Este ensaio oferece contribuições ao debate sobre o recente incremento das manifestações de extrema direita na cena política nacional. Parte-se de breves análises de conjuntura histórica contemporânea – acerca especialmente da falência dos estados-nação -, para em seguida sugerir interpretações sobre as configurações atuais do extremismo golpista de inspiração nazifascista no país.
De início, recupera-se as contribuições teóricas de Wallerstein e de Michael Hardt e Antonio Negri, que ajudam a colocar em perspectiva os processos de celebração do bicentenário da independência brasileira. Sob o crivo de suas teses, especialmente no que concerne ao enfraquecimento dos estados-nação na contemporaneidade, pode-se apreender as dominâncias condicionantes da cena política atual.
Wallerstein (1998) compreende o início do capitalismo na formação do sistema-mundo desde o século XVI. Sua unidade de análise dá ênfase ao sistema “mundo”, e não o Estado-nação. Nele as esferas econômicas, política e sociocultural são vistas como estreitamente conectadas; e não separadas, conforme a abordagem tradicional. Toma-se como referência aqui o livro Utopística. Nesta obra o autor apresenta as principais dificuldades, ainda imprevisíveis, que a sociedade deverá enfrentar. Descrevendo um cenário de desordem que vai desde as expectativas de um novo modo de produção alternativo, a emergência crescente de conflitos étnicos deflagrados, cenários perpassados pela “desigualdade social, a luta de classes, o alto nível de criminalidade, a crise fiscal dos Estados e um colapso do sistema moral”.
Negri e Hardt apresentam o conceito de ‘império’, em obra de mesmo nome, para entender as relações de poder e dominação capitalistas em nosso tempo (HARDT, 2001). Compreendem império como um poder sem centro, força globalmente opressora, sem liderança exclusiva, acima de qualquer instituição e estado-nação. O império funciona capilarmente, horizontalmente: “todos são seus servos”. Nesta formação histórica, os estados-nação subordinam-se ao Império, englobando lentamente, ao axiomatizar e fagocitar, o mundo inteiro; expandindo suas barreiras até não haver mais lado de fora. Assim, a soberania dos estados-nação está em crise. O mundo não é mais governado pelos países e nem por uma estrutura centralizada de poder. As bandeiras nacionais têm hoje, e cada vez mais, poder meramente simbólico.
Sob o prisma dessas posições teóricas conjunturais, observa-se aspectos relevantes em torno da celebração do bicentenário nacional realizada sob vigor de um governo conservador de inclinação nazifascista, – o tal do “bolsonarismo” golpista – uma das facetas recentes da extrema-direita reacionária: comemoração realizada com colorido patriótico, ufanista, de inspiração militarista e ditatorial recalcitrante[1].
A cenografia das comemorações de 2022 em muitos aspectos contrasta com as comemorações realizadas no primeiro centenário (1922). Naquela ocasião ocorreram encenações de ampla repercussão nacional, com exposições, seminários, eventos culturais, etc., envolvendo diversos setores da sociedade brasileira, que celebravam a independência na capital da jovem república, ao mesmo tempo que buscavam consolidar a identidade nacional e a imagem de um país moderno, no início do século XX. O que ocorreu em 2022 destoa e contrasta profundamente com aquelas manifestações do primeiro centenário.
Todavia, corroborando as impressões de frugalidade, observa-se que nos programas partidários nas eleições presidenciais/gerais de 2018, nenhum partido ou coligação apresentou, no primeiro turno, plano comemorativo do bicentenário. Já no segundo turno, apenas o Partido dos Trabalhadores, e sua coligação, apresentou uma breve proposta de trabalho para organização da celebração da efeméride. Aspecto que chama atenção, pois desde o segundo mandato do Presidente Lula, o ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel P. Guimarães, havia elaborado, em 2010, o que chamou de Plano Brasil 2022[2].
