 2008. Como podemos perceber na mencionada obra de Adele, existem muitos elementos presentes e embora saibamos que ela descreve seu mundo, em alguns momentos é comum que nos sintamos perdidos; uma perda que pôde ser sentida por alguém presente no diálogo da primeira parte da canção. Neste momento da música, o olhar da personagem durante o vídeo faz referência a outro elemento que se remete à representação da melancolia: o olhar vago; sensação e palavra que encerra o verso antes do refrão e que é a resposta dada ao interlocutor que surge na canção. A escuridão que a envolve por alguns instantes também cumpre seu papel e mesmo Adele sendo mais descritiva sobre seu mundo desde o refrão, como Susana Lages percebe em Melencolia I,
“todas as interpretações parecem ser, simultaneamente, pertinentes e incompletas, gerando sempre uma insatisfação no observador, que pressente ‘algo mais’ na obra, e ‘algo menos’ na interpretação, mas que, no fundo, não se saber exatamente em que consistiria esse ‘algo’” (LAGES, 2002, p. 43).
Na representação de Hometown Glory alguns elementos merecem destaque, como a disposição da personagem, que se encontra sentada sobre uma cadeira num cenário escuro com telas ilustradas que se alternam e que por vezes se repetem, em sincronia ou conflito com a letra e a melodia. A iluminação do ambiente e os movimentos da câmera, que valorizam a imagem do corpo da personagem (ou se distancia dele), suas expressões; as cores escuras, a luz controlada sobre a figura feminina e as telas imprimem uma sensação nostálgica e uma profundidade que nos coloca imersos no mundo que ela constrói ao longo da canção. Quando faz menção ao ar espesso e opaco, o som das palavras parece transmitir sobriedade, e, por fazer referência ao ar, é possível afirmar que a ausência de imagens – o momento que o ambiente se escurece – seja, também, uma forma de representação. O movimento circular ao redor da personagem que canta ao centro enquanto as telas de prédios – ao fundo – giram com a câmera, parece se unir ao ritmo da música e provocar um efeito de transe, no qual a personagem deixa de ser vista por alguns instantes, retornando com o enquadramento central, tendo seu rosto iluminado. Este movimento circular, que envolve instrumental, voz e imagem, provoca uma sensação de profundidade maior; e com a canção se tratando de um mundo no qual a personagem está inserida, o movimento da câmera – que pode lembrar, também, o tempo – demonstra a imersão da personagem e possivelmente o desejo de quem produziu o vídeo de colocar o telespectador também no centro deste mundo, para que veja o que ela vê e experimente.
O caráter hermético da obra de Albrecht Dürer diante do qual, segundo Lages, podemos ver anunciada a modernidade, pode ser identificado no vídeo da canção de Adele, considerando suas especificidades. Em Hometown Glory, podemos identificar dos elementos que se remetem à tradição iconológica da melancolia, as cores sombrias, a letra que ressalta por vezes coisas antagônicas – como os mundos que se colidem, as pessoas, suas posições e visões
diferentes, a união e a diferença, a força, a fraqueza – e a exaltação das maravilhas de seu mundo a partir da agonia de uma possibilidade de ter que deixar sua cidade natal. As telas, com árvores ressequidas, a neve e os prédios trazem esse embate entre cidade e campo, além de trazer o frio, o vazio, a nostalgia e uma leve tristeza, presente em algumas expressões da personagem. Sobre a modernidade, a presença dos prédios e o ritmo da música que parece se intensificar ao longo do tempo – proporcionando envolvimento e redução na clareza dos objetos –, podem representar o caos da cidade, a perda ou o maravilhamento diante da agitação; em contraposição ao campo e às imagens das habitações e ruas de bairro. Embora a presença de espaços e elementos tão díspares, a representação de Adele sobre seu mundo constrói uma narrativa reflexiva que transmite um sentido completo, que move diferentes tempos, experiências, olhares e imagens; partindo de um olhar subjetivo sobre a realidade e sobre a constituição do mundo humano.
NOTAS
[1] KLINBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Saturn and Melancholy: Studies in the History of Natural Philosophy, Religion, and Art. London, Nelson, 1964.
REFERÊNCIAS
FIANCO, Francisco. GOYA E A MELANCOLIA: Prenúncios da decepção com o Iluminismo. Revista Interdisciplinar Internacional de Artes Visuais-Art & Sensorium, v. 4, n. 2, p. 159-170, 2017.
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. Edusp, 2002.
VIDEOCLIPE: ADELE. Adele – Hometown Glory. 2009 (3m35s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BW9Fzwuf43c. Acesso em: 11 out. 2019.
Créditos na imagem: Cenas do vídeo oficial de Hometown Glory, de Adele. Foto: Reprodução/YouTube – Adele.
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Isaías dos Anjos Borja (Xipu Puri)
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