Destarte, o presente ensaio traz uma contribuição sintética de reflexões elaboradas em artigos publicados em periódicos a partir de pesquisas realizadas desde 2016 (CORREA, 2021; 2022). Esses trabalhos contêm contribuições ao debate sobre a festas cívicas públicas e memória política, que podem ser úteis para a interpretação de fenômenos que ainda estão em voga, desde o fim do pleito das eleições de 2022. Podem ajudar na compreensão das manifestações realizadas pelos grupos políticos perdedores da eleição para presidente em 2022, e que atualmente ainda estão acampados na frente de quarteis do país, clamando por intervenção militar e golpe de estado. Atualmente encontram-se tentativas de interpretações diferentes e as vezes contrastantes sobre essas manifestações. Destaca-se duas delas como as mais difundidas.
Na primeira, tem-se as colocações de Piero Leiner da UFSCAR, junto com outros autores colaboradores, como o jornalista Romulus Maia e o Coronel Marcelo Pimentel. Leirner, em especial, trata do tema da chamada guerra híbrida, e o modo como está sendo realizada no Brasil. Como enfatiza: “não se trata de uma guerra clássica, com fogo, mas de uma guerra que visa sobretudo a captura e neutralização de mentes.” Assim, suas bombas são antes de tudo informacionais, visando causar especialmente ‘dissonâncias cognitivas’ e induzir a vieses comportamentais. Uma ideia de totalidade está no âmago da Guerra Híbrida: “não há mais a separação entre guerra e política, ou tempo de guerra/tempo de paz; todos passam a ser, voluntária ou involuntariamente, combatentes; e não se vê exatamente nem seu princípio, nem seu fim” (LEINER, 2020).
A hipótese central levantada é que o Brasil foi, e é, um “laboratório” onde este modelo foi aplicado. Os protagonistas principais desta forma de guerra, “certo grupo de militares”, operam uma estratégia calculada, “operações psicológicas”, disseminando desequilíbrios no sistema da política. O resultado, que vai muito além da eleição de 2018, é a dissonância generalizada que impera no Brasil hoje. Todo esse processo implementa um dos conceitos centrais da guerra híbrida a “cismogênese”, ou seja, “a criação de divisões sociais com o objetivo de impossibilitar qualquer pacto social” (LEINER, 2020).
A segunda interpretação em voga é difundida por João Cezar de C. Rocha da UERJ, calcado particularmente na hipótese da dissonância cognitiva[3]. Sua tese principal é sintetizada numa frase repetida pelo autor: ‘Brasil é laboratório de criação de realidade paralela’. Ele alerta para as consequências de um tipo de ‘processo de lavagem cerebral’ alimentado por engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias. Processo designado de “criação de dissonância cognitiva coletiva”, realizado pela instrumentalização da midiosfera extremista. Segundo João Rocha, estas ideias se baseiam nos trabalhos do psicólogo social norte-americano Leon Festinger que publicou Uma Teoria da Dissonância Cognitiva (1957). Todavia, Rocha acrescenta ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger a perspectiva coletiva, associada à capacidade da produção de conteúdo das redes sociais, isto é, a dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorrendo sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela qual nos comportamos. Como corolário dessa tese, sustenta: “Não há ser humano que não viva com certo grau de dissonância cognitiva.”
Somando a estes esforços de interpretação, segue-se nesse ensaio uma trajetória teórica diferente. Uma perspectiva interpretativa que versa sobre a gestão das imagens e das memórias políticas no espaço sócio-histórico contemporâneo[4]. Destaca-se então o estudo da política da imagem nos campos empíricos, suas características semiológicas sobressalentes. É um estudo sobre a colonização do imaginário sociopolítico, através de imagens históricas encenadas em equipamentos culturais, monumentos e espaços sociais urbanos. Analisa-se aspectos da montagem do quadro imagético nacional pontuando momentos destacados num largo ciclo de comemorações históricas ativadas desde a Independência em 1822. Nesses trabalhos (CORREA, 2021; 2022) articulam-se os conceitos de máquina de guerra semiótica de Lifschitz (2019), batalha das imagens de Carvalho (1990) e guerra das imagens de Gruzinski (2006) para refletir sobre a memória política na atualidade. Esse trajeto teórico opera a noção de memórias enxertadas na compreensão da lógica das ressurgências imagéticas no espaço sociopolítico. Com base nos conceitos citados, investigou-se a produção de imagem e representações do movimento do Grito dos Excluídos nos cartazes e faixas elaborados desde 1995, e percebeu-se a dificuldade do movimento de “representar” em imagens o legado de suas lutas. Sua produção imagética repetitiva parece indicar dificuldades de representar o “irrepresentável” de uma nova “nação” a ser imaginada para acolher os “excluídos”[5]. Algo que parece remeter ao que Rancière designa como “falha na regulagem estável entre o sensível e inteligível” (2017, p. 140).
Observa-se por outro lado que a eficácia das imagens do passado militarista, reaparecendo nas ruas, e ressurgindo de modo significativo nas manifestações políticas dos últimos anos; imagens que se julgavam mortas e esquecidas. No caso das manifestações mais recentes (Brasil/2015-2022) é consideravelmente inquietante vermos ressurgir imagens e bordões de mais de trinta anos atrás, colonizados há décadas e que testemunhamos produzir ainda efeitos de mobilização de massa; como por exemplo, nas variações do lexema: “ame-o, ou deixe-o”! Fica evidente a eficiência da propaganda do período da ditatura civil-militar; de modo e alcance jamais esperado. Assim, é necessário reavaliar os arsenais teóricos para se compreender como “memórias enxertadas” há décadas são reencenadas após o período no qual se considerava ter operado rupturas profundas no imaginário social, através do processo de redemocratização e da consolidação do espírito cívico, desde a Constituição de 1988.
O historiador francês Gruzinsky quando invoca Blade Runner[6] e as memórias enxertadas nos ‘replicantes’, parece oferecer uma contribuição ainda pertinente. Como estamos numa nova fase de construção das subjetividades políticas na atualidade, os investimentos no teatro das memórias políticas podem explicar de que forma as emergências sociais, – tanto do lado das forças de manutenção do status quo, como do lado das resistências contra o stablishment -, promovam a reificação das estruturas de sentido dominantes, oficiais, autoritárias, ou das formas de resistência contestatórias e insurgentes. Entrementes, tanto num caso como no outro, sujeitos políticos antagônicos, representam articulações subjetivas nos polos em conflito.
Ressalta-se a importância de avançar num estudo sobre as possibilidades de uma “política da visão” e da memória. Trabalho que deve ser feito para além das análises das de bordões, cartazes, fotografias e imagens “enxertadas”, avançando para todas as dimensões das violências e terrores submetidos aos governados. A gestão do teatro das memórias políticas e sociais, no sentido empregado por Jeudy (1990), indica que é preciso operar uma espécie de tratamento terapêutico das heranças e tradições de insurgência.
Nessa direção, vale revisitar as análises de Gruzinsky, em especial em relação as analogias com a ficção de Blade Runner, pois é preciso resistir contra o ‘destino de replicantes’ de programas inoculados para ações não-reflexivas, – tais como a que testemunhamos nos últimos anos nas ruas das grandes cidades brasileiras; e que ainda são persistentes em frente dos quartéis militares após eleições de outubro de 2022. Episódios que muitas vezes passaram por anedóticos, mas para os quais a sua compreensão plena necessita do exercício de análises semiológicas alargadas.
Numa sociedade em que a mídia está nas mãos de monopólios poderosos, comprova-se a necessidade da luta contra a manutenção do controle desse poder midiático por empresas emissoras e repetidoras. Todavia, não se pode esquecer, não basta trocar os signos e sinais das mensagens transmitidas, é preciso ir mais além na análise desse poder mágico e reticular. Os efeitos deletérios desse processo de dominação consolidam a importância do alerta de Laymert dos Santos: “quando a modernidade chega ao fim, o homem parece estar perdendo a capacidade de perceber e imaginar” (SANTOS, 2003, p. 180). Assim, ao testemunhar-se a proliferação da nova geração dos clones e replicantes na cena política contemporânea, deve-se despertar o alarme. Esta nova geração é fruto de qual engenharia política? Quais as coordenadas sócio-históricas dessa nova metamorfose da direita extremista? Como adiantou Baudrillard (2005), com sua teoria irônica:
Os clones já estão aí, os seres virtuais já estão aí, somos todos replicantes! No sentido que, como Blade Runner, já é quase impossível distinguir o comportamento propriamente humano de sua projeção na tela, de seu duplo em imagem e de suas próteses informáticas (p. 156).
REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, J. Tela total: mito-ironias do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina. 2005.
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras. 1990.
CORRÊA, Alexandre Fernandes. A memória política como a outra cena da política. In: Israel Aparecido Gonçalves. (Org.). Ensaios de sociologia e direito. 1ed. Joinvile: Areia, 2021, v. 1, p. 20-28.
___. O destino das imagens e memórias históricas Batalhas e guerras semióticas na cena dos monumentos. Fênix (UFU. Online), v. 17, p. 63-85, 2020.
___. O grito dos excluídos no bicentenário da independência. http://dx.doi.org/10.52765/entropia.v6i11.256, v. 6, p. 114-126, 2022.
GRUZINSKY, Serge. A guerra das imagens: de Cristóbal Colón à “Blade Runner” (1492-2019). São Paulo: Companhia das Letras. 2006
HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Império. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001.
JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1990.
LEIRNER, Piero. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial. 329 p. 2020.
LIFSCHITZ, Javier A. Brasil, política e vertigem. e-l@tina, Revista Eletronica de Estudos Latinoamericanos, v. 17, n. 68, Buenos Aires, jul/set. 2019 Acesso 2 DEZ 2022 https://www.redalyc.org/journal/4964/496460991005/
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto. 2012.
SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Ed. 34. 2003
WALLERSTEIN, I. Utopística ou as Decisões Histórias do Século Vinte e Um. São Paulo: Ed. Vozes. 1998.
NOTAS
[1] Golpe admitido em entrevista do vice-presidente General Mourão, quando afirmou que a presidenta Dilma Roussef sofreu o processo de impeachment ao instituir a Comissão Nacional da Verdade (2011). Ponto nefrálgico para a memória política brasileira contemporânea. Acesso 2 DEZ 2022: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/11/16/nao-sou-presidente-e-nao-vou-botar-a-faixa-em-lula-diz-mourao.ghtml
[2] Duzentos anos de história e a nação por construir até 2022. Entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães: https://www.cntu.org.br/new/_FILES/publicacoes/27032014-184652-bri2013.pdf
[3] Dissonância Cognitiva e Bolsonarismo: Realidade paralela na veia. João C. de Castro Rocha. Folha de S. Paulo, 7 de outubro de 2022
[4] Resultados do trabalho de pesquisa realizado no estágio de pós-doutorado sob a supervisão de Javier Lifschitz (2019-20). PGMS. UNIRIO/2019-20.
[5] O que explica a ênfase sugerida pela organização do movimento: “Priorizar a linguagem simbólica, criativa e poética aos discursos”. https://www.gritodosexcluidos.com/historia Acesso: 2 DEZ 2020.
[6] A produção é inspirada no livro Os andróides sonham com ovelhas elétricas? (1968), de Philip K. Dick.
Créditos na imagem: Reprodução: Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos no Parque Ibirapuera Foto: Viviane Okama, CartaCapital.
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Alexandre Fernandes Correa
